31.12.06

Estrada de minhas lágrimas

Sim, eu choro. Não tanto quanto deveria mas choro. Sempre achei bobagem o conceito “homem não chora” por motivos biológicos: se não choramos, por que nascemos com glândulas lacrimais? Quem quer que tenha inventado a suposta força masculina não levou em consideração que somos diferentes das mulheres apenas em alguns traços biológicos. Esconder o que sentimos pode ser “coisa de macho” mas torna-se contraproducente com o passar dos anos, ao nos vermos angustiados e macambúzios sem um motivo aparente.


Pode ser por vergonha, falta de traquejo; são raros os homens que sabem chorar. E saber chorar não é apenas deixar as lágrimas verterem rosto abaixo, é entregar parte de nossos medos e deixar o abandono consumir as energias a cada soluço. É preciso entender que o choro não precisa de um motivo lógico, apesar do que nos foi ensinado no decorrer da infância e adolescência.


Veja a tristeza, por exemplo. Ela é o motivo clássico do choro e mesmo ela é solenemente ignorada numa fungada proeminente e na mudança de assunto. Num belo dia o homem reclama das noites sem dormir, da inquietude sem motivo aparente, da irritabilidade com mulher e filhos e culpa qualquer causa externa disponível ao intelecto. Onde já se viu, ser responsável por algo mais do que o pagamento das contas?


Aprendi o valor terapêutico do choro da melhor maneira: chorando. Tinha nove anos em 1979 e estava numa instituição que abrigava menores em Campinas – um dia eu conto o porquê. Num domingo de julho minha mãe foi me visitar. Não esperava que ela viesse, pois sabia que ela trabalhava muito, inclusive nos finais de semana. A ausência dela era sentida apenas como um leve desconforto no peito, rapidamente abafado pelo dia a dia de estudo e trabalho.


Naquele domingo, porém, ela caminhou devagar em minha direção após sair do carro. A princípio não acreditei, depois corri alucinado para receber e dar um gostoso abraço. Durante o período da visita, entre 9 e 17 horas, senti a felicidade em seu estado bruto. Ouso afirmar que esse momento é um dos cinco mais felizes de minha vida até então. Estava eufórico, falante, sorridente. Mostrei meus lugares prediletos, sentei-me ao lado dela em meu banco (eu o considerava meu por ser meu ponto de fuga, para evitar o contato com aqueles estranhos que me chamavam pelo nome). Na pequena capela, rezamos um Pai-Nosso e continuamos a falar amenidades, nada memorável em termos de retórica porém era como um cobertor felpudo durante aqueles invernos de sete graus.


O tempo, que não está nem aí para a saudade alheia, determinou o fim quando ela olhou para o pequeno relógio de pulso que ela portou até o dia de sua morte e me disse, suavemente: “Nei,tenho que ir embora”. Fiquei quieto e a acompanhei até o Fusca, onde outra mulher a esperava. Dividimos outro abraço, depois ela sorriu e acariciou meu rosto. O último “tchau” foi dado entre a poeira que os pneus fizeram ao afastar dona Benedita de mim.


Sabia que antes do anoitecer deveria estar na casa 3, onde eu e mais 29 meninos convivíamos. Sabia que eu deveria tomar banho antes de jantar e guardar os lençóis de domingo. Sabendo de tudo isso fui ao meu banco, entre os eucaliptos e desabei nas tábuas parafusadas em troncos. Coloquei as mãos em meu rosto e senti o aroma do perfume dela; um odor adocicado com pequeno tom verde. Então chorei. Solucei. Todo o desconforto transformou-se em saudade doída que me deixou vertendo lágrimas salgadas e abundantes.

Após muito tempo, não sei precisar o quanto, parei, exausto. Respirava fundo, quase comendo o ar. Enxuguei meu rosto com as palmas das mãos, suspirei e me dirigi à casa. Tomei meu banho, comi meu jantar, dobrei e guardei meus lençóis de domingo. E dormi. Profundamente.


É apenas um pequeno fato de minha vida. Chorei sim. Mas depois a vida seguiu seu curso e não remoí aquela saudade pungente. Chorei mais vezes, por motivos diversos – como por exemplo ao ouvir “Seguir em frente” do Rick e Renner no ônibus, na ida ao meu antigo emprego ou por ouvir “Os velhinhos” na voz de Roberto Carlos, ou por ouvir “você não faz meu tipo” da pessoa que mais amei até 2004-e depois de cada lágrima,o cansaço e um certo alívio. Sim, pois quantas toneladas pesam um rancor, uma palavra não dita!


Choro sim. Não com a mesma intensidade e com a mesma freqüência com que dou risada, mas choro. E sei que preciso chorar mais.

29.12.06

De cinco em cinco

Resisti bravamente à tentação de tecer listas, prognósticos e desejos. Embora mais cedo ou mais tarde eu acabe cedendo e fazendo listas, prognósticos e tendo desejos, desta vez o motivo é nobre: o pedido de meu amigo Janio, que para mim tem força de decreto presidencial. Ele enumerou cinco objetivos para o ano vindouro (adoro essa palavra, “vindouro”. Soa tão... profética!) e pediu para alguns blogueiros fizessem o mesmo como em uma corrente. Ele não fez apenas isso, contudo: também disse cinco coisas que ninguém sabia sobre ele.

Cinco, assim como dez, são números que nos perseguem pela praticidade. Afinal, tudo começou com os dedos de um senhor no Oriente Médio sentindo necessidade de contar ovelhas. Ih, mas já enrolei demais. Sem mais delongas e com mais algumas listas – mo meio do processo me empolguei – aqui estão:

Os cinco objetivos para 2007

1 – voltar a estudar. A matrícula está feita e a escola, escolhida. Chega de procrastinação estudantil; ou eu completo esse bendito ensino médio ou jamais terei paz.
2 – ler mais e melhor. Se na minha adolescência eu era uma draga de best sellers na biblioteca, em minha idade adulta estagnei. Dos meus vinte anos até agora li pouco mais de cinco livros, entre eles “O xangô de Baker Street” e “O homem bicentenário”. Preciso ler os clássicos, por mais herméticos que eles sejam. Ler os mais vendidos também, claro, se o preço ajudar. Ler tudo que me enobreça. E algumas bagaças também.
3 – ver o mar. Pra dizer a verdade, nunca achei necessário estar perto do oceano; uma de minhas bobagens pragmáticas. Sequer sei nadar! Só que ver o mar não tem nada a ver com nado, tem a ver com deslumbramento. E é tão fácil: basta ir à rodoviária de Campinas e entrar num busão pro litoral. Mas nada de sunga! Ninguém merece ver um gordo em trajes de banho.
4 – beijar, beijar e beijar. Nunca senti tanta falta dessa troca de saliva quanto em 2006. Esse ano que finda foi o mais produtivo sexualmente falando, mas por motivos que fogem de minha compreensão encontrei a parte da população que não beija. Lábios sedentos, apresentem-se!
5 – voltar a Porto Alegre. Foi um de meus impulsos mais produtivos; conheci um povo diferente do estereótipo “brancos racistas e metidos a besta” que era obrigado a ouvir de meus colegas ao externar meu desejo em conhecer o Rio Grande do Sul, desejo que guardava em mim desde meus 15 anos. Feliz impulso que me fez arrumar uma mala, pegar a estrada e conhecer pessoalmente a pessoa que mudou perspectivas importantes de minha vida (nem vem, Janio, é de você que eu falo). Eu vou voltar. Preciso conhecer o que não tive oportunidade de ver na primeira vez.

As cinco coisas que ninguém sabe sobre mim

1 – quando estou nervoso ou excitado ou ansioso, mordo a parte de fora do meu punho esquerdo fortemente. Essa autoflagelação era mais comum entre meus 12 e 28 anos, um período de descobertas e ódios extremos. Hoje esse hábito reduziu-se a quase nada. Mas quase, como sabiamente disse Roberto Carlos, também é mais um detalhe.
2 – por força de minha solidão sempre me fiz de forte e auto-suficiente. Emulo essa pujança tão bem que todos me deixam só e me acostumei a isso. Às vezes, contudo, gostaria de ter um colo onde pudesse recostar minha cabeça, ou braços que me acolhessem.
3 – adoro salada de rúcula. Adoro! Se em um churrasco faltar carne, eu até entendo. Mas rúcula? Nem pensar.
4 – amor, amor MESMO só senti pela minha mãe, apesar do abandono, pelo meu pai, apesar do alcoolismo, pelos meus irmãos, apesar da indiferença, pelo Janio, por tudo que ele representou, pela Maria Ângela, apesar das chacotas, e por alguém cujo nome não posso dizer, por me ensinar o que é sofrer por um amor não correspondido. Espero que em 2007 esse rol de amores aumente.
5 – gosto de rir, mas também de chorar.

Cinco quase nomes do meu novo blog

1 – “Memórias num velho computador”
2 – “Memórias do pó”
3 – “Janela lateral”
4 – “Tudo, nada e mais alguma coisa”
5 – “Respiro, logo existo”

Cinco frases que eu adoraria dizer, se tivesse oportunidade

1 – “Me dá um beijo, porra!”
2 – “O referido é verdade e dou fé”
3 – “Ubi dubium, ibi libertas”
4 – “Adoro seus dedos em meu cabelo”
5 – “Eu te amo, sabia?”

28.12.06

Gotas e sonhos

Ao identificar o ursinho Pooh com asas, senti falta de minha inocência. Vi um morcego e o Tutubarão também. O céu cheio de nuvens era uma tela onde o vento fazia as vezes de pincel. Sentados nos terrenos gramados eu e meus irmãos descrevíamos cada forma que as nuvens tomavam. Carros e cavalos alados eram comuns, anjos e animais domésticos variados, amálgamas improváveis (“olha, Sid, é você com rodas de trator!”).
Quando um terreno nos oferecia um monte de areia, lá estava eu, criando estradas, túneis e pontes para meus carrinhos, verdadeiros prodígios arquitetônicos. E tal qual os terríveis monstros que Spectreman combatia, eu os destruía com pisadas e socos quando ouvia “Nei, vem tomar banho pra jantar!”.
Nem sempre o serviço de água era eficiente em minha infância, mas nem isso era empecilho para a diversão. A água não vinha na torneira? Hora de ir à bica d’água! Mãe, às vezes pai, tio e meus irmãos nos armávamos de baldes e garrafões de vinho vazios e nos dirigíamos a uma edícula próxima ao córrego Belchior, encher os recipientes e nos divertir no mais próximo de um parque aquático que tínhamos. Não havia verão que resistisse à refrescância de águas outrora limpas, entre gritos de êxtase.

Evidente que hoje ainda há resquícios desses anos pueris, mas infelizmente (ou não, dependendo da dose) as pimentas do cinismo e do sarcasmo temperam nossa visão e percepção. Não nos basta vermos pombas e montanhas formadas pelas nuvens; temos que saber que nuvens são feitas de gotículas de água evaporada e condensada e caso vejamos alguma forma temos que compará-la a um quadro de Vermeer, Goya, Boticelli. Se antes a chuva inesperada era motivo para pularmos nas poças, hoje nos irritamos se sujamos nossos tênis e tamancos. O pôr-do-sol era a promessa de mais um dia de arruaça, diferente de hoje, a confirmação de um dia a menos.

