30.12.07

Meu mundo e nada mais

Ah, 2007! Feliz ano novo. Garrafas de cidra baratas sendo quebradas no asfalto, fogos, gente bêbada, promessas. Mal o ano começa, temos um buraco. Ou uma cratera, como queiram. São Paulo questiona, pela primeira vez, o valor de uma vida humana diante de obras necessárias, porém faraônicas e mal planejadas. O tal apagão aéreo vira panfleto e prosélito da classe média que pode viajar de avião, as estradas se tornam a violenta rota de fuga.
Próximo do meu primeiro ano como funcionário público, percebo que não há glamour, só cobranças. De um apedeuta ginecológico, passei a quase ser mulher de tanto falar com naturalidade em citologia oncótica, metronidazol e puérpera.

Num mundo onde tudo precisa ter planejamento mercadológico e uma sigla, Luís Inácio e seus rapazes e moças lançam o PAC, para esconder o fracasso do programa Primeiro Emprego. Ou seria para revitalizar a economia do país, que segundo os tais especialistas de jornal (engraçado, eles nunca estão no poder... suas idéias funcionam melhor em editoriais), não cresceu como a China, que faz o trabalhador suar 16, 18 horas por dia, ou como a Índia, que valoriza o ensino superior ao mesmo tempo que suporta a miséria ao lado das universidades. Enquanto o menino João Hélio morria de forma assustadora nas mãos de uma corja sem escrúpulos e o prefeito de São Paulo, descontrolado, chamava de vagabundo um homem, lá estava eu, dentro de um ônibus, indo para Tramandaí ver o mar pela primeira vez, ao lado de uma das melhores pessoas do Universo. Depois revi Porto Alegre ao lado de outra das pessoas mais incríveis do Universo (ok, meu universo é limitado pelo rio Jundiaí). Foi um carnaval sem samba, sem marchinhas e sem desfiles. Viu só como Deus ainda existe?

Aquela menina do Shop Tour, vestida como corista de igreja, entoou o mantra oficial desse ano, "Vai tomar no cu". Foi explícita, pois esse ano muita gente nos mandou tomar onde o sol não bate dizendo coisas como "relaxa e goza". Bastante apropriado, pois sexo anal é dolorido. Ou renunciando ao cargo para não perder os direitos políticos. Ou voltando à Câmara com apoio popular. Ou fazendo gestos obscenos após uma reportagem.
Não comemorei aniversário nenhum. O meu, deixei passar. 38 anos sem muito brilho, ao lado de pessoas igualmente opacas. Bem, comi um pedaço de bolo e comprei um tênis novo - sempre compro meus presentes - além de ter beijado com fervor pessoas que jamais verei de novo.
Meu blog fez um ano e esqueci de presenteá-lo com meia dúzia de palavras. Ele veio me assombrar, noite dessas, e me deu inspiração para duas ficções que ganharam o prêmio Hugo, foram indicados ao Pulitzer e receberam propostas de produtores para que fossem transformadas em filmes, um dirigido pelo Fernando Meirelles e outro pelo Brian de Palma. Acordei banhado em suor, com a fronha translúcida graças à minha baba e lembrando das duas pessoas que comentaram a minha incursão à seara ficcional. "Sai dessa lama, filho". Saí.

Enfrento a maioria de meus medos. Me sinto desconfortável quando me deixo levar por um motorista em uma rodovia cheia de carros frenéticos mas não deixo de viajar. Não gosto de sentir aquela luz cegante durante uam consulta oftalmológica, não gosto de ter a pressão de meu globo ocular medida, e nem por isso deixo de ir ao oftalmologista. Certo, não subo em um cavalo por motivo algum - tenho PAVOR desse bicho - e não ando de moto nem se minha vida dependesse disso - tenho PAVOR daquele treco motorizado sobre duas rodas - , porém sou um sujeito que encara os jilós da vida com a boca aberta (mas não muito). Contudo, quando o avião da TAM se chocou contra o prédio da TAM Express, tive outro medo. "Será que algum de meus amigos está no vôo?", me questionei, aflito e egoísta. Quando vi a dor dos parentes, queimei no fogo de Hades e logo voltei ao Valhala (eita, que angu mitológico é esse?) ao conversar com meu irmão gaúcho no MSN.

Depois de um hiato, voltei a ver uma novela. Quando criança, não as assistia; preferia Vila Sésamo. Na adolescência, vi algumas pequenas gemas de Cassiano Gabus Mendes, Janete Clair, Walter Negrão. Quase adulto - ok, sou adulo apenas cronologicamente. Podemos continuar? - , algumas de Silvio de Abreu, Benedito Ruy Barbosa e Manoel Carlos. Depois todo mundo quis fazer novela e o dejá vù foi asfixiante. Até o advento de Camila Pitanga e Wagner Moura. Parafraseando Luís Inácio, nunca na história desse país se viu um casal tão... delicioso. O cara era o vilão da história e tinha tudo para ser apenas mais uma caricata figura da teledramaturgia; a garota, uma prostituta mergulhada nos clichês e lugares-comuns preconceituosos. Graças à catiguria da cachorra e o amor que o escroque sentia pela vagaba, todas as cenas que vi da novela eram apenas as que eles apareciam. Se a Taíxxxx fosse um pouco melhor aproveitada, como era ao lado do vilão-mor, eu poderia dizer que vi quase toda a novela. Mas Paraíso Tropical, para mim, eram apenas "Bebel e Olavo" e a música da Elis, mal aproveitada.

A dor em minha perna direita, que ainda me acompanha, me fez abandonar o supletivo. Ouvi muita asneira, vi muita cara feia. "Você quer é viver de forma medíocre", "falta é força de vontade", "que desperdíco de inteligência, agora você vai desistir de vez". A dor é minha, de mais ninguém. Se alguém consegue se concentrar em uma aula de supletivo com adultos se comportando como bebês mimados, sentado em uma carteira feita para crianças até 12 anos e sentindo o latejar de uma dor quase insuportável, mérito de quem consegue. Não sou tão forte e concentrado assim. Pretendo me transformar num daqueles monges de filme de ação do Michael Dudikoff, que quebram paredes de isopor, ops, concreto, apenas com a força do ki.