É inevitável sermos mais experientes e cínicos; nosso cérebro assimila o mundo com níveis de discernimento cada vez maiores. Só uma coisa resta: uma pequena nesga, uma pulga do que foi nossa ingenuidade. É quando nos pegamos cantando algo pertencente à nossa infância com os olhos marejados – no meu caso, “todo dia é dia/ toda hora é hora/ de saber que esse mundo é seu./ Se você for amigo e companheiro/ com alegria e imaginação,/ vivendo, sorrindo/ criando e rindo/ será muito feliz e todos serão também...” - , ou quando esquecemos que nossa roupa é da marca X e nos esbaldamos debaixo de um toró inesperado. Quando rimos de piadas antigas e puras como se a ouvíssemos pela primeira vez; quando saboreamos uma bobagem bem temperada com gosto de fogão esmaltado ou de lenha.

Ou quando vemos morcegos planando dentro de um donut que está para ser mordido pelo Mickey, estranhamente com uma capa de super-herói.


Sabe, no fim de ano fico extremamente sentimental. Pensei que os anos mudariam isso, mas vejo que não. Quem sofre é meu blog. Ainda bem que ele aceita meia dúzia de qualquer coisa. Mesmo.


Janio, meu filho, acabei de ler sua convocação. Farei a tal lista antes do fim desse ano par. Mas acho que cinco objetivos são demais. Enfim... o que você não me pede chorando que eu não faça sorrindo?
A propósito, que negócio é esse de acabar com o sorvete de pistache de Porto Alegre? Não se atreva a fazer o mesmo aqui em Indaiatuba...

21.12.06

O beijo

Meu caminho habitual cheira a pastel e algodão das toalhas no varal; tem cores primárias pintadas nos muros e pinceladas vivas em detalhes texturizados. Meu caminho faz parte da rotina que me acompanha das cinco da manhã às dez da noite. Rotina iluminada parcialmente pela luz da lua, pelas luzes de vapor de sódio e finalmente pela aurora para depois o ciclo ser refeito ao contrário. Meia década e pouca coisa fugiu do roteiro escrito sabe-se lá por quem no qual atuo. É uma segurança que me abraçou e que aceitei como parte de meus dias modorrentos.

Anteontem, contudo, alguns sons destoaram da normalidade. Seis da manhã, os pardais piavam excitados e as folhas das árvores onde eles estavam farfalhavam como sempre. Um ronco de motor diesel prenunciava o ônibus circular com poucos passageiros sonolentos. Súbito... tec, tec, tec. Um instrumento de madeira tateava a calçada impaciente enquanto pés arrastavam a sola de uma papete carcomida. O dono dos pés tem voz grave, como que saída do fosso de almas e disse, clara e fortemente:
- Me dá um beijo, porra!

A frase, fora do contexto habitual, fez meu pescoço direcionar minha cabeça ao som. Vi um homem, na casa dos 60 anos, talvez um pouco mais. Cabelos grisalhos emplastrados para trás, olhos pretos reluzentes, quase livros. Não, bibliotecas. Rosto arredondado, barba completamente branca e uma cicatriz sobre a sobrancelha esquerda, provavelmente proveniente de um caco qualquer, haja vista a irregularidade da marca. As marcas do tempo combinavam com seu jeito rude e sábio. Toda essa observação rápida não impediu o choque ao ouvir a ordem, repetida em tom mais alto e deveras áspero:
- Me dá logo esse beijo, porra!

Caminhando estava quando ouvi, caminhando continuei ao decidir que fingiria que não era comigo. Olhei célere para o horizonte de cumeeiras e apressei meu passo na direção de minha normalidade. Meus ouvidos, contudo, captavam cada sílaba dita com firmeza por aquele velho estranho, nos dois sentidos da palavra.
- Como é, esse beijo sai ou não sai?


A volta para casa teve os mesmos ingredientes dos outros dias, acrescida do medo. Medo de me deparar com aquele sujeito e seu pedido. Vigiei minha rotina: os carros, os passos apressados, as sacolas de compras, o cheiro de cerveja. Um suspiro de alívio profundo ao ver que tudo era como antes. Meu cérebro se acalmou e determinou a efemeridade da loucura daquele homem. Tudo voltaria à modorra aconchegante.

Ontem. Meus passos eram guiados pela música que não saía de minha cabeça desde alguns dias. A coreografia de meus passos ritmados lembrava a cena inicial de “Os embalos de Sábado à noite”, mas com trilha sonora diferente. Esbocei um sorriso, sorriso que logo foi apagado com borracha. A borracha do tec, tec, tec de uma bengala. Ela não era mais impaciente, era vigorosa. TEC. TEC. TEC. Não quis acreditar nem me virar e nem foi preciso: a voz anunciou o que eu não queria ver:
- Me dá um beijo, porra!

Impossível. Ele era apenas um velho maluco que não deveria estar ali por dois dias consecutivos! Ele deveria ter sido defenestrado da realidade ao pedir um beijo a outro estranho durante o dia anterior! O pânico quase me paralisou enquanto ele vociferava, não com insanidade, mas com o rigor de um coronel:
- Vamos, não tenho o dia todo e nem você, caralho! Me dá logo esse beijo!
Sorte minha que meus acessos de pânico são raros e meu corpo, mostrando que é mais inteligente do que eu, me pôs para longe do dono da voz. Passos quase corridos, enquanto o coração batia no compasso da bengala. Tec, tec, tec. Não senti os odores, não vi as cores, não ouvi a música recorrente. Tudo era abafado pela voz. A voz do caos que insistia em não respeitar minha rotina tão cautelosamente mantida entre muros de ignorância piedosa:
- Volta aqui e me dá logo esse beijo!


Hoje, três e meia da manhã. Meus olhos verificam as frestas iluminadas pela lua e se acostumam com as silhuetas dos móveis na escuridão. Minha cama toca a sinfonia de rangidos que eu raramente ouvia graças ao meu sono sempre tranqüilo. Não, definitivamente não é agradável a vida de um insone. E tudo culpa daquele velho.

Por que, dentre tantas pessoas, ele me escolheu? O que ele deseja ao ordenar que outro homem lhe dê um beijo? E por que ninguém mandou prendê-lo durante o dia? Será que ele faz isso apenas comigo? Minha nossa, muitas perguntas, inúmeras paranóias e uma noite desperto. Maldito velho, que com meia dúzia de frases pôs abaixo uma vida pacífica!

Tinha que mudar minha rota, isso mesmo. Escolher outro caminho para ir ao trabalho e assim evitar a terrível possibilidade do encontro. Deixe-me ver... posso tomar o caminho da esquerda, descer duas quadras e depois de uns 500 metros voltar à rota original. Isso tomaria uns dez minutos a mais mas... espere um momento!

Por que eu teria que mudar minha rotina? Aquele era MEU trajeto, MINHA rotina. Não vou sair mais cedo de casa por causa de um velho vindo sei lá de onde, querendo mostrar a todos que é gay e tem orgulho disso, ou seja lá o que ele queira provar. Deus, a falta de sono estava me deixando ridículo! Talvez ele nem esteja mais no meio do caminho, e se estiver é só dar-lhe um senhor esporro e continuar minha vida. Isso mesmo, um banho e novas roupas. Hoje isso terá um fim e poderei, enfim, retomar a calma de meus dias.

Seis horas. Meus olhos injetados não notam os tons vermelhos do horizonte, minhas narinas lembram dos pastéis mas não me transmitem as agradáveis sensações sob a língua. Me envolvo num silêncio que sequer os pardais ousam questionar. Meus passos são firmes e o café sem açúcar e extremamente preto me deixa alerta. Mas não o vejo. Ele não está ao alcance de minha visão. Nenhum vislumbre, nenhuma voz. Nada.

Eu, sempre contido, solto uma risada de escárnio. Um cachorro late, assustado. Uma senhora que cruzava meu caminho solta um olhar de reprovação. Enfim o conhecido. Enfim a volta dos dias modorrentos. Agora me permito escutar os sons. Piu, piu, piu. Au, au, au. Crunch. Splash. Tec, tec, tec...

Tec, tec, tec?

De novo, não. Não esse som destoante. Muito bem, só ouvi a bengala e não estou vendo o autor do barulho, por isso posso conti...
- Me dá um beijo, porra!
Raiva. Há muito eu não a sentia mas jamais esqueço como ela é. Ela retorceu meu estômago, fez meu sangue aquecer e escreveu rapidamente uma lauda de xingamentos em meu córtex. Virei meu corpo na direção do dono da frase e vi a barba, os olhos faiscantes, a bengala e uma elegância no traje incompatível com a grossura da retórica: a calça bem cortada, o terno (caramba, será que esse infeliz tinha grana para comprar um Ermenegildo Zegna?). Meu passo rápido que usei para fugir no dia anterior foi desafiador na direção do velho. Meus olhos davam a impressão de querer pular e esganá-lo e meu dedo em riste apontou para o nariz. Meu sermão só poderia começar com a famosa frase:
- Escuta aqui...
Ele não escutou. Simplesmente tirou meu dedo da frente de seu rosto, agarrou meu ombro esquerdo e vociferou:
- Não, seu merda, escuta você! Eu quero que você me beije, caralho!
Tão rápido quanto seu movimento ao retirar meu dedo da frente dele foi o movimento seguinte: sua mão no ombro alcançou minha nuca e forçou a aproximação de meu rosto ao dele. A surpresa não me permitiu ser veloz e ao notar isso, ele aproximou seus lábios dos meus e enfiou toda a língua dele em minha boca.

De olhos abertos vi, aterrorizado, o velho sorvendo minha saliva em transe, olhos fechados, pela primeira vez com doçura na face carcomida pelo tempo. Ouvi o pam! seco da bengala largada na calçada e senti suas mãos em minhas costas, na massagem sensual de quem beija. Eu deveria tentar escapar, demonstrar o asco teoricamente natural numa situação bizarra como essa e meus braços queriam se ver livres de meu tronco, deixando minhas mãos bailando desengonçadas.

Só que o calor da raiva foi substituído pelo calor daquela língua áspera e dos toques corretos em meu corpo antes retesado. Não é natural, não é certo... mas é bom. Um beijo, o beijo que ele tanto queria e foi roubado com argúcia e executado com mestria. Deus, esse velho beija divinamente bem! Minhas mãos desistiram da coreografia e se alojaram na parte de trás do terno. Não era certo, não era natural... mas todos esses medos esvaíram-se no beijo mais sincero que recebi em décadas. Nem meus beijos trocados com Rosana eram assim. Nada do que fiz até hoje, nessa vida certa e sem emoções, era assim. Nossa união no meio da rua, numa manhã de sexta, poderia não ser aceita. Mas era boa a sensação.

Longos instantes depois nos separamos. Seu rosto retomou o ar taciturno, o meu queria definir o que expressar. Súbito, plaft! Sinto uma dor no lado direito do rosto, graças a um tapa bem dado. Tão bem dado quanto o beijo. Não vi o movimento do braço e só senti o tabefe na dor. Não sabia o que dizer ou sentir, minha estupefação era palpável enquanto ouvia sua voz áspera:
- Seu viadinho de merda!
Ato contínuo, ele apanhou a bengala depositada no chão, sem tirar os olhos de mim. Ao pegá-la, virou-se abruptamente e caminhou para longe de mim. Tec. Tec. Tec. Não havia mais nervosismo ou impaciência no ritmo das batidas. Havia apenas a estátua de sal que eu havia me tornado atrás dele, sem um mísero sentimento útil numa casca despreparada para o inesperado.

Tec. Ele pára, se detém por alguns instantes e vira parcialmente a cabeça, com um sorriso satisfeito. Olho entorpecido, esperando mais um impropério. Ele ergue os olhos, me fita candidamente e diz:
- Você beija bem.