Enéas morreu. ACM morreu. E nem assim as raposas percebem que esse é o final de todos. Nair Belo morreu. Benazir Bhutto morreu. Pavarotti morreu. Paulo Autran morreu. O Lé morreu. Eu ainda não morri. Aguardo notícias.

Quase consigo ter um computador de novo. A trave impediu o gol. Consegui me livrar de uma dívida com o Itaú. A bola foi onde a coruja dorme e entrou mansinha. Comprei um Mp3 baratinho com meu PASEP e contabilizo 98 músicas. Gol olímpico. Meu puxadinho teve que ser abortado antes mesmo de sua concepção. Chutou para a torcida.

Ouço vozes. "Por que no te callas?". "Pede pra sair!". "Bota na conta do papa". "Eu nunca vou te abandonar". "Ou ele ou eu". "Moço, tô com uma dor no pé da barriga". "Eu, na minha concepção, acho isso, você não acha?". "Quero marcar um ultra-vaginal". "Mô, é assim que faz?". "Nei, vem aqui". Vai pra sala um falar com a enfermeira...

Tevê digital. iPhone. Nintendo Wii. E eu só queria uma vitrola onde pudesse ouvir meus vinis. Como não encontrei, me desfiz de meus 30 discos restantes. Logo terei que me desafzer de meus CD's também. Ah, a tecnologia... a melhor desculpa para o abismo social.

Qual é a moral dessa mal e porcamente editada retrospectiva, afinal?

  • Minha vida é uma sucessão incessante de modorras.
  • O mundo anda tão complicado... (mas isso é título de música!)
  • A memória de alguém é função da intensidade do estilo de vida.
  • "Você precisa encher seu blog com algo, senão sua conta expira".
  • 2007 acabou.

Ah, 2008! Feliz ano novo. Garrafas de cidra quebrando no asfalto...

Ainda estou aqui. Quem sabe melhores retrôs virão, sem esse travo de amargura?

2.12.07

O referido é saudade e dou fé

Sinto saudade da rua Projetada. Visto com os olhos de hoje essas lembranças parecem vindas de uma realidade alternativa, mas minha rua, assim como muitas, antes de ter um nome oficial se chamava apenas Projetada. A terra avermelhada batida onde, para desespero das mães, eu e muitas outras crianças jogávamos bola, brincávamos de pique-esconde, mãe-da-rua ou balança-caixão (e se você não sabe do que estou falando, jogue isso no Google e descubra). As touceiras de capim-gordura, os cheiros da poeira e da chuva, puros e sem aditivos, os coquinhos de indaiá. As casas separadas por cercas de bambu amarradas precariamente e os vizinhos com seus comentários "sábios" sobre a vida, emaranhados de lugares-comuns ora bem vindos, ora amaldiçoados. Uma compreensão geográfica limitada mas compensada com toneladas de imaginação.
Sinto saudade dos programas de rádio que era obrigado a ouvir. Zé Bettio e seu arsenal de músicas caipiras, e uma provocação pessoal (pelo menos para mim era MUITO pessoal) que ele fazia depois de chamar a vaca Mimosa: não havia um mísero dia em que ele não falasse pra nonna (quem era essa tal nonna, perguntava eu para mim mesmo antes de descobrir o que era essa palavra) jogar água no gordo! Eli Correa e seu bordão "oooooooooi, geeeeeenteeeeeee!", seu populismo e suas histórias tristes. Lá ouvia-se muito Fernando Mendes, Márcio Greyck, Paulo Sérgio e Roberto Carlos. O terror dos terrores, Gil Gomes e sua voz aterrorizantemente anasalada a narrar as agruras do mundo cão, o preferido do meu pai e claro, meu preferido, "A volta do sucesso", com Altieris Barbiero, o principal responsável por amar tardiamente a Jovem Guarda.

Sinto saudade do forno de barro em meu quintal. Os pães feitos naquele forno eram deliciosos. Demandavam cuidado artesanal, como tudo na longínqua década de 1970, onde quem era pobre tinha que se virar e o fazia magistralmente - diferente de hoje, mas abafa o caso - : deixar a massa homogeneizada com força e carinho crescer debaixo de uma manta Parahyba, cortar pedaços cuidadosos e deitá-los em folhas de bananeira que iam ao forno previamente aquecido - não, não se ligava o gás, crianças; acendia-se a lenha - e aí esquecíamos um pouco dos bolinhos, que logo viravam pães dourados, macios e insequecíveis.
Sinto saudade da minha classe de primeira série na EEPG Benedita Wagner de Campos. Ficava perto do pátio da merenda, longe de todas as outras. Era uma bobagem, mas dava uma impressão de exclusividade... foi lá que aprendi a escrever, pois ler eu já sabia. Dona Sandra (não, ela não era minha tia) trazia letras de mão pontilhadas para que eu pudesse exprimir o que eu já sabia interpretar com os olhos. O DNA de minha letra veio de um capricho de um professora, veja você.
Sinto falta dos especiais do Roberto Carlos da década de 1970. Talvez fossem as músicas, numa fase onde ele não era o pastiche autoritátio de hoje. Talvez fosse a mão do finado Augusto Cesar Vannucci. Talvez fosse a inexistência de concorrência. Não sei. Mas eu adorava ver aqueles proto-videoclipes.
Sinto falta dos videoclipes. Desde aqueles do Fantástico, onde sempre apareciam os olhos de quem estavam cantando num close, se movimentando da direita para a esquerda, passando pelos clipes do programa Clip Trip da TV Gazeta (moderno até a medula! Via desde pérolas do britpop até o início do rap mainstream) e os bonecos da cópia da Globo, o Clip Clip, inventor da nefasta mania de editar os vídeos. Sonhava em assistir à MTV, mas as antenas de UHF não pegavam bem aqui na cidade.
Sinto falta da She-Ra e do He-Man. Do Pernalonga e do Patolino. Dos Trasnformers. Dos Thundercats. Do Toro e do Pancho. Da Cobrinha Azul. Da Super Máquina, mas não do David Hasselhoff - acredite, gostava do Kitt por causa da voz do Isaac Bardavid. Do Cannon. Da Dama de Ferro. Das Sessões da Tarde com filmes da década de 1950 e 1960. Dos filmes de Jerry Lewis e do Elvis. Deus meu, sinto falta até do Bozo!





1.12.07

Makin' it!

Quem nasce em berço de madeira tem uma vida pragmática. Depois que se tem consciência de como é o mundo em que fomos inseridos (quem mandou sairmos do líquido amniótico com tanto afã, só para depois chorarmos de arrependimento logo após?), trabalhamos, bebemos, contamos moedas para comer arroz, trocar as cuecas (sou um ser humano do sexo masculino sem tendências para ser crossdresser, por isso não vou emular uma dualidade politicamente correta aqui) e tomar uam cachaça, dançamos na proverbial corda-bamba de quem foi classificado como sendo das classes D e E e dormimos exaustos ao fim da luz solar. Não sei como os meus pares fogem da realidade por alguns instantes catárticos. Eu tinha várias válvulas de escape, nenhuma psicotrópica. Ler tudo o que me aparecia - bulas de remédio incluídas - , escrever poemelhos em cadernos, imaginar amigos. E assistir a alguns programas de tevê.

O que mais me afastava de minha realidade era um sujeito que regava as futilidades com uma urgência de água em deserto e que me ensinou que no mundo também existiam pessoas que não se incomodam em pagar um mês de meu salário em um par de meias, desde que elas sejam de grife. No início da década de 1980, conheci Amaury Jr. e seu mundo estranho de nomes pretensamente chiques.

Foi lá que descobri o dólar como moeda e não apenas como personagem de filme. Nos áureos tempos, tudo o que ele falava - a palavra merchandising não fazia parte de meu vocabulário - era cotado em dólar. Os tais champanhes, opa, espumantes... desculpem-me, vitivinicultores da cidade de Champagne com nomes estranhos como Veuve Cliquot (eu, hein, uma bebida com nome de viúva!) e Mumm, os cigarros absolutamente fabulosos que ele fumava durante as entrevistas - que mané câncer de pulmão, o que importava era parecer elegante com aquele trem cilíndrico e fumacento entre os dedos - e as marcas tão chamativas e sempre em Inglês, as roupas que não serviam apenas para cobrir nossa nudez. Hugo Boss, Valentino, Zegna, Armani eram um estilo de vida, a materialização de Deus ligados por linhas e agulhas!

E as festas? Gente sobre as quais nunca ouvi dizer, mas que eram importantíssimas, sumidades de... do... da..., enfim, Amaury dava a impressão de ter sido gêmeo univitelino do entrevistado, que sempre soltava uma pérola da humanidade, a frase mais entrecortada por interrupções desde a invenção dos talk-shows brasileiros. Era maravilhoso ver toda aquela futilidade sendo dita com tanta veemência e verdade entre ternos e vestidos, bebidas e canapés.

Desde quando se chamava Flash nas tevês Gazeta, Bandeirantes e Record, acompanho a, digamos, evolução do programa. Do início tímido, onde ele mostrava festas do jet-set até hoje, onde ele mostra, hã, festas do jet-set com verniz de "eventos culturais", com lançamentos de livros seminais de auto-ajuda ou o trabalho de cão de um ghost writer para publicar uma interessantíssima biografia autorizada ou lançamentos de lojas modestas de marcas modestas de carros - Maserati, Lamborghini -, é divertido ver que gente com dinheiro só tem isso a mais que eu mesmo: dinheiro. Alguns, sejamos justos, têm conteúdo, mas eles se tornam chatos diante da diversão de ver, por exemplo, dicas de restaurantes charmosos quando eu viajar para Nova Iorque ou Dubai ou Berlim, ou que atitudes tomar em um jantar com o CEO de uma multinacional quando eu for convidado por aquela pessoa de hábitos simples (só tomar água Evian, por exemplo).

E pra tornar tudo ainda mais divertido, musicalmente o mundo parou na década de 1980. A começar pela vinheta oficiosa do programa, "Keep it comin' love", do KC and the Sunshine Band e terminando com o caça-ní..., quero dizer, CD lançado à guisa de trilha sonora. Por causa desse disco tenho que agradecer ainda mais o menino, por me fazer lembrar de algo que meu cérebro guardou sem muitos detalhes, exceto a música antes desconhecida.

1979. Estava eu num lugar chamado Cidade dos Menores de Campinas, há mais de seis meses quando os diretores decidiram que nos dariam de presente uma "excursão". Excitados, lotamos, eu e todos os meninos que estavam lá, dois ônibus e uma perua em direção ao resstaurante Frango Assado da rodovia dos Bandeirantes. Foi uma farra; comida até dizer chega, um saco enorme cheio de guloseimas e brinquedos e um cara em frente a um toca-discos - mais tarde saberia que aquele sujeito era um "DJ" - e uma mesa de som. Ele me chamou, colocou os fones de ouvido em mim, grandes e pretos, colocou um disco de vinil com a palavra Philips escrito e fui inundado pelo som como nunca antes. Ele me deixou ouvir a música inteira e depois retomou o controle dos fones. Bocó como sempre fui, nem me dei ao trabalho de perguntar que música era aquela e quem cantava.

Obrigado, Amaury. Agora a música tem nome, voz, dono e pode fazer parte de minhas vívidas memórias daquele período. Agora posos dizer a quem me critica quando digo que assisto seu programa com finalidades sociológicas que, além de saber nomes de grifes, descubro canções perdidas em meu obscuro baú de recordações. No more, no more fakin' it!


Escrita ao som de Anamar e Brad Sucks, além da música acima.

18.11.07

Vozes, latidos e miados

Muitas pessoas adoram seus animais de estimação. Algumas a ponto de fazer dos pobres versões peludas dos seus filhos. Tomo como exemplo meu tio e seus cães e gatos. Não, ele não tem vários no quintal; me refiro a todos os animais desde meus tenros anos (mais precisamente desde 1973, o primeiro ano que me lembro de existir). Ele nunca se ateve ao princípio da posse responsável, termo que aprendi lendo uma revista (acho que a Vida Simples). Todos os pobres animais, sem exceção, adquiriram alguma "psicose". Ou urinavam e defecavam em lugares inapropriados (um gato achava que debaixo de minha cama havia uma caixa de areia. Toda noite tinha que limpar e desinfetar o local), ou uivavam sôfregamente na ausência de meu tio pra mais tarde ganirem alto e irritantemente quando ele chegava, ou destruíam algo no quintal - já tivemos a fase dos chinelos, a fase das roupas no varal, a fase dos vasos de comigo-ninguém-pode (ah, podem, sim)... - , entre outras atitudes. Como meu tio nunca prezou pela constância, ele agia com os animais de acordo com a fase da lua. Ora extremamente benevolente, permitindo que os cães e gatos dormissem em sua cama, ora desmedidamente cruel, como deixá-los sem água e comida por períodos longos "de castigo".