15.12.06

A inveja e meu blog

Pensei, em meus loucos delírios, que poderia manter um blog com a freqüência de outrora. Sabe, quando eu tinha PC em casa e uma conexão discada que me permitia pelo menos ir ao quadro de postagens. Afinal, tinha um computador teoricamente ocioso à minha disposição e alguns poucos minutos de paz em meu almoço.

Mas a inveja é algo estranho.

São poucas as coisas que gosto mesmo de fazer. Escrever é uma delas. Desde meus primórdios, em cadernos lotados de "poemas" e "contos", fingindo que eu era tão bom quanto Rubem Braga. Graças ao bom pai essa empáfia foi embora junto com meus tenros anos, mas essa paixão se manteve. Por ser algo feito por puro prazer, não havia grandes ambições.

Porém... ao mostrar meus escritos, involuntariamente (afinal, não estava envolto em uma crisálida e sempre havia alguém sobre meu ombro) e sem pretensão, descobri que causo inveja. Ouvi as conversinhas entre cochichos, os olhares e os "puffs" de impaciência. e se há algo com que não consigo lidar com propriedade é esse lado mesquinho das pessoas.

Por isso há um bom tempo não posto mais nada. Bem, há as prioridades, como atender as pacientes (impacientes seria o termo correto) e suas limitações, mas ainda assim dava para escrever um ou outro parágrafo. Infelizmente os olhares sobre os ombros se multiplicaram.

Aliado a isso, minha tentativa de comprar um micro usado não deu certo. E meu pobre blog, que pensei manter sempre alimentado, vive de migalhas binárias.

Bem, escrever de supetão não é minha especialidade, não sou Hunter S. Thompson. Mas se digitar direto na caixa de postagem enquanto navego num cyber for a única maneira de manter meu diário com algumas palavras... bem, vou tentar.

E esperar que eu aprenda a lidar com a inveja alheia. Sabe, sinto falta de colocar numa planilha minhas loucuras e sintaxe pobre, porém limpa e honesta.

Não abandonarei minha meia dúzia de coisas assim, no meio da poeira.

14.11.06

Pobres moços...

Dividia uma mesa de metal em frente a um quiosque com um colega numa tarde de sábado, onde degustávamos um lanche prensado, especialidade indaiatubana – digo isso pois nas poucas cidades que visitei havia tudo, menos lanches prensados. Entre uma dentada e um gole de tubaína (que me perdoem os amantes da Coca Cola, mas não há nada melhor para acompanhar uma bomba calórica como um x-salada do que uma tubaína – a casa recomenda a garrafa de 600 ml) submetíamos vários assuntos ao nosso impiedoso olhar leigo. No meio do festival hortifruti, a inevitável discussão musical. Somos ambos leigos que apenas gostamos ou não do que ouvimos, mas resolvemos achar que estávamos discutindo a pauta de fechamento da Ilustrada, tudo por causa de Lupicínio Rodrigues.

Ao elogiar as letras contundentes e, em minha opinião, lindas do bardo gaúcho (tudo bem, ele era gremista. O cara era tão bom que compôs um dos hinos de time de futebol mais bonitos do Brasil. O do Grêmio... ui!), principalmente “Nunca”, meu colega rebateu: “ah, mas ele é adorador de Satã!”. Armei minha cara “mas hein?” e perguntei de onde ele tinha tirado essa sandice. “De uma música dele, uai. A tal de ‘Esses Moços’”.

Eu deveria estar acostumado com o obscurantismo alheio; afinal, são anos convivendo com pessoas cujos horizontes não ultrapassam o mar de cerveja e suor. Se eu ouvisse algo semelhante em uma hipotética discussão religiosa eu simplesmente me calaria (não é covardia, é apenas ausência de paciência. Não vou colocar pontos de vista discordantes para quem não sabe ouvir um “não” de vez em quando). No entanto ele simplesmente reduziu um dos artífices (putz, sempre quis dizer ou escrever “artífices”!) da dor-de-cotovelo elegante a um estereótipo religioso por causa do verso “saibam que deixam o céu por ser escuro, e vão ao inferno à procura de luz”. Resolvi bancar o, hã, advogado do diabo.

Visivelmente contrariado, rebati com minha retórica de beco mais ou menos como vou escrever agora:

Só porquê alguém usa a palavra “inferno” em uma frase não significa que ele seja satanista. E mesmo que ele fosse, acredito que todos tenham o direito à livre expressão de crença religiosa; se por causa dessa crença ele cometer um crime, que sejam aplicadas as penas da lei em vigor. Creio que Lupicínio usou os arquétipos do céu e inferno como metáforas para o conhecimento adquirido durante a vida. O “céu escuro” é o reino das certezas que temos, um lugar tranqüilo onde andamos sem necessidade de guias. Os moços, impacientes e imaturos, não aceitam a calma, pois acham que podem mudar o mundo (atire o primeiro piercing quem não era assim) e procuram, atônitos como mariposas, abismos luminosos. O “inferno”. Ou seja, é apenas a síntese do amadurecimento humano.

O parágrafo acima é um resumo; creio que até babei entre uma frase e outra, tamanha minha convicção. Terminando o monólogo, aguardava uma réplica apaixonada, um contra-argumento que nos fizesse varar o sábado num longo sarau sobre a vida, a morte e o papel das batatas fritas nesse processo todo, mas como todo ser obscurantista que vê suas frágeis idéias sobre o mundo desabar ante um punhado de areia, ele foi previsivelmente (e irritantemente) anticlimático, dizendo: “é... que bom que ele também fez aquela “Nervos de Aço” também, né?”.

Não me restou alternativa. O assunto teve que morrer depois desse adeus risível. Tomei mais uma tubaína – ele mudou pra cerveja – e nos despedimos entre sorrisos e promessas. No caminho de volta pra casa percebi que gastei minha pobre retórica com um sujeito que se recusava a aceitar que Gino e Geno estavam cantando um sonoro palavrão na melodia “Bebo pa carai” (sic) argumentando que “no Mato Grosso tem uma pinga com esse nome, eu juro!”.

Um dia eu aprendo. Juro que aprendo.

2.11.06

As colinas estão vivas - a missão

Locução de Dirceu Rabelo: “Uma Rádio Neural linha dura, batendo de frente com uma banda de nü metal barra pesada! Hoje, na Sessão da Tarde!”.


- “Michelle”, The Beatles – como qualquer ser humano nascido no final da década de 1960 e morador do interior, só conheci os besouros do ritmo (é, ficou horrível mesmo. Quem manda transportar uma piada interna pro blog?) em programas de flashback, e ainda assim com aquelas músicas (você leva “Ob-la-di, ob-la-da” a sério?) que os bêbados estraçalham em videokês, tipo “Let it be”, “Hey Jude”, “The long and widing road” – essa é a canção rainha da embromation society, culpa do Phil Spector e seus violinos. Por muito tempo não entendi o porquê de tanta adoração por caras que tinham a ousadia de cantar “Ob-la-di, ob-la-da” até ouvir “Rubber Soul”. É estranho nunca ter ouvido nada do período chamado beatlemania em minha adolescência, mas de certa forma foi bom. Pude ouvir os ingleses atravessando a porta da histeria e metendo o pé na onda lisérgica (Sgt. Pepper’s, alguém?) fazendo uma ponte confortável para que os fãs não debandassem. É claro que o lado John Lennon sobressai, afinal, ele era o cérebro e a emoção, quase um artesão pop. As faixas “Girl” (aquela... como direi? Aquela sugadinha...), “Run for your life” e “Norwegian Wood” são exemplos clássicos. Só que sou atraído pelas pessoas que se esforçam para não serem totalmente eclipsadas. E Paul McCartney era isso: um cara que queria somente fazer músicas bonitas e assoviáveis porque sabia que daria ao mundo apenas isso. E foi fazendo “apenas isso” que ele concebeu a balada “Michelle”, uma canção de amor como todas deveriam ser, simples e arrebatadora. Como ficar indiferente a alguém que se esforça para dizer meia dúzia de palavras numa língua estrangeira para a mulher que ama?
E falando no Macca...
- “Silly love song”, Paul McCartney – Lennon cuspiu em seu passado, foi viver com Yoko Ono (cá entre nós, ele pode ter sido um pusta compositor, mas não sacava nada de mulher!) e atraiu gente adorável como agentes da CIA e Mark Chapman ao seu redor. A Paul restou apenas criar asas e tentar voar (ok, mais um trocadalho do carilho infame). Ele nunca foi levado a sério, não nos mesmos moldes do seu ex-parceiro de banda, por isso ele optou em ser pop.
Formou os Wings, levou a sua esposa Linda Eastman a tiracolo e compôs um punhado de músicas para bater o pezinho enquanto assoviamos. A minha predileta é “Silly...” por um motivo banal: foi a primeira música onde eu senti o som do baixo em meu peito. Meu Inglês é inexistente (não se iludam, apenas copio o que vejo nas letras que ocasionalmente vejo em revistas e na Internet), o que não me impediu de curtir esse libelo irônico do romântico incurável. Como ele mesmo disse, what’s wrong with that?
- “O beijo e a reza”, Skank – tenho que concordar com alguns críticos: em alguns anos específicos há uma conjugação de fatores (o alinhamento dos astros, o valor das ações da Petrobrás, o ritmo da piracema do tucunaré...) que os transformam em anos memoráveis para a música popular. 1994 é um deles. Álbuns inspirados vindos de toda parte faziam o ouvinte de rádio poperô ir ao nirvana. Dentre os CD’s, um de uma banda de mineiros que curtiam um quase-reaggae, rotulado de dancehall (sei lá o que é isso) em seu segundo trabalho. “Calango” viria a se tornar paradigma de sucesso, haja vista as bandas que copiavam descaradamente o som da banda na época. Um dos poucos discos que venderam mais de 1 milhão de cópias na era do CD (e antes da explosão do MP3) no Brasil, as 11 faixas foram quase todas executadas “nas AM e FM dos elevador”.
Comprei o disco (era uma época propícia financeiramente pra mim) e coloquei pra rodar. Estava muito divertido e dançante; súbito a quarta faixa se apresenta pra mim num sutil riff de guitarra, embalado em uma cama de baixo e bateria mesmerizante. O naipe de metais chorou alegre e em uníssono. Foi aí que a música me pegou: adoro trombones e pistões. Já estava anestesiado quando Samuel Rosa ainda se atreve a declamar uma rara poesia popular, daquelas despidas de pretensão e pompa e recheadas de lirismo. “Me dá um beijo, porque o beijo é uma reza pro marujo que se preza”. Ela agora está junta no meu pódio particular com “Por isso corro demais”. E nunca fiquei tão feliz em ter comprado um CD que valeu cada centavo.
- “A dois passos do paraíso”, Blitz – Final de 1982. O prefeito da cidade teve um arroubo reformista e decidiu urbanizar alguns espaços criando praças e trocando a tubulação de água e esgoto. Para mim e meus irmãos significava uma coisa: montes de terra pra brincar.
Numa ensolarada tarde eu e meus três irmãos resolvemos pegar mangas. Há algumas mangueiras no terreno atrás do hospital Augusto de Oliveira Camargo, antiqüíssimas, que formam uma pequena trilha e são a salvação para os amantes de uma boa manga espada – isso é, quando os mortos de fome deixam os frutos amadurecer. No meio do caminho, as cordilheiras de terra ora roxa, ora avermelhada, que escalávamos com alegria. Chegando perto das árvores, uma visão que nos deixou excitados: morros de terra ainda maiores! Por um instante esquecemos nosso primeiro objetivo e resolvemos escalar nosso Everest.
Nessa época a “escadinha” que simbolizava a ordem de nossos nascimentos era visual e nos postamos em fila indiana na ordem: eu na frente, Andréa logo atrás, depois Kátia e Wagner. Nossas sombras projetadas no chão eram quase personagens independentes. Olhando as sombras me lembrei de uma música e comecei a cantar em voz alta: “Longe de casa há mais de uma semana...”. De repente formamos, sem combinação prévia, um coral: “... tô milhas e milhas distante do meu amor...”. Andamos por todo o trecho de valetas abertas cantando, felizes, e pela primeira e única vez compartilhando de um momento em conjunto.
Há um mês, mais ou menos, estávamos todos juntos de novo por causa do aniversário de uma de minhas sobrinhas (tenho seis... olha, que coincidência!). Como sei que meus irmãos não se sentem muito confortáveis na minha presença me limitei a ficar pouco perto deles enquanto conversavam. Rádio ligado, eu com um copo descartável na mão, ouvindo tanto o burburinho quanto as músicas. Subitamente uma slide guitar soa seguida da voz de Evandro Mesquita. Andréa, Kátia e Wagner silenciam até o momento do refrão, novamente cantado por nós: “Estou a dois passos do paraíso, não sei se vou voltar...”. No final nos juntamos naturalmente. “Nossa, você se lembra daquele dia na mangueira, Sid? Nunca vou esquecer!”, disseram, de uma forma ou de outra, meus três irmãos.
É. Eu também nunca vou esquecer.