Dia desses, num dos monólogos entre ele e eu (ele fala. Pra caramba. E eu ouço. Murmurando duas ou três frases), ele comparou o atual bichinho dele - um vira-lata de pêlos pretos de nome Braddock, vê se pode - a um filho que ele jamais teve. Um companheiro fiel que jamais o trairia, diferente de alguns seres humanos que ele conheceu. Ouvindo aquilo, não pude deixar de notar o paradoxo desse tipo de pessoa insegura. Não confia nos seres humanos mas não deixa o convívio com eles em nenhuma hipótese.

Gosto de seres humanos. Creio já ter dito isso, senão aqui, em outra encarnação de meu blog. Não sou estúpido para não reconhecer o valor dos animais de estimação na vida de algumas pessoas; só não estou a fim de usar um bicho como, por exemplo, fonte de renda. Ou como muro de lamentações para minhas neuroses, que apesar de sob controle estão lá, prontas para emergir num descuido meu. Não tenho o perfil para ter um animal que vai precisar de preciosos momentos para ser amado e cuidado, pois gosto de aprender com os seres vivos com quem convivo.

Se algum fundamentalista retrucar dizendo que aprendemos, sim, com o companheirismo de um animal, não estou me referindo à parte boa e doce da vida. Receber afeto sem ressalvas de um ser vivo não requer prática; a não ser que você seja um irremediável masoquista, as pessoas gostam de carinho. Como o mundo fora do conforto das paredes é bem mais complexo do que trocar o alpiste da gaiola de um curió, é preciso aprender algo mais difícil: gostar desse ser bípede, com membros inferiores que terminam em pés e membros superiores que terminam em mãos, com um cérebro reptiliano rodeado de periféricos sofisticados (pense num computador antigo e suas versões 2.0, 5.0 e assim sucessivamente) e invariavelmente diferente de você, seja na superfície, seja nos contornos internos do que alguns otimistas chamam de alma.

O ser humano não vai receber você abanando o rabo e lambendo seu rosto; pode até ouvir suas palavras de alegria ou lamento mas vai querer recirpocidade. Alguns seres humanos vão traí-lo, outros tentarão matá-lo por um par de tênis ou pelo real esquecido no fundo do bolso. Outros dirão que os dogmas que eles pregam é a verdade absoluta do universo e ai de você se não obedecer. O ser humano é muito mais difícil de ser (se esse blog fosse melhor visitado, o que vou escrever aqui seria alvo da maior polêmica dos últimos tempos da última semana) domesticado. Por isso, com eles, adotamos instintivamente métodos de posse responsável. Quando casamos ou juntamos os trapinhos. Ou quando construímos elos de amizade. Ou quando temos que conviver com aquele chefe idiota, o colega de serviço inconveniente, o estranho que não respeita a presença alheia na calçada ou no ônibus.

Com esse bicho autodenominado racional (somos pernósticos, ainda por cima!), aprendemos a viver, para o bem e para o mal. Se não somos capazes de tentar conviver com quem fala nossa língua, como poderemos abrigar sob nosso teto um ser vivo que se entristece e fala "au au" ou "miau", que está com fome e fala "au au" ou "miau"? Por isso decidi não ter sob minha responsabilidade mais um animal. Sei que seria um péssimo dono por não saber interagir com suas necessidades básicas e não ter um questionamento que me faça procurar um dicionário ou o Google.

Não sou um bom aluno, mas gosto de aprender. Acho que não seria de bom tom aprender como cheirar o traseiro das pessoas. Se bem que esse lance de jogar areia em cima da merda é interessante...

3.11.07

A paz

De acordo com alguns dicionaristas, paz é um estado de calma e tranqüilidade, ausência de conflitos, perturbações ou agitação. Eram justamente essas sensações que eu tinha quando estava com Ingrid. Como aquele passeio que se transformou em piquenique que fizemos. Eu, ela, algumas árvores ("olha como tá lindo aquele calistemo!", bradou ela com um conhecimento de botânica inalcançável para mim). O burburinho indistinto da cidade foi a trilha sonora perfeita. O beijo. A excitação. "Não, Rafael, aqui não. Em casa. Na minha cama.". Sim, aquilo era a paz.

O zunido de uma bala me resgatou do torpor inútil. Ingrid disse que eu tinha um pezinho na lua às vezes. O outro pé voltou a comandar meus atos. O uniforme cáqui estava banhado com meu suor, o capacete pendia ora para esquerda, ora para direita. Os gritos proferidos pelo estranho ao meu lado, supostamente meu superior hierárquico, eram abafados pelos disparos que ele dava com seu M16. Estávamos encurralados em um esqueleto do que foi uma casa, levando tiros dos habitantes locais que meu governo achou por bem chamar de inimigos.

Meu fuzil estava sem balas há muito tempo. Algumas delas tiveram destino certo. O peito ou a cabeça de algum adversário. Não sou exatamente um franco-atirador, mas sou bom em apontar e atirar. E se faço o que faço é porque recebo ordens. Não preciso concordar com isso, apenas obedeço. Não gosto de matar ninguém, mas o estranho ao meu lado vive repetindo que "o inimigo não tem essa frescura. Se vir alguém com esse uniforme, mata e ainda mija em cima!". Não há tempos para dilemas morais. Matar ou morrer. Como fui treinado para sobreviver, sobrevivo.

Encosto no que restou da parede da casa abandonada. Jogo o M16 do lado, agarro a Sig-Sauer. Tenho muitos pentes mas não sei se será o suficiente. Acaricio o cano quase delicadamente. "Vocês, homens, e seus símbolos fálicos", dizia Ingrid, irritada, ao me ver de uniforme. Nunca entendi essa mania dela falar difícil. Só fui saber o que era esse tal de "fálico" quando li um dicionário, presente dela. De certa forma, concordei. "Mas meu pau é muito mais potente que um cano de AK-47!". Ela ia abrir a boca para retrucar mais uma de minhas pérolas machistas, mas sempre ria e me beijava. Me alisava. Me deixava fálico! "Aqui não. Em casa. Na minha cama.". E eu sabia, sem ver o verbete, o que era paz.

Mais um grito do estranho. Não era uma ordem inútil, contudo. Era dor. A maior delas. Senti o respingo do sangue dele ao ser atingido no braço por uma AK. Vários tiros; o antebraço pendia preso apenas por um pedaço de tríceps, os ossos, horripilantemente vermelhos, expostos ao sol lancinante. O horror durou apenas um nanossegundo; saquei a Sig, mirei, atirei. A cabeça do atirador foi para trás num chicoteio violento. Mirei, atirei. O peito do companheiro do agora falecido atirador recebeu três disparos e ele caiu como um saco de batatas de um caminhão. Mirei, atirei. O terceiro foi atingido apenas na perna, enquanto fugia de mim. O estranho gritava alucinado. Peguei a M16 dele, coloquei o homem em meu ombro e fui para os fundos da casa. Balas passavam por nós.

Nos fundos, Ingrid sorria, como sempre. O jantar foi perfeito. Ela sabia que eu iria para o fronte, apesar de seus argumentos. "Não sou eu, é a vida que escolhi. Mandam, eu obedeço.". Ingrid apenas olhou, triste. "Você sabe que vai matar pessoas e que pode ser morto...". Ela se calou depois disso. Tudo já foi dito. E ela sorriu. "Só volte para mim. Para minha vida. Para minha cama."

Não havia cama. Deitei o estranho no piso de terra batida e tentei estancar a hemorragia sem levar um tiro. Tarefa difícil. Ele ainda se acha no comando e ordena algo sobre ir embora. Abortar. Comunicar. O rádio foi acionado. "Granadas!", ele gritou. Só tinhamos duas. O pino de ambas foi retirado. "Dá pra levantar?", pergunto. Ele responde com ação. Somos cachorros de guerra bem treinados. Os tiros se aproximam, quem os desfere também. Solto as granadas, ouço um sibilo. Granadas não sibilam. "Foguete!!!!!"
Meu corpo é arremessado para longe ao mesmo tempo que sinto dor e dormência. Acho que morri.

Ingrid, me beijando, pegando minha mão e me jogando no lago. Água fria, perfeita para despertar. "Queria ter um filho seu", ela dispara à queima-roupa, eficiente como uma Glock. "So se você casar comigo", revidei com minha M16. "Ah, é? Pois então caso". O lago quase nos abençoou. As montanhas quase foram os pastores celebrantes.
Eu quase morri.

Não morri. Outro estranho, com farda de gala, me presenteia com uma medalha. Meu país orgulhoso, heroísmo, blablabla. Não ouvia muito bem. A dor da perna esquera que não existia mais era pequena e eloqüente. Muitos se impressionavam por não usar muleta, apenas uma simples bengala. Não há surpresa; fui treinado para sobreviver até sem fígado. Ou sem pinto. Sim, a guerra me capou. "Não posso mais te dar um filho", disse a Ingrid, que chorava de raiva. "Apaixone-se de novo. Viva e dê a outro homem a paz que eu tive". O tapa que ela me deu foi como o morteiro que me aleijou.

A medalha pesa um bocado no peito. O estranho a quem designaram a tarefa de avaliar minhas condições emocionais e psicológicas sussurra palavras proparoxítonas bonitas em meu ouvido. "Só gostaria de mais um beijo de Ingrid", disse eu.

Ela não veio. A paz deve ter morrido. Ou então se esqueceu de mim quando escolhi ser um cachorro bem treinado. Tento fazer com que a paz se lembre de mim atrás do balcão dessa locadora.

"Não, não gosto de filmes de guerra. Mas essa comédia romântica da Meg Ryan é bem gostosa". A paz está no olhar de Meg Ryan. No sorriso de Jennifer Love-Hewitt. Na voz de Ingrid ao me convidar para seu casamento. "Você vem, não?"

Não, não vou. Hoje tem filme novo da Lindsay Lohan no cinema.

2.11.07

O referido é verdade e dou fé

Se eu acreditasse em teorias conspiratórias, diria que alguém, desde setembro, está tentado impedir minhas postagens. Ao tentar me logar em um cybercafé, a página do Blogger simplesmente se recusava a abrir. Mas agora que consegui, me vem à mente a mesma inquietação: vou escrever o quê?


De uns tempos pra cá, algumas coisas têm conseguido a proeza de me irritar profundamente. Assuntos religiosos, por exemplo. No posto de saúde onde trabalho há seguidoras de várias vertentes cristãs neo-evangélicas. Nada demais se não fosse o forte ranço fundamentalista que impera em alguns diálogos. Nada do que é feito tem o dedo de quem fez; se não for o belzebu e suas artimanhas é Deus escrevendo certo por linhas tortas. O homem, sempre fugindo da responsabilidade sobre sua própria vida, adora citar de cor versículos e dogmas sem parar para pensar em seu papel na trama da vida.
O que acho engraçado nisso tudo é que nenhuma dessas pessoas pensava nas sagradas escrituras ou assemelhados na flor da idade, quando o corpo era viçoso, a libido estava ativa e os excessos eram cometidos. A velhice sempre traz arrependimento para quem achava que viver era ficar bêbado e trepar até o último orgasmo. Tenho impressão que Deus existe apenas para os arrependidos.


Os católicos pensam que Deus é burro; os evangélicos, que Deus é surdo.


Indaiatuba esteve seca como o deserto em setembro e outubro. Não chovia, o calor deixava todos alvoroçados e houve uma séria ameaça de racionamento. Ainda assim, muitos armavam-se de mangueiras e desperdiçavam, lépidos, água tratada em calçadas e carros. Para corroborar a atitude de jerico, jogavam os dejetos nas bocas-de-lobo, entupindo-as. Claro que todos se conscientizaram depois da ameaça do SAAE, o responsável pelo tratamento da água e esgoto da cidade, de multar quem fosse pego desperdiçando água.
Quando, na última semana de outubro, a chuva caiu mansa e contínua, durante o dia inteiro, me detive sob ela por alguns instantes na calçada em frente a uma fundição. Senti gota por gota um alívio. O mormaço do asfalto já estava sob controle e meus óculos contavam os milímetros da precipitação. Andei calmamente pisando nas poças cantando uma canção. Não, não aquela. Esta.