1.11.06

Meu pai

“Nei, vai chamar seu pai, o almoço tá pronto”. Esse pedido feito pela minha mãe era comum na minha infância, pois nós sabíamos onde ele estava: no armazém do seu Gentil, tomando uns goles de cachaça. Calçava meus chinelos e ia levantando poeira e cantarolando.
Num desses dias, com cinco anos completos – adiantava-se o mês de setembro – me aproximei da venda, tirei os chinelos para entrar (uma das babaquices típicas desse que vos tecla) e me dirigi a ele, que lia meu pensamento e falava, com sua voz grave: “já vou”. Ato contínuo, ele se virou para um de seus companheiros de bebida e vaticinou, me abraçando (coisa incomum, já que normalmente nem a mão ele me dava): “esse é meu filho! Ele já sabe ler, gente!”. Morto de vergonha, olhando pro piso avermelhado, eu nada dizia enquanto ele punha em minhas mãos a edição do jornal O Estado de S. Paulo do dia e me disse para ler o corpo da manchete, cujo teor não me lembro.
No final da leitura houve um silêncio incrédulo, seguido de tapas doídos em minhas costas e exclamações exageradas. No final, meu pai pede um litro de vinho daqueles rosados e desafia: “quer ver como meu filhão é macho?”, enquanto tirava a rolha e despejava parte do conteúdo em um copo americano.
Meu pai pegou o copo cheio, colocou em minha mão e disse, seco: “bebe”. Com medo que ele me desse um tapa levei a borda até minha boca. Ao experimentar, uma surpresa: era doce. Dulcíssimo. O sabor da uva embebida em calda de açúcar – foi o que me pareceu – envolveu minha língua e meu palato e sorvi de um só gole. Uma exclamação geral de aprovação, seguido de mais um abraço e mais vinho despejado no copo. Eu, que só estava feliz em ter agradado meu pai, não me fiz de rogado e repeti a talagada.
Entre palavras de incentivo e risadas acabei bebendo o litro inteiro. Falei pelos cotovelos – pelo menos para meus padrões -, ria de delclarações simples e o doce da bebida me agradou, inclusive durante meu primeiro arroto público. Ao ver o fim da garrafa ele pediu ao Gentil pra marcar na caderneta e finalmente decidiu ir almoçar.
Ao dar meu primeiro passo, não consegui determinar a distância entre a sola de meu pé e o chão. Meu corpo pendeu para frente, enquanto minha cabeça latejava; súbito, o mundo começou a girar e eu tentava acompanhar o novo ritmo do mundo tropeçando em meu próprio caminhar. Minhas têmporas pulavam e tudo o que eu conseguia fazer era rir e tropeçar, enquanto meu pai, consciente da piada que ele perpetrou, ria como criança.
Chegando em casa, cai-não-cai, minha mãe observou meu estado, horrorizada. Senti que seu primeiro ímpeto foi me bater, tamanho o ódio que vi nos olhos dela. Contudo, ao ver meu estado, que já havia mudado da euforia para a letargia depressiva da dor e ouvindo as gargalhadas do pai, ela entendeu e me estendeu a mão, me levando para debaixo do chuveiro. Eu gemia “eu tô bem, mãe” enquanto ela me banhava. Eu insistia em gemer “eu tô bem, mãe” enquanto ela trocava minha roupa. Quando ela me pôs em minha cama, eu vi o teto girar. Ao fechar os olhos, o mundo todo girou. Definitivamente eu não estava bem. E meu pai ria enquanto minha mãe o repreendia. “Agora ele virou homem”, sacramentou.


Aprendi a jogar pião sozinho. Quando pedi ao meu pai para ensinar, ele apenas disse “não enche”. Tentei interagir com meus vizinhos, mas eles não eram tão divertidos quanto meus amigos imaginários. Um desses estranhos sem nome me ensinou as regras do jogo de bola de gude (burquinha, para nós) e de vez em quando eu me pegava entre alguns meninos e meninas com uma bolinha entre meus dedos.
Num sábado dos meus seis anos meu pai pegou sua caixa de ferramentas e começou a confeccionar algo com madeira; ele tinha um talento para carpintaria nato. Um começo de curiosidade nasceu em mim, mas logo me lembrei como eu era sempre rechaçado, por isso me contive e me ative a brincar num monte de areia com alguns bonequinhos que vinham nos doces de banana.
No dia seguinte, manhãzinha, após o café (e naquele dia havia pão caseiro!) meu pai me abordou com um sorriso e me disse: “toma, fiz pra você”. E o que ele fez foi um carretel de madeira com uma alavanca, as bordas em formato de estrela com 100 metros de linha de pipa, além de uma pipa vermelha de armação de bambu cuidadosamente trabalhada. Abestalhado, agradeci enquanto ele se afastava, indo para o armazém. Brinquei longas 4 horas, observando embevecido a dança da pipa no ar. Meus amigos imaginários foram solenemente esquecidos naquele dia.


No dia 31 de maio de 1990 eu, meus irmãos e meu tio estávamos em uma sala indefinida, sentados em um retângulo de concreto, dentro do hospital Augusto de Oliveira Camargo. Na nossa frente um corpo envolto em bandagens. Um funcionário chegou e pediu que nos aproximássemos. Perto, ele retirou as bandagens que encobriam o rosto. Era meu pai, sereno como se estivesse dormindo, mas com o rosto sem cor.
O choro veio sem convite. Entre lágrimas me lembrei da última semana de vida dele. Uma rotina triste e vergonhosa: o vício da bebida acabou com o homem forte que ele tinha sido, fazendo dele um ser que se arrastava pelo chão após duas doses de cachaça. Ninguém falava nada acintosamente, só os risinhos denunciavam o que meus vizinhos pensavam enquanto eu ou um de meus irmãos o ajudava a voltar pra casa.
Por mais triste que o momento tenha sido, não consegui deixar de pensar: “a morte foi piedosa; os amigos de pinga, não”.


Segundo domingo de setembro. Passeio pela feira, pesquisando preços e observando o movimento quando um senhor judiado pelo tempo me fita firme, como se forçando o córtex cerebral em busca de uma lembrança. Retribuo o olhar esperando a abordagem, que não tarda:
“Escuta, você não é o filho do Zé Trindade?”, pergunta o homem. Não pude conter o sorriso, surpreso, e confirmei. “Caramba, você não mudou nada! E o seu pai, como está?”, retruca, entusiasmado. Ao dizer que há 16 anos ele morreu quem se surpreende é ele, desfiando as memórias. “Seu pai era fortão, trabalhador pra caramba! Que pedreiro bom ele era! A gente trabalhou junto com o Móca!”. E os sinais de exclamação não estão aí à toa.

Tenho quase 40 anos, vida própria, personalidade, ainda que fragmentada, gostos cultivados durante décadas de experiência; ainda assim, ainda sou e serei o filho do Zé Trindade.

6.10.06

A arte de namorar homem

O peso da mudança parlamentar está sob ombros despreparados. Não sabemos legislar mas temos que escolher quem legisle por nós. Teremos que desenvolver uma relação de confiança com homens e mulheres cujo passado não conhecemos plenamente. A tal vida pública do candidato muda dependendo da fonte pesquisada. O cidadão comum (dentre os quais me incluo) não consegue ter acesso pleno à informação porque ou ela é decodificada pelos interesses da mídia no momento – esqueça a tal objetividade, isso é apenas uma palavra bonita usada em propagandas – ou por simples falta de meios de propagação.

Não é justo termos que escolher “o melhor para nosso país” de dois em dois anos apenas vendo e ouvindo o horário eleitoral gratuito (a única fonte de informação para a imensa maioria, quer os intelectuais gostem ou não). A imprensa escrita tem tradição em reportagens investigativas (apesar da censura camuflada como “linha editorial”), mas graças à inexistência de uma cultura de formação de leitores aliada ao preço, os leitores de jornais e revistas se restringem à classe média mais “abonada” – por conta da desigualdade social, qualquer pessoa que ganhe mais de 3000 reais é considerada “bem de vida”.

Quando esse despreparo leva homens e mulheres que eventualmente envolvem-se em casos de corrupção e malversação do bem público, parte da culpa é atribuída ao eleitor. Culpa inescapável, mas que poderia ser evitada se houvesse interesse genuíno em mudar tanto as fontes de informação quanto o sistema político brasileiro. Há a impressão que toda mazela é deixada de propósito “para depois” para que seja usada como combustível para as promessas bianuais: a reforma tributária que nunca encontra consenso, a reforma política que não sai da mente dos analistas políticos, a punição aos crimes do colarinho branco que nunca ultrapassa os muros das renúncias pós-CPI’s.

Não é justo categorizar os políticos, mas não podemos negar que a atual conjuntura é propícia para o aparecimento de bandas podres. Um recurso legítimo como a imunidade parlamentar é utilizada como proteção a atos criminosos e verborragias ofensivas (você acha que Heloísa Helena ou Antonio Carlos Magalhães xingariam com tanta desenvoltura seus desafetos políticos e pessoais se não fosse a imunidade?). Um neófito bem intencionado vê o esquema viciado que ele herdou, e toma duas atitudes: ou entra na dança, pois “as coisas já estavam assim quando eu cheguei” ou briga uma luta com ares quixotescos, onde mantém a integridade inicial mas vai do nada (as comissões de ética, as CPMI’s) pra lugar nenhum (as renúncias e rodízios de pizza).

Rubem Braga chamou a política de “a arte de namorar homem”, graças aos cochichos e abraços entre parlamentares. Essa arte do sussurro ao pé do ouvido infelizmente esconde de nós, principais interessados nas decisões advindas desse falar baixo, as informações necessárias para que depuremos as assembléias e o congresso. Resta ao povo, soberano, ser informado através dos horários eleitorais gratuitos.


Esse desabafo estava sendo escrito antes da eleição e só não foi publicado antes por não conseguir concluir o raciocínio, ainda que torto, entre um atendimento e outro. Esse apêndice está sendo escrito no dia dois de outubro, logo após a confirmação da eleição em segundo turno para presidente. Assistindo a cobertura da TV Bandeirantes e ouvindo a rádio CBN não pude evitar a irritação ao saber quais foram os deputados federias mais votados.

Depois de ler blogs conclamando o voto consciente, da bobagem que é votar nulo ou em branco, ver que a história recente de alguns candidatos não foi levada em consideração (pra não dizer da folha corrida de alguns recém-eleitos) é, no mínimo, frustrante. Quase caio na tentação da simplificação, justificável ao ver homens que foram presos ou renunciaram para escapar da cassação estarem de volta pelo voto popular. Ainda bem que no meio dessa patota há homens e mulheres honrados. Resta a eles continuarem assim, quixotescamente ou não. E aos que sabem o que fizeram com seu voto, resta ser um pouco mais pró-ativos.

Eu ainda acredito no ser humano. Com uma raiva do cacete, mas ainda acredito.

30.9.06

As colinas estão vivas

Diz-me o que ouves e te direi quem és. Esse aforismo adaptado resume a importância da música na vida. Em qualquer vida. Imagine nossos ancestrais batendo em qualquer pedra e apreciando a reverberação. Imagine a matemática a serviço das notas musicais. Imagine o primeiro chato que analisou os timbres que ouvia sob uma ótica subjetiva e publicou suas impressões para que todos apreciassem seu “bom gosto”. Música é ódio e amor.

Todos têm sua lista de favoritos. Nick Hornby encheu seu já polpudo cofrinho escrevendo um livro sobre suas 31 canções. Blogueiros de todas as partes reviraram o baú atrás de melodias e dividiram conosco, ávidos leitores, suas preferências e lembranças. Durante minhas obrigações rotineiras em meu trabalho (o período da tarde, quando guardo os prontuários das pacientes) minha Rádio Neural entra em ação e desencava algumas coisas. Minha vida se ressente da falta de uma trilha sonora, por isso meu cérebro, doravante chamado Rádio Neural (sempre quis dizer isso!) foi, é e será meu iPod. E meu disco rígido separou algumas faixas comentadas:

- Nona Sinfonia, Beethoven – mentira. Um cara como eu, que cresceu ouvindo os programas do Zé Bettio e do Eli Correa, não pode sequer fingir erudição. Só conheci música clássica na idade adulta! Vamos falar sério agora.
- “Meu mundo e nada mais”, Guilherme Arantes – tinha cinco anos e minha mãe assistia uma novela chamada “Anjo Mau”. Para variar, a trama não me apetecia – preferia o meu universo – mas sempre que um piano começava a tocar e a voz aguda anunciava: “quando eu fui ferido/ vi tudo mudar/ das verdades que eu sabia...”, me pegava gravando a letra e cantando a plenos pulmões entre a vegetação rasteira perto de casa. Mal sabia eu o quanto essa música seria importante pra mim.
- “You and I”, Kenny Rogers e Bee Gees – alguém se lembra dos folhetos com letras de músicas em Inglês e suas traduções que as escolas Fisk distribuíam? Eu reservava alguns minutos de minha ida à escola para pegá-los nos idos dos anos 1980. Essa canção açucarada tocava à exaustão nas rádios, em programas do tipo “Toque de amor”, onde um locutor com voz de travesseiro grunhia cartas de ouvintes supostamente apaixonados. E dá-lhe “Total Eclypse of the Heart”, “Making Love”, “Take my Breath Away”...
“You and I” não tinha um grande apelo sentimental pra mim; ela apenas foi a primeira música estrangeira que consegui cantar junto sem apelar pro embromation. Se bem que ao ouvir os irmãos Gibb fazendo vocalise e o senhor Rogers cantando “All the man I am, you are the reason for me, you help me understand...”, não sei bem porquê, eu olhava para um ponto fixo no horizonte e suspirava.
- “Estrada da vida”, Milionário e Zé Rico – ter um pai fã de música sertaneja deixa seqüelas em qualquer ser humano. Ser arrastado a um circo fuleiro para ver Pedro Bento e Zé da Estrada com seus ponchos, ouvir discussões febris sobre as modas de viola de Tião Carreiro e Pardinho, ter vizinhos que pensam que sabem cantar e tocar violão. Se hoje fujo como cachorro em dia de vacina das canções da lista de sucessos (ou, em Português, playlist) de rádios como a Laser FM, devo tudo isso a meu pai e sua obsessão pelo maior sucesso da dupla acima citada. Ver aquele sujeito de óculos escuros com a mão no ouvido à guisa de retorno não ajudou muito, também.
- “Por isso corro demais”, Roberto Carlos – a Jovem Guarda só tocava em programas de música antiga (em Português, flashback) quando eu era moleque. Ah, e na vitrola Sonata de meu tio também. Ele tinha vários LP’s e compactos daquela época e os tocava no último volume. Bem, quem teve uma vitrola portátil deve se lembrar os “dolorosos” decibéis que ela despejava (risinhos contidos). Nenhum dos cantores, bandas, conjuntos ou o que quer que tocasse tinha nome pra mim, apenas as músicas, porque mais do que as letras, mais do que as tais “guitarras” ou a atitude “contestadora”, o que me fez ficar fascinado foi o som do órgão Hammond.
Aquele choro em forma de instrumento musical me causa arrepios até hoje e nenhuma música, IMHO, utilizou o órgão tão bem quanto em “Por isso corro demais”. Numa época que o proclamado Rei (que mania essa de coroar reis e rainhas numa república, não?) escrevia letras verdadeiramente românticas e com conteúdo, quase poesias populares, o LP “Em Ritmo de Aventura” foi uma aula de música popular com alma, e “Por isso...” foi a magnum opus.
- “Nada tanto assim”, Kid Abelha – década de 1980, abertura, anistia, o ocaso da MPB como força musical única. Os cantores populares não souberam transformar sua vertente em estilo, graças à vergonha que tínhamos do nosso produto; eles foram tachados pejorativamente de “bregas”. Nesse vácuo, alguns cariocas e paulistas e suas guitarras cunharam o chamado Rock Brasil, um angu derivado do punk, ska, surf rock... enfim, decidiram que o era legal (ou, em Português, cool) vinha de fora e falava Inglês.
Nada disso impediu a lapidação de alguns hoje clássicos, para o bem e para o mal. Quem viveu essa época não pôde, evidentemente, contextualizar o momento histórico mas se hoje há tolerância à angústia juvenil cantada, muito disso se deve aos Paralamas, Legião Urbana, RPM, Ira, e ao Kid, que conseguiu sintetizar as dúvidas dos jovens perdidos e vítimas da moda da década (ou você acha que calças de popeline verde-limão, tênis multicoloridos e mullets são dignos de figurar na história?). “Eu sei de quase tudo um pouco, e quase tudo mal” vaticina a era do excesso de informação e da progressão continuada.

Façamos o seguinte: assim que eu lembrar de mais, eu escrevo algumas abobrinhas. As colinas estão vivas com o som da música!

29.9.06

Glicerol e ácidos graxos, parte dois

A raiva já passou. Em meu antigo e curto blog fiz um “manifesto” sobre a cultura da magreza que grassa a sociedade. Foi escrito com raiva e não me dou bem com ela, sabe? Costumo perder o controle. Bem, vamos começar do zero.

Sou um cara obeso desde que me conheço. Uma criança gordinha (nunca dei a entender, mas odiava quando me chamavam de “fofinho”. Hoje, dependendo de quem diga, eu curto. Vai entender...), meio desligada e feliz. Não era do tipo glutão, nunca fui. A dieta de minha família era frugal: chá ou café de manhã, pão três ou quatro vezes por semana, arroz, feijão, alguma verdura, carne de frango caipira ou um embutido barato ou um bife. Doces eram raros, graças ao preço proibitivo tanto do açúcar quanto dos doces naquela época (pelo menos para nossos padrões), o que não impedia minha avó de preparar o mais delicioso doce de abóbora do universo.

O estilo de vida – termo utilizado em larga escala hoje, geralmente como muleta sintática – da família Trindade era o habitual dos seres periféricos: trabalho pesado e distâncias percorridas a pé. Como eu não sabia andar de bicicleta, caminhava pela cidade alucinadamente. Pedi aos meus pais para me matricular numa escola no centro da cidade, o que me garantia uma hora de caminhada por dia.

Não gostava muito de esportes. Tentei ser goleiro de futebol de salão nas aulas de Educação Física. Apesar de meu esforço não consegui ser contaminado pelo vírus ludopédico. As corridas em volta da escola (em Português, Cooper. E não me venham com aquela piadinha do Cooper feito!) eram uma caceteação sem fim. Não tanto pela corrida em si, mas pelas frases de apoio de meus colegas, mimos do quilate de “olha o toucinho correndo!”, “balança a banha, gordo!”.

Meus empregos foram braçais até 2005. Muito esforço físico e suor desprendidos em troca de meu salário. A frase bíblica do pão em troca da transpiração foi literalmente vivida por meus colegas e por mim. Ou seja, sou a antítese do estereótipo do gordo sedentário. Não sou sedentário. Mas sou gordo.

Não serei estúpido para negar os malefícios da obesidade. Há doenças demais ligadas a ela para que isso seja ignorado. O que me incomoda é o uso estético da “boa forma”. Os gordos foram alojados em guetos engraçadinhos ou fisicamente incapazes; a eles (ou a nós) são reservados os procedimentos cirúrgicos invasivos, as dietas de 1200 calorias e os coquetéis de benzodiazepínicos.

O que me incomoda é a simplificação. Falar que “obesidade é doença” é renegar a multiplicidade humana apenas porque alguns acham a gordura feia. Quem tiver problemas de saúde com o excesso de gordura tem que tratar. Quem for gordo e quiser emagrecer, que apele para os exercícios, dietas e diazepams da vida. Analisem antes de rotular.

Agora com licença. Se somos o que comemos, hoje eu serei uma pizza quatro queijos regada com suco de caju!

28.9.06

Esse coqueiro que dá manga...

A infância é chamada por alguns otimistas de a era da inocência por razões várias que vão desde as constatações sem aparas da realidade que nos cerca que só um petiz pode fazer até o sorriso que uma criança dá ao subir e descer em uma gangorra. Ultimamente algumas crianças não mais agem como tais, haja vista a profusão de informação a que todos somos submetidos. É até engraçado ver crianças com sonhos de consumo adolescentes; só não é mais hilário por que em algumas situações isso não tem a menor graça.

Dia desses estava recordando o pouco que me vinha à mente sobre esse período de minha vida, imaginando se alguém entre os, digamos, 3 e 10 anos se comportaria assim. Moleque gordo, algo solitário, cuja única companhia constante era a imaginação. A tevê mostrava suas garras naquele início de década - 1970 - mas eu só tinha olhos para meus desenhos favoritos (a saber: Pica-pau, Pernalonga, Tom & Jerry e os sortidos da Hanna-Barbera) e Vila Sésamo, onde aprendi a ler aos 4 anos, junto com diversos futuros colegas de classe. Novelas? Odiava, principalmente as de época (quando minha mãe e minha avó se acotovelavam para ver A Moreninha eu fugia para a rua ou pro matagal onde hoje é a Vila Costa e Silva). Não gostava do que os outros moleques diziam e como eles agiam, por isso me refugiava em meus enredos fictícios e trilhas sonoras cantadas a plenos pulmões.