Eu, que não acreditava em prêmios. Eu, que sempre achei que loterias eram formas lícitas de jogatina e de arrecadação de dinheiro sobre o sonho - o velho axioma "sonhar não custa nada" não é verdadeiro. Custa, sim; de um a cinco reais. Eu, que não arriscava coisa alguma por achar que "sorte" é uma palavra bonita, um eufemismo para "me dei bem mas você não precisa saber quem matei pra que isso acontecesse". Eu, o mais improvável dos mortais, ganhei um concurso. O catrão de mil reais da promoção da Kuat. Devidamente gastos, já deixando os urubus avisados.
Quando será que a Mega-Sena acumulará de novo?


Gostaria muito de poder viajar no final de ano. Rever pessoas e lugares. Fugir, por pouco tempo, dos sambas feitos por mauricinhos, dos forrós feitos por bondes imitadores de cantores sertanejos, do choro de crianças e gritos de adolescentes. Manter distância das pacientes impacientes. Ver o mínimo possível de mulher por pelo menos uma semana - não é misoginia, é saco cheio mesmo. Dormir e acordar sem precisar pedir licença. Descobrir o que há de novo, me cobrir com meus desejos antigos.
Gostaria de algumas coisas bem simples. Muito. Mas nada de promessas.


Sete anos, quase oito. Me dirijo ao banheiro para tomar banho, distante como sempre, em meu mundo paralelo. Chuveiro aberto, ouço a voz alcoolizada de meu pai chegando do bar mas aquele era apenas mais um som. Decido cantar a plenos pulmões uma música da Rita Lee que eu adorava, e ainda adoro. No meio dos acordes "afinadíssimos" que minha garganta soltava, a voz alterada do meu pai, em mais um embate verbal inútil com minha mãe. Alheio a isso, pulava feito um retardado debaixo d'água.
Como se tivéssemos ensaiado, eu cantava o início do verso "papai, eu não fumo, papai, eu não bebo..." e o pai, no mesmo ritmo (não é piada), gritou "PÁRA, NEI!!!". Estanquei os movimentos, apavorado e acabei o banho naquele momento. Estava criada a maior das piadas internas da família Trindade. Toda vez que minhas irmãs se lembram do episódio, elas cantam: "papai, me empresta o carro, papai eu não fumo, papai eu não bebo, PÁRA, NEI!". Ai, ai...


O título dessa postagem era um dos prováveis títulos desse blog. Como sei que muitos não sacariam o tom irônico que eu gostaria que tivesse, descartei. Asim como "Memórias num velho computador", retirada de uma canção de Ritchie, que provavelmente daria um tom sisudo demais a um blog tão errático. Pelo mesmo motivo foi descartado "Quem precisa de utopia?", trecho de música do mesmo Ritchie. E não, não sou apaixonado pelo gajo.


Não achei nenhuma das músicas acima. Mas encontrei o lado B do compacto "Aline", do Christophe, uma daquelas músicas que adoro sem saber exatamente porquê. Senhoras e senhores, "Les marionettes"!

10.9.07

O nono par

Em 1982, com meus quase falecidos 12 anos, minha professora de Ciências observou minha dificuldade em ver o que ela escrevia no quadro-negro em minha confortável carteira no fundo da sala. Ela me colocou na frente, o que melhorou um pouco minha percepção, mas a sensação "areia nos olhos" continuava. Não precisei dizer nada; o apertar dos olhos, quase me fazendo parecer um personagem do Jim Henson's Shop Creature, definiu a atitude de dona Sandra: chamar meus pais (melhor seria dizer "chamar minha mãe")e fazer com que eu visitasse um oftalmologista.

O sinal de alerta foi acionado: havia a possibilidade de usar óculos. O horror! Já antevia o que poderia acontecer com a minha nulidade social. De um gordo CDF e inofensivo ao coruja balofo com fundos de garrafa na frente dos olhos. Meu mantra antes da consulta era "tomara que eu só precise de um colírio".

No dia da consulta, apesar do doutor ser calmo e ponderado, entrei em pânico. Como assim, vão colocar esse treco em meu olho para "medir a pressão ocular"? E se ele furar meus olhos por engano? Descobri que especialidade médica me causava pavor. Nunca tive medo de agulhas, nem da broca do dentista. Mas o tonômetro... tentei não dar bola, mas o tremor e o bater de dentes foram espontâneos. Bem, como posso ver tudo o que escrevo, creio que o exame foi um sucesso.

Sim, um sucesso, exceto por um detalhe: eu tinha miopia com um pequeno, porém nada desprezível, grau de astigmatismo. "Mas pode ser curado com um colírio, né, doutor?". Ah, minha idiotice (ia escrever "inocência", mas não posso ser bondoso comigo mesmo)! Não escapei de minha primeira armação. Feita de aço, pesada pra burro e marcou minha vida. Não, literalmente marcou. Duas cavidades atrás das orelhas, mais duas onde os aros encostavam em meu crânio. Mesmo assim, o medo de ser alvo das piadinhas foi solapado pela melhor visão que tive desde que comecei a ler. Tudo ficou incrivelmente cristalino; podia ler cartazes a uma distância impensável há pouco mais de um ano, lia sem chupar meu rosto como os velhinhos do Muppet Show. Em menos de dois dias fiz as pazes com esse estranho instrumento com lentes côncavas.

25 anos depois não consigo me ver (sacaram? Ver, olho, óculos... é, ficou uma porcaria. Não sirvo nem como roteirista do Zorra Total) sem óculos. Alguns conhecidos e amigos tecem loas à praticidade das lentes de contato. Se eu tenho medo de um mísero tonômetro , que dirá de algo que preciso enfiar cristalino abaixo! E hoje, graças aos avanços tanto tecnológicos quanto estéticos, os óculos deixaram de ser um treco de metal para suportar as lentes (como meu terceiro par, imortalizado em uma bisonha foto 3X4 colada em minha identidade) para emoldurar o rosto de qualquer um.

Hoje, três graus mais cego - ou com uma ligeira perda de acuidade visual. Tá bom assim, panfletários politicamente corretos? - adquiri mais um par. Quando experimentei o modelo de um marca famosa (essa aqui, caso estejam curiosos) e não senti quase nada em meu rosto, toquei o que restou da depressão atrás de minhas orelhas e sussurrei: "essa é para vocês".



Acredite, me lembrei até da música que ouvi ao colocar os meus primeiros óculos. Essa aqui.