Hoje não conheço meus vizinhos (fico puto quando meus irmãos, que adquiriram o hábito de falar de tudo e de todos sem critério, começam a falar de algum senhor Fulano ou senhora Sicrano e, vendo que eu não ligo o nome à pessoa, vociferam: mas você cresceu aqui e não conhece?) e os outrora moleques hoje são estranhos que me chamam pelo nome ou pelo diminutivo familiar - Nei, pra quem não sabe. Alguns deles já morreram graças a algo que só me dei conta que existia aos meus 15 anos: as drogas.

Pode parecer estranho, mas a tal curiosidade infantil e adolescente no que diz respeito a substâncias ilícitas não me atingiu. Meu mundo era o que os jornais velhos que lia (censurados, vim saber anos mais tarde), os livros que minhas professoras me davam e os bordões dos desenhos que assistia me mostravam, e eu interpretava esse mundo limitado e pueril no transe meditativo de minha fértil imaginação.

Bem, eu já conhecia o álcool, graças aos espetáculos que meu pai dava quando bebia e ao litro de vinho licoroso que fui obrigado a beber aos cinco anos, só pra meu pai dizer que "tinha um filho macho e que já sabia ler". Hoje eu e as bebidas alcoólicas mantemos uma relação distante (bem distante, aliás. Costumo dizer que se as cervejarias dependessem de mim, estariam fritas em banha de porco). Cigarros, claro, embora eu não achasse que era uma droga, graças a glamourização (ou seria glamurização?) que as propagandas propagavam (acreditem, seres politicamente corretos, veiculavam propaganda de cigarros - principalmente Arizona, Charm e Chanceller - nos intervalos dos desenhos). Lógico que após experimentar a coisa aos 15 anos e ficar com gosto de esgoto em minha boca por dois dias, me perguntei qual a real utilidade em inalar essa porcaria.

Mas as outras drogas? Só fui conhecer a maconha aos 15, ao ver alguns daqueles estranhos que me chamavam pelo nome fumando um troço enrolado em papel de pão, exalando um odor estranhíssimo e me convidando pra "dar um tapinha". Ao dizer que não fumava, eles retrucaram: "mas esse você vai fumar e se amarrar". Como vi que todos riam sem motivo aparente de qualquer coisa, resolvi sair dali e nem sequer dar o tal tapinha.

Quando completei a maioridade, em 1987, ouvi pela primeira vez a palavra "overdose", logo quando descobri o rock'n'roll e a black music (só pra reforçar, cresci ouvindo rádio AM, Zé Bettio e música brega). Mergulhei na única fonte de informação confiável na era pré-Internet (não que a grande rede seja confiável, mas...): a biblioteca. Pelo menos deu pra ver o jeitão dos tais piscotrópicos.

Infelizmente nessa época muitos ligavam as drogas a uma atitude contestadora, uma espécie de Woodstock com atraso de décadas. Muitas pessoas usavam Aldous Huxley como desculpa, dizendo que maconha, cocaína e afins abriam as portas da percepção (que original, né?) e afirmavam que caras como eram um bando de idiotas. Maldita era yuppie!

Usavam os mais variados exemplos de como as drogas facilitavam o processo criativo: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Alan Moore, até Shakeaspeare. Não sei bem porquê ninguém mencionava que esses produtos eram ilegais, causavam prisões, mortes, danos físicos e psicológicos...

Bem, estou muito bem assim. Sou careta, minha imaginação é comum (agora dá pra entender de onde o senhor Moore tirou inspiração pra escrever algo tão torturante e voraz quanto Watchmen. Haxixe causa delírios psicóticos!) e continuo a desconhecer os tão falados pontos de tráfico de meu bairro. Mas às vezes penso: se eu tivesse sucumbido ao canto da sereia psicodélica, estaria eu preparando bananada de goiaba como o Gil?

(Republicação vinda de meu antigo e curto blog, Lentes Adiposas)

22.9.06

Tu sei un attimo senza fine

Sentado numa banqueta, o homem olha a festa ao seu redor. Os convidados e seus filhos chegando, os amigos o cumprimentando, apesar do aniversariante não ser ele. Ao longe, duas amigas o observam enquanto sobem as escadas que dão acesso à laje e notam seu semblante calmo. De repente ele se recosta numa árvore e fecha os olhos candidamente.

A mulher dele pede ao filho mais velho que acenda a churrasqueira e depois pegue o bolo na geladeira enquanto vai chamar seu companheiro adormecido. Ela não deixa de notar o rosto calmo de quem está dormindo. Ao tocá-lo, ele pende em direção ao chão, sem reação. Ele está morto.


Essa história foi contada por uma de minhas colegas, enquanto os clichês recorrentes eram ditos (“pra morrer basta estar vivo”, “Deus sabe o que faz”, essas coisas). Dentre as coisas faladas, uma citação de uma neta do finado ficou gravada: “Deus é ruim”.

A vida é algo tão palpável que a perspectiva de algo tão misterioso quanto inevitável quanto a morte é, no mínimo, angustiante. Nós, que temos a percepção da perda, raramente nos conformamos com um fim tão definitivo e criamos oásis de conforto material ou espiritual ou chafurdamos no mar da autopiedade e das psicoses.

Há uma teoria de boteco (e se não for, perdoem-me; é que eu a ouvi em um. A propósito, eu não bebo nada alcoólico, só faço contatos sociais tardios entre um refrigerante e um amendoim) que proclama: os assassinos em série (ou, em bom Português, serial killers) querem com suas atrocidades saciar a morte com sangue que não seja o deles. Ou seja, tratam a morte como uma entidade que precisa de sacrifícios.

De outro lado, estão os que chamamos de “normais”; os que criam deuses, teorias criacionistas ou evolucionistas, crêem nos paraísos pós-morte, em carmas cíclicos e na reencarnação. Seja qual for a crença, todos usam como modelos o mundo que conhecemos para que a idéia do fim definitivo seja palatável às mentes comuns.

Não vou negar a angústia que a falta permanente de uma pessoa causa. Perdi minha mãe de uma forma brutal e estúpida e só eu sei o que me corroeu. Porém após a letargia veio em mim uma curiosa epifania: ela não foi o único ser humano que morreu naquele dia. O que senti foi sentido, com maior ou menor intensidade, por outras pessoas. A morte não fez isso para castigar. Morremos porque temos um “prazo de garantia”.

De castigo divino a vilã de filme de terror adolescente (a série Premonição), poucos foram os que viram a morte como o que ela realmente é: parte da tapeçaria da vida. Para entregar de vez minha cultura popular, me lembro de uma minissérie em quadrinhos de Neil Gaiman: “Morte: o Grande Momento da Vida”. Nela, o escritor inglês, com o auxílio luxuoso de Chris Bachalo pré-fama, narra o acordo que uma mulher fez com a Morte para poupar a vida de seu filho. Gaiman disse que criou a Morte que ele gostaria de encontrar no final.

Quero crer que num momento de extrema lucidez ele vislumbrou o que somos e o que a morte realmente significa. Ela não é uma força de punição divina; não é castigo; ela é o fim necessário ao ciclo eterno e se ela nos causa desconforto, para dizer o mínimo, é porque filosofamos. José Saramago disse numa entrevista: “filosofamos porque morremos”.

Os animais não têm plena consciência do que é a morte, apenas aguardam o fim entre gemidos e estertores. Os elefantes se afastam da manada; gatos e cachorros se escondem em algum canto para gemer em paz; moscas deixam de voar e aguardam. Nós, em nossa ingenuidade, criamos o “céu dos animais”, invejosos que somos. Como eles ousam não sofrer com a perda da vida?

Não é minha intenção dar a última palavra sobre isso. Sei o quanto sou poroso ao que aprendo. Só parei para escrever sobre isso após o relato de minha colega e as mortes de meu amigo Jair e do irmão de meu amigo Adelino. A partida deles foi de certa forma esperada, haja vista o estilo de vida deles (pra ficarmos no popular: eram dois bebuns), mas nem por isso menos chocantes. Há a estranheza pela ausência inicial, depois as lembranças até o esquecimento.

A imortalidade é uma utopia sem sentido. Somos átomos que escrevem, procriam e gravam seus nomes esperando uma eternidade virtual. Pobres de nós, que morremos e sofremos pela certeza da vinda da Boa Senhora. Pobres de nós, que não vivemos cada suspiro, cada raio de sol. Pobres de nós, que não vivemos em paz para que morramos em paz.


O título é um trecho da canção "Senza Fine", interpretada por Gino Paoli.

P.S. : as postagens sem links são um oferecimento de minha irmã. Quando houver links, será um oferecimento de meu cybercafé predileto.

7.9.06

A confraria das popozudas

Mariah Carey foi um fenômeno. Dona de uma voz que servia como arauto da década de 1990, ela colecionou sucesso atrás de sucesso com canções, como direi... melosas, como “Vision of love”. Ah, ser casada com Tommy Mottola ajudou um bocado. Seus recordes de vendas e permanência na parada Billboard pareciam eternos. Só esqueceram de avisar a eternidade.

Fenômenos têm vida curta, como miss Carey descobriu. Quando as benesses do sucesso estavam minguando ela resolveu se voltar ao espelho e ver que era bonita. Mais do que isso: gostosa. Ela uniu tudo isso a produtores de R&B e hip-hop (conhecidos por serem sexistas), calças corsário, micro-saias e coreografias que valorizavam os seios e glúteos. Hoje ela é um sucesso de novo, graças principalmente ao rebolado e aos clipes sugestivos.



Mary J. Blige se consolidou como uma cantora de personalidade forte, que soltava a voz em canções pop com lastro no jazz e R&B. Nunca a ouvi muito nas rádios daqui mas as críticas de seus discos sempre enfatizavam a seriedade e o repertório. Pena que não pude ver muito disso.

Dia desses, zapeando entre os milhares de canais abertos que nós temos (ok, a ironia não foi muito bacana...), ouvi uma música que simplesmente usava o arranjo de “Hey-yo” do dueto francês Tragedie, num clipe repleto de moças com trajes muito sugestivos. No meio delas, cantando afinada e sensualmente (e que batom é aquele?)... Mary J. Blige! Trajando o uniforme-gostosa-básico e remexendo seu corpo como se não houvesse amanhã.



Revi Nelly Furtado depois de alguns anos. Em meu chip de memória estava uma cantora neo-hippie com ar folk-rocker (putz, que horror essa catalogação!) por causa das músicas “I’m like a bird” e “Turn off the light”. Era suave, sutil até. Era.

Ao revê-la num videoclipe, ela estava acompanhada do rapper da hora (nem guardei o nome dele), sacudindo as cadeiras e vestindo o combo calça de cós baixo-top que mostra o umbigo. Pensei estar vendo uma Fergie menos calipígia ou mais uma neo-gostosa mostrando seu talento. Minha surpresa foi tão avassaladora quanto a mudança dela.



Esses exemplos pop do mundo paternalista e sexista em que vivemos me fizeram um questionamento: o que aconteceu com as conquistas femininas do século XX? Antes um ser que não tinha direitos básicos, voz ativa e que era apenas a perpetuadora da espécie humana. Humilhadas, menosprezadas e desvalorizadas, as mulheres deram a vida, literalmente, para a mudança de um status quo preconceituoso.