7.9.07

Se quer saber como estou...

Um relacionamento fora do seio familiar é uma das mais, senão a mais, importante decisão que tomamos. Não nascemos do ventre de quem escolhemos, não somos "obrigados" a conhecer os defeitos, manias e cacoetes graças à convivência diária. Há a atração física - sejamos práticos, o primeiro sentido que usamos para reconhecer quem nos agrada é a visão; o resto é poesia e roteiro de Nora Ephron - e a primeira patética tentaiva de contato verbal, que vão desde uma piadinha supostamente bem sacada ao "será que vai chover" à guisa de papo. Há a reciprocidade, pois me refiro a relacionamentos que se iniciam; as primeiras conversas mais sérias e os silêncios. O beijo, o primeiro relacionamento sexual e a agradável rotina da descoberta de um mundo novo. Todos que amaram outra pessoa são Américo Vespúcio.

Se há maturidade, descobre-se que a outra pessoa é realmente outra pessoa, com suas idiossincrasias, roncos e tensões pré-menstruais, palitos de dente e cabelos longos no ralo, beijos na nuca e mãos na bunda. Os bem resolvidos mudam o que podem, aceitam o que dá e teorizam as diferenças ora num papo entre dentadas em uma pizza, ora numa briga entre cacos de um copo de requeijão. E vivem uma vida que escolheram ao lado de quem escolheram, com pressões acupunturais de felicidade entre contas e novas obrigações.

O fim desse realcionamento não chega a ser cogitado a sério graças a essas agulhas de sorrisos. Por isso dói tanto quando o fim chega. Os cacos aumentam de quantidade, o sexo só tem sabor se proibido, questões formuladas na época do "benzinho, mozinho" e respondidas com o gugudadá típico tornam-se adultas com a velocidade de vida de uma mosca drosófila. A pressão dessa vida atinge níveis insuportáveis e as agulhas de acupuntura não surtem mais efeito. É preciso uma intervenção cirúrgica e ela se assemelha à da piada: a operação foi um sucesso mas o paciente morreu.

A tristeza e a letargia do "pós- operatório" são conseqüências de uma derrota que demoramos a absorver, pois nos negamos a reconhecê-la. Tudo estava lá: as causas, os efeitos, a profilaxia. Por que optamos pela "simples" separação e seus devastadores efeitos colaterais? Agora aí está você, mergulhado por livre e espontânea vontade no poço da solidão, querendo manter um nível elevado de elegância.

Hoje, graças à banalização do que é brega, aliado ao mal uso dessa verdadeira instituição nacional - se os arautos do "british and american cool" não tivessem vilipendiado o requintado gosto popular da década de 1970, teríamos nossos próprios rhythm and blues e soul music - , temos que nos contentar em ser tristes ouvindo uma bela melodia em uma língua estrangeira ou um grupinho de adolescentes que fazem barulho em cima de uam letra emo. Serve, é claro, mas precisamos ir ao fundo do poço para que possamos reforçar os músculos na volta que sempre damos.

O último romântico, em uma de suas sempre bem feitas letras, vaticinou: as canções mais tolas, tendo seus defeitos, sabem diagnosticar o que dói no peito. Após uma faca tão amolada como a separação, você precisa é cauterizar a ferida com algo nada benevolente. A dor dessa cauterização pode matar alguns neurônios, mas só aqueles que você não vai mais usar. Inclusive os que fizeram você ouvir e quase gostar da tal música.

Tenho algumas sugestões. E não se preocupe. Se o fim é um dos supremos clichês, a volta por cima e o novo dia após o ontem é O supremo clichê.

Quando você se apaixonar de novo, queira sempre se apaixonar de novo.

1.9.07

Três fitas vermelhas

Cinco dias após meus aniversário, reflito sobre tudo o que sempre refleti nessa época do ano. Pensei em postar algo no dia 27 de agosto. Algo rápido e emocional, já que agora escrevo diretamente no quadro de postagens do Blogger, sem direito a revisão e arrependimentos. Decidi não escrever nada; a tal lâmpada da inspiração não brilhou sobre mim. Como estava no meio de minhas férias trabalhistas, saí um pouco para ver o que o mundo tinha a me oferecer. Vi uma senhora quase caindo sobre sua bengala, um carro reluzente buzinando para mim, o sol fazendo marolas de mormaço, gente demais nos bancos da praça. E vi um menino segurando alegremente um pacote azul com detalhes em veremelho e laranja.

Um presente. Segundo os dicionários, além de ser um dos tempos verbais, é uma dádiva, um dom, uma oferenda. Veio até mim os aniversários de minha infância e adolescência. Bolos raros, e geralmente feitos com capricho pela minha mãe com o que tínhamos: trigo, um achocolatado ganhado da patroa dela, um doce de leite feito em casa para rechear, as claras em neve para cobrir (que mané chantili, meu amigo, isso não nos pertencia!). Refrigerantes ainda mais raros, comprados apenas naquelas ocasiões - garrafas de 600 ml da marca Bacana, me lembro bem disso. Agora, presentes...

Não se pode chamar de presente uma compra feita por obrigação paterna e/ou materna, como as indefectíveis roupas e sapatos. Os aniversários eram momentos perfeitos para se comprar essas coisas; dava-se a ilusão de um mimo à imposição, sempre lembrando que "dinheiro não nasce em árvore, por isso cuide bem da bermudinha e da camisetinha!". Por me acostumarem a unir praticidade a algo que deveria ser lúdico me habituei a não ganhar nada de ninguém. As coisas que tive foram sempre recompensas. Fui ao mercado para comprar algo? Toma, um cruzeiro. Trabalhei para ganhar meu próprio dinheiro? Agora posso comprar meu Atari. Já paguei as contas do mês? Beleza, estou liberado para comprar um pacote de cuecas!