Por séculos elas foram “culpadas” pelo desejo que os homens sentiam; queimadas como bruxas, enforcadas como prostitutas, estupradas por serem mulheres. Muito se lutou e se apanhou até que o sufrágio universal, o direito à saúde e à maternidade e a luta por direitos iguais (pelo menos juridicamente falando) fizessem parte do cotidiano.

Dos anos 1980 pra cá, contudo, vi meninas querendo ser paquita da Xuxa, exigindo cachês maiores para posar nua, treinando com devoção aeróbica para ser a nova loira/morena do Tchan, redescobrindo o potencial de sedução que quase foi a ruína das antigas “bruxas”. As novas formadoras de opinião hoje posam em cartazes de cerveja mostrando toda a exuberância de suas formas, almejando apenas aparecer na revista Caras com um corpo esculpido numa sessão de body combat qualquer.

Se essa for apenas uma estratégia de dominação, o foco não é dos mais inteligentes; as mulheres estão sendo tratadas como mercadorias sexies e manipuláveis, cujos únicos atributos são sacudir os glúteos, vender produtos onanistas e afirmar para homens retrógrados que “mulher é tudo vagabunda”, como estou (literalmente) cansado de ouvir.

Naturalmente é rentável, haja vista as vendas dos discos das supra citadas – Mariah Carey saiu do limbo após o fracassado projeto “Glitter” depois de diminuir drasticamente o tamanho da saia em “The Emancipation of Mimi” – mas o preço que se paga por ser mulher continuará alto. A tentativa de evolução de comportamento morreu na boquinha da garrafa.

6.9.06

Uma postagem de agradecimento

Esse blog está sendo mantido de forma peculiar, pelo menos pra mim, que já tive o privilégio de ter um PC em meus áureos tempos como auxiliar de produção de uma multinacional de autopeças (sei...): estou escrevendo em pílulas, entre uma pequena folga e outra e postando quando me sobra uma grana para acessar a net via cybercafés. Tenho um texto já escrito e outro em andamento. Aproveito para pedir desculpas antecipadas se houver demora entre uma postagem e outra. Só que hoje eu tive que postar diretamente no Blogger.

Ontem, dia 5 de stembro, fui limpar minha caixa postal dos spams; achei 2 reais no fundo do bolso de minha bermuda e me dirigi ao cyber perto de casa (embora eu prefira outro, 50 centavos mais caro mas com entrada para disquete (ou, em bom Português, slot) e com fones de ouvido funcionais - afinal, minhas rádios no Pandora são indispensáveis. Entre os comprimidos de Viagra e ofertas imperdíveis - compre uma casa um Long Beach e ganhe um iPod! - vi o aviso de um recado em meu Orkut (em Português, scrap).

Bem... vamos às minhas reações patéticas: meu queixo digitou bn_lkse quando caiu; esfreguei meus olhos com força, imaginando que alguém me deu uma bala de canela com LSD; ao sair, ensaiei uma coreografia à lá Paula Abdul - dois passos pra cada lado, um giro em meu próprio eixo, palmas ritmadas... - e soltei minha expressão chula preferida, o bom e velho "puta que o pariu!".

Não me estenderei mais. Só direi para finalizar:

Muito obrigado, Alexandre Inagaki! Muito obrigado mesmo!

3.9.06

Tá fresquinho, tá bonito, tá gostoso!

Se você quer manter contato com as pessoas, principalmente se você tiver evitado isso durante muto tempo da vida, ande e vá onde elas vão. Como pessoas precisam comer e se higienizar, aglomere-se em supermercados e feiras-livres. Apesar dos supermercados terem a vantagem óbvia da proteção contra as intempéries e o sol, é nas feiras que o burburinho é mais acalorado.

Imagine uma manhã de domingo com céu azul, como essa em que escrevo. Entre quatro e cinco horas da manhã os primeiros feirantes chegam, dispondo suas caixas, engradados, lonas, armações. Nem bem eles têm produtos à mostra os primeiros fregueses, senhores e senhoras com mais de 50 anos carregando sacolas de lona ou carrinhos de metal, já procurando as melhores frutas e os peixes mais frescos.

O sol ameaça aparecer, deixando o horizonte carmim. Os demais fregueses estacionam seus carros, ou saem dos ônibus calmamente ou simplesmente caminham. O burburinho aumenta; os aromas se intensificam. Os pescados ainda estão cheirando bem, uma mistura de escamas e gelo, as frutas invadem o ar e pintam as barracas, dando um tom impressionista à cidade. Há flores sendo vendidas, e como não sei o nome delas (invejo as senhoras que desfilam conhecimento botânico ao ver uma vaso púrpura ou lilás: "olha, que gérberas lindas", ou "será que os crisântemos podem ser transplantados?") apenas admiro e sinto seu cheiro.

Há quem se aproveite das feiras para legalizar a condição de camelô e vender CD's piratas. Desde recentes lançamentos a módicos 5 reais a caça-níqueis do tipo "As melhores canções de...". Dia desses me deram um CD pirata da Madonna, com o título de The Best of Madona (sic), com 2 músicas da... Cyndi Lauper. Bem, mas estou divagando.

Claro que não poderia deixar de falar do supra-sumo dos odores: os das barracas de alimentos para consumo imediato. Que tal uma com produtos deriavdos de milho? Pamonhas apetitosas, curau, suco de milho... ah, para um gordo como eu, é simplesmnete irresistível. Mas o que mata é a bomba calórica dos pastéis. Na feira dominical há quatro. Lembram daqueles desenhos onde o personagem vai até o alimento voando, guiado pela fumacinha exalada por ele? É mais ou menos isso: os banquinhos em volta da barraca nunca ficam livres; pessoas conversam animadamente entre dentadas no pastel, que pode ser os tradicionais (queijo, carne, palmito) ou mesmo invenções - os mal-humorados chamam de invencionices - como o bauru, frango com catupiry...

E sempre entre uma sacola e outra há o papo com um conhecido que não víamos há meses ou anos ou algum desconhecido ávido por cinco minutos de prosa. Já ouvi histórias escabrosas sobre filhos desnaturados, relatos de viagens, receitas de comida e remédios caseiros, conversas de pescador, ou apenas as obviedades sobre o tempo - meteorológico ou pessoal ("no meu tempo... ").

Estou com três sacolas: uma com maçãs, outra com carambolas e mais uma com bananas prata. Ouvi contos sobre um casamento modorrento, uma partida de bilhar perfeita; vi dois candidatos a deputado estadual sorrindo para tudo e todos. Respirei o ar perfumado com peixes, melões, gorduras e violetas. Domingos assim merecem um bordão daqueles insequecíveis.

"Olha o tomate, senhora! Uma bacia, dois real!". "Tá docinho, moço, quer provar? É só um e cinqüenta!". "É pra acabar!"

2.9.06

Loucura, loucura, loucura!

Não leio nada de importante há uns cinco anos. Para quem não saía da biblioteca municipal sem um livro, me tornei um velho leniente com minhas "obrigações literárias". Certo, nunca passei a fronteira intelectual dos best-sellers da minha época, mas que eu vivia com um livro nas mãos sempre que possível, vivia. Agora a situação é outra.

Não tenho mais meu cantinho de leitura, ou seja, qualquer lugar de minha casa ou da cidade silencioso o suficiente para concentração. Em casa meus sobrinhos comandam a fuzarca; os adolescentes berram e ouvem rap e pancadão, as crianças brincam felizes. Fora dos muros do meu lar os neo-vendedores de pamonha e a poluição sonora dos carros, pessoas e coisas não deixam espaço para que possamos contemplar sequer a beleza do dia, que dirá um livro.

Ontem, contudo, ao chegar em casa depois da chuva, minha irmã desencava dois livros que tinha esquecido que tinha: "O Perfume", de Patrick Süsskind e " A Rua das Ilusões Perdidas", de John Steinbeck. Estava me lembrando disso durante minha caminhada quando parei numa banca para comprar uma revista qualquer e vi um display com livros de bolso da L&PM. Ao invés de comprar a tal revista, comprei "Elogio da Loucura" de Erasmo de Rotterdam.

É minha versão de "de suco de uva para crack, sem escalas". Desejem-me sorte!

31.8.06

Amigo é coisa pra se guardar em uma cela acolchoada

Amigo é uma palavra cujo significado eu desconhecia até meus vinte e cinco anos. Não, criaturas maldosas, eu não preciso de um dicionário; o significado que eu não sabia não era o gramatical e sim o pessoal e “prático”, digamos assim. Mas vamos por partes, como diria Jack, o estripador.

Me descrevi tanto para o Janio quanto para o Marco como um quase autista na minha infância, adolescência e parte de minha idade adulta. Entre meus 5 e 12 anos, meu mundo particular me bastava. O mal de aprender a ler cedo demais – ah, os programas infantis de outrora! – é não ter com quem conversar sobre o pouco que eu lia, seja sobre as mal compreendidas páginas dos jornais (qualé, eu mal tinha saído das fraldas!) ou as palavras em Inglês que apareciam no desenho do Pica-Pau. Não me restava alternativa, pelo menos sob a ótica infantil, senão criar meu universo.

Esse mundo imaginário, muito mais pretensioso do que ter um simples amigo imaginário, tinha trilha sonora, tramas estapafúrdias que eu considerava geniais, heróis e vilões retirados das novelas, seriados e livros de Agatha Chrisite, J. M. Simmel e Luis Fernando Veríssimo. Numa Indaiatuba que hoje só existe nas lembranças de quem têm mais de 25 anos meus pés sentiam as folhas de indaiá, a terra fértil, meus olhos viam os bigodes de Hercule Poirot, os vestidos vitorianos de Miss Marple, o preto-e-branco acinzentado dos desenhos do Pernalonga e meus ouvidos captavam minha voz narrando o trabalho das saúvas e dialogando com os personagens que citei.

Imaginem o choque quando tive que me relacionar com pessoas do mundo real em meu primeiro dia de aula! Ainda bem que havia as palavras amigas, que adquiriram significado e os números. Não sabia o nome de nenhum de meus colegas de classe, porém sabia o que era um camelo e uma zabumba. E que havia soma e subtração. Era um mundo tão maravilhoso quanto o meu, exceto pela s vezes em que alguns estranhos me chamavam pelo nome.

Na adolescência meus hormônios deram poucos sinais de revolta. Meu mundo foi reforçado com a inclusão do Homem-Aranha, Super-Homem, Batman e Wolverine. Os estranhos até tinham nome, mas não ressonância. Tentei ter desejos consumistas tão caros na era yuppie, pedindo meu primeiro par de tênis “de marca”. Quando vi que a única diferença entre a tal marca famosa e o que eu usava desde sempre era apenas o preço voltei aos meus roteiros, dessa vez para histórias em quadrinhos. Eu me achava o Machado de Assis das HQ’s até ler Alan Moore. Intelectualmente foi meu primeiro desvio rumo ao chão da vida.

Já com meus 25 anos descobri que nenhum homem é uma ilha, para meu pesar. Trabalhar em equipe, saber o nome dos estranhos e tratá-los pelo nome. Ou apelido. A maturidade mostrou (escancarou, na verdade) os 720 graus do mundo tridimensional e cruel, mas ainda assim belo. Sobraram resquícios, evidentemente: andar e pensar em voz alta, me perder em meus delírios enquanto converso com alguém.

Amigos? Só os cultivei após descobrir depois de alguns percalços o que sou, como me comporto, do que gosto, do que não gosto, porque faço o que faço, onde pretendo chegar. Talvez graças ao meu passado autista (ou, em bom Português, background), aprendi a conviver com as manias das pessoas e gostar delas assim mesmo.