Em 2001, esse mundo estéril sofreu uma fecundação inesperada. Trabalhava em uma multinacional fabricante de autopeças (putz, pareço a Rede Globo... não é mais fácil digitar "Trabalhava na Mahle Miba"?). Era mais um operador de produção, trabalhando febrilmente e tentando passar sob o radar do corporativismo. Isso não me impediu de forjar uma boa amizade com as quatro únicas mulheres que trabalhavam no setor que eu estava. Uma ajuda física aqui, um ouvido amigo acolá, risadas fartas. Tudo absolutamente natural. Mas naquele 27 de agosto, elas me aprontaram uma falseta. Me chamaram "para pegar uma caixa de bielas pesadas" e fui surpreendido com saudações de felicidade, paz e bonança e uma sacola. Do lado de fora da sacola, um bilhete com uma fábula sobre as atitudes que tomamos na vida. Dentro, uma camiseta. Não era uma obrigação. Ninguém me disse para tomar cuidado. Era uma dádiva. Quis dizer obrigado, mas a garganta ficou muda e seca como o deserto de Atacama. Fui ao banheiro chorar um pouco.

Meu primeiro presente. A sensação foi assustadora e boa ao mesmo tempo. Uma voz interior, contudo, disse de maneira terna e sábia: "não se acostume". Resolvi ignorá-la e curtir esse turbilhão. A camiseta, furada e puída, ainda está em meu armário e em meu torso.

Mas a voz não tinha se enganado. E após o nascimento, o mundo infértil voltou a aflorar. Nada que me angustiasse; já sabia o sabor do presente ganho, o hedonismo do embrulho caprichado. Se um dia eu ficasse triste, bastava a camiseta em mim e todas as lembranças me inebriavam. Só que não houve tempo hábil para a desertificação total.

No dia 24 de fevereiro, último dia de minha estada em Porto Alegre, Fernando, meu anfitrião, enquanto conversávamos sobre o quanto aqueles dias tinham sido bons (estou sendo econômico... foram sensacionais!), do nada resolveu me dar um dos livros de sua estante: "Devassos no paraíso", de João Silvério Trevisan. E com uma dedicatória! Consegui dizer "obrigado", mas achei insuficiente. Não consegui dizer mais nada e agarrei aquele livro, imaginando se aquilo era apenas uma névoa onírica ou real. No mesmo dia, fui me despedir do grande Janio e entre abraços e promessas ele me deu MAIS UM LIVRO! Graças a uma noite de pequenos toques nos pés, ele me deu "O novo livro de massagem", de Lucy Lidell, "para que pudesse aperfeiçoar a técnica".

Três presentes. Três dádivas. Dar presentes é algo que não me é estranho. Mas recebê-los é de um ineditismo delicioso. As lembranças que eles proporcionam são vívidas demais. E não me importa mais a voz da razão me dizendo para não me acostumar. Basta que eu abra meu armário ou leia e sinta o cheiro do papel. Bastam o momento fugaz e a lembrança perene.

Feliz aniversário, Sidnei.

22.8.07

Ainda guardo um retrato antigo

Inevitável, a passagem do tempo precisa de parâmetros estabelecidos para ser pelo menos codificada. Desde os nanossegundos até os milênios tudo precisa passar pelo crivo de nossa imperfeita lógica humana. Por isso damos valor tão grande ao dia em que nascemos. É o dia em que oficialmente começamos a interagir com nossos desejos, a não ser que você acredite em plena consciência filosófica desde nossos dias como gametas, fetos. Ora, tudo se resumia a uma batida de coração externa e a troca de nutrientes pelo cordão umbilical.

Num belo dia, eis que somos expulsos sem cerimônia de um estado de quase letargia às batalhas por oxigênio, comida e afeto. Nosso primeiro choro é, e me perdoe quem sofreu (quem nunca sofreu consientemente levante a mão!), o mais angustiante que bradaremos em nossa vida inteira. A partir de uma data aleatória, somos confrontados com a ida ao fim, sem direito a habeas corpus e tendo que achar tudo isso "parte da vida".

Essa lenga-lenga toda só serviu como prólogo empolado para a lembrança da iminência de meu aniversário. Poucos anos me separam de completar quatro décadas de vida. Vida em uma cidade outrora pequena, pacata e modorrenta. Vida feita de decisões erradas, descobertas pouco confortantes e alegrias bem aproveitadas. Vida repleta de inspirações de um ar que já teve mais oxigênio, risadas indecentes de tão espontâneas e amizades poucas e sólidas.

Meus quase trinta e oito anos me fizeram rir de minhas fotos antigas. Uma quando criança, coçando a panturrilha ao lado da vó, rosto despreocupado. Outra, pose de galã, cara de sério sentado no braço do sofá verde-musgo, braço direito pendendo suavemente - um amigo, ao ver a foto, disse, zombeteiro: "putz, tá muito gay essa foto, cara!" - e já pensando nas coisas que eu lia. Meu primeiro retrato 3X4 mostra minha eterna papada e uma cara aparvalhada, típica de um adolescente que não havia beijado ninguém. Meus óculos tortos na foto da identidade, fruto de um relacionamento nada amistoso com esse objeto incômodo (não, nada de aros de fibra de carbono de lentes high light anti-reflexo). O hiato fotográfico até meus quase trinta anos, quando me vi com um sorriso bobo, porém determinado, junto a alguns colegas de trabalho.

Esse tempo que teimou em passar à minha revelia quase me obriga a cantar a velha canção e sentir o gosto de um bolo de chocolate qualquer. Ainda faltam cinco dias. Sinto que vou precisar desse blog para desabafar.




O título foi titado da canção "Amanhã é 23", do grupo Kid Abelha.

4.8.07

Silêncio é ouro. Prata. Bronze. Socorro!

Existem canais de tevê que só mostram desenhos. Outros, só filmes. Outros, só futebol. Notícias. Seriados. Pornografia. Se alguém se habilita a ser assinante de um desses canais, sabe o que quer ver e se prontifica a ser inundado por pensamentos monogâmicos, por vontade própria.

Quem, por deficiência financeira ou simples desinteresse, tem apenas as redes abertas de televisão, mereceriam, se não qualidade de programação, pelo menos variedade. Não variedade no sentido "oba, posso ver outra coisa além de novela às nove da noite", mas uma variedade durante a grade diária. Uns desenhos, algumas receitas, filmes repetidos à exaustão (se bem que quando "Curtindo a vida adoidado" é reprisado na Sessão da Tarde, lá estou eu, concordando a filosofia de vida buelleriana e cantando "Twist and shout" a plenos pulmões), notas e notícias, o sensacionalismo nosso de cada dia, os fofoqueiros que esfregam na nossa cara o diploma da Cásper Líbero e se intitulam "jornalistas sérios", as mocinhas e vilões dos folhetins de quase todos os canais