Dentre meus amigos, um deles nunca vi pessoalmente, outro mora tão longe que se não fosse a Internet jamais saberíamos da existência um do outro. Há as mulheres... é impressionante como consigo ser amigo delas. Antes eu era um jacu, pronto para me esconder ao ver uma mulher vindo em minha direção. Existem pessoas que não são mais estranhas e intrusas.

E em alguma gaveta empoeirada meu universo aguarda quieto que eu o visite enquanto durmo. Eles às vezes me convidam pra tomar chá ou capuccino. Recuso polidamente à luz do dia. Pelo menos enquanto não sinto o aroma dos biscoitos.

28.8.06

Seja civilizado com um barulho desses!

Dentre meus hábitos, um dos mais prosaicos é sair de um supermercado com algo pra comer na rua. Desde que os supermercados tornaram-se presentes em minha vida, mais ou menos quando eu tinha 12 ou 13 anos, eu degusto algum repasto processado por uma empresa alimentícia.

(Um pequeno apêndice: até meus 12 anos minha família fazia compras em armazéns. Para os que não se lembram ou não sabem do que estou falando, era mais ou menos assim: fazíamos uma lista de compras mensal em casa, detalhada com nome e quantidade, e nos dirigíamos ao armazém - ou o do seu Gentil, a menos de 200 metros de casa, ou o do seu Oscar, uns 800 metros mais longe. Chegando lá entregávamos a lista ao atendente, que era o proprietário ou um de seus familiares, que os pegava e os dispunha em cima do balcão. Os sacos de arroz de Capivari, o feijão a granel colocado num saco de papel cinza, o açúcar cristal, o café moído na hora - aquele aroma era extraordinário! - e o que mais me fascinava: o óleo a granel que vinha em tambores de 200 litros, bombeado por um apetrecho sensacional, movido a manivela; ele puxava exatamente um litro em um receptáculo no giro da manivela no sentido horário e o despejava no garrafão de vinho vazio - era o que usávamos para acondicionar o óleo - no sentido anti-horário.)

Nas sacolas, entre as compras "sérias", havia sempre um pacote de biscoito ou bolacha, ou iogurte para beber (ou "bebida láctea a base de iogurte"... puxa, essas regras da Anvisa não têm poesia!) ou uma barra de chocolate, uma bebida gaseificada ou não, ou até uma fruta rara em casa, como pêra ou uva. O prazer era imenso: se eu não tinha muitas sacolas, o produto era consumido durante a caminhada; se as sacolas se multiplicavam em minhas mãos eu procurava uma praça aconchegante e me sentava, mastigando e observando os transeuntes.

Desejo satisfeito e um problema que deveria ser menor aparece: onde eu vou jogar os restos de meu consumo - latas, embalagens, talos, sementes? No lixo, responderia alguem que ouvisse pergunta tão banal. Mas o que seria uma banalidade transforma-se num transtorno aqui em Indaiatuba.

Pelo que sei, produzimos uma média de 500 gramas de lixo por dia. Não falarei aqui dos aterros sanitários à beira do colapso ou de reciclagem, e sim compartilhar uma verdade ridícula: não há latas de lixo o suficiente aqui.

Se eu fosse como muitos de meus patrícios eu solenemete ignoraria a higiene e jogaria tudo o que não me serve mais em qualquer canto, seja numa calçada, uma boca-de-lobo ou terreno baldio. Só que aprendi a não sujar mais do que o necessário, pois sei o trabalho que dá limpar. Infelizmente aqui em Indaiatuba achar uma lata de lixo fora dos pontos estratégicos (praças centrais, os centros de compras, prédios públicos) é impossível.

Tome como exemplo a avenida Francisco de Paula Leite. Ela atravessa a zona sul inteira e só há dois lugares onde podemos depositar o lixo ocasional: em frente ao CAT do SESI e perto de um boteco, que deixou um tambor de 200 litros amarrado a uma árvore. Se você chupar uma bala, tomar um refrigerante ou comprar uma revista que venha embalada num daqueles filmes plásticos tem ou que esperar até chegar a um desses pontos ou guardar o trambolho e jogar no lixo de sua casa.

Num dos inúmeros quadros que Regina Casé e seu marido Estevão Ciavatta criaram pro Fantástico, ela criticou a falta de higiene e de civilidade dos que jogam lixo na rua, dentre outras coisas. Também me lembro de um senhor que trabalha na empresa de coleta aqui na cidade dizendo que a culpa da falta de lixeiras era do próprio povo, que as vandaliza. Ou seja, enquanto há esse tradicional jogo do empurra, quem quer apenas cumprir sua obrigação fica com uma garrafa PET na mão e alguns imprompérios na cabeça.

27.8.06

O trabalho, o homem e a dignidade.

Trabalhar, para quem nasceu em uma família pobre (nada daquele retrato de "famintos, esfarrapados e coitadinhos". Apenas o pobre que nunca teve carro e demorou pra comprar a primeira tevê a cores, certo?) nunca foi uma opção rentável. Ou você tinha um emprego ou não pagava as contas e sequer comia. Por isso sempre vi os empregos que tive apenas como fonte de subsistência; desde meu primeiro emprego, atendendo fregueses numa rotisserie até minha ocupação em uma usinagem de peças automotivas nunca vi aquilo como fonte de prazer pessoal, como alguns exemplos endeusados pelas mídias não se cansam de mostrar.

Nunca vi o trabalho que tinha com bons olhos. Depois de três meses em todos os meus empregos, as garras corporativas mostraram-se afiadas e mortais. E olha que sequer saí do chão de fábrica... desde o coleguinha que ensinava a rotina de trabalho de maneira errada só pra ver o novato ser queimado logo no primeiro mês (isso era mais acintoso quando o novato em questão dava claras mostras de competência) até ser vítima da famigerada Rádio Peão com o único intuito de desmoralizá-lo, nesse poucos porém eduactivos anos como auxiliar de produção vi o que uma empresa poderia me dar: somente meu salário.

Depois de alguns anos essa simplificação me causava uma angústia inexplicável à primeira vista; eu tinha um emprego, esse emprego me pagava em dia e mesmo assim a sensação de falta, ou pior, de perda aflorava. Foi preciso a maturidade para dar a resposta:estagnação.

Se eu começava na empresa como auxilar de produção, eu invariavelmente como... auxiliar de produção. Se eu tivesse a iniciativa de continuar meus estudos, logo me mostravam que isso "era uma tremenda bobagem", pois eu já era bom no que fazia. Como nunca fui conhecido por meu espírito empreendedor (pra ficarmos no popular: eu era um babaca mesmo), aceitava sem questionar, mesmo que a angústia que essa decisão (ou melhor, a falta de decisão) me causava.

A estagnação trouxe um efeito colateral que potencializava a inquietude: a falta de desafio. Não havia estímulo para ser pró-ativo, para termos idéias, para exercermos nosso lado criador. Isso me lembra um episódio envolvendo Alfred Hitchcock: quando Kim Novak, se não me falha a memória, durante as filmagens de Um Corpo que Cai questionou ao diretor: Alfred, qual a minha motivação nessa cena? , ele respondeu, à guisa de ironia: o seu salário.

Há muitas pessoas que consideram o dinheiro a coisa mais importante da vida. Bem, é importante, mas dentro da medida (um dia falo melhor sobre isso. Prometo que não será uma apologia à casa no campo e ao amor verdadeiro, tampouco uma ode à força da grana que ergue e destrói coisas belas - nossa, vocês reconheceram a citação de Caetano Veloso, é?). Quando sua vida resume-se a acordar com o despertador-entrar no ônibus-picar cartão-apertar botão-carregar coisas-comer algo rapidamente-voltar e fazer a mesma coisa até a tarde, sem que no intervalo haja uma nova descoberta intelectual, um desafio - e poderia ser simplesmente mudar de setor por uma semana - , você pode despertar de repente e ver que décadas se passaram e você continua ouvindo as mesmas músicas, gostando dos mesmos filmes, atado ao mesmo piso sem saber mais apertar o play de um DVD.

Quem chegou até aqui deve estar se perguntado: por que esse cara está falando isso? Bem, porque estou em um novo emprego há exatos quatro meses e pela primeira vez, estou gostando do que faço. Mas gostando mesmo !

Há dois anos eu estava desmpregado há quase sete meses e estava atirando em todas as direções. Um dos tiros que dei foi participar, com dinhero emprestado, de um concurso público. Muitos me diziam que eu estava jogando dinheiro fora, pois a maracutaia rolava solta, havia muitos cargos comissionados ocupados por apadrinhados de fulano, et cetera. Bem, pra resumir: não sou afilhado de ninguém, nunca tive costas quentes e passei em 26º lugar. E no dia 27 de abril de 2006 fui convocado a ocupar meu cargo de auxiliar adminstrativo na secretaria da saúde.

Meu salário não é dos melhores, mas há a inequívoca vantagem da estabilidade e algo que nunca tive em meus empregos anteriores: desafio. Lidar com o público e suas idiossincasias - ser xingado às vezes - , aprender o que dizer e o que fazer quando certas patologias aparecem, e saber que ser mulher não é moleza (eu trabalho num ambulatório especializado em saúde da mulher. Imagine o baque em mim, que sequer sabia o que era papanicolau!).

Pouco a pouco sei como é gostar do que faço. Quem foi que disse que de onde menos se espera é de onde não sai nada mesmo?

25.8.06

Por que tudo tem que começar?

Idade quase nova. Emprego novo. E mais uma tentativa de manter um blog.
Não sei... gosto muito de escrever, e da última vez que tentei reiniciar meu diário, disse algo sobre não ter medo do escrutínio alheio e das inevitáveis comparações. Porém tenho, sim, medo. É bobagem não admitir isso.
Como não ter medo depois que os diários virtuais transmutaram-se de simples meio de comunicação pessoal para poderosa ferramenta jornalística e literária? Caramba, desde minha primeira incursão juntaram-se verdadeiros gênios blogueiros, um mais fascinante do que outro. Como posso não me embasbacar com o texto fluido e poético de Alexandre Inagaki? Como não se sentir um apedeuta depois de ler textos deste blog? E o que dizer de meu querido amigo e irmão, que além de ser a pessoa mais amorosa do mundo, escreve tão bem?
E as garotas Ni, que simplesmente invadem meu cérebro e falam de tudo o que eu queria falar com muito mais talento? E, claro (Vivo, TIM), meu guru Rosana Herrmann (ela não sabe, mas meu maior desejo é ter o cérebro dela. Fique tranqüila, não sou da turma do copy and paste), que me ensinou o que é um blog numa matéria de jornal.

Isso posto, vem a pergunta: por que insisto em escrever, então? Não uso psicotrópicos para ter alucinações geniais, não leio nada interessante há anos (minha preguiça intelectual será tema de um futuro post - viu? Isso é patológico! Estou aqui me perguntando porque escrevo e prometo novas postagens!), pretendo voltar a estudar... para completar o ensino médio. Resumindo, sou um tapado que macaqueia frases feitas e citações.

Bem, já que o ato de blogar é patológico, farei o seguinte: vou postar, postar, postar e quem sabe entre um "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa" e um "Deus escreve certo por linhas tortas" descubro o porquê de tamanha teimosia. Querem me seguir? Fiquem à vontade, sejam bem vindos e sirvam-se. As retóricas estão meio passadas, os adjuntos adverbiais podem estar meio frios e as proparoxítonas devem estar sem gelo... mas prometo consertar a conjunção coordenada antes de 2007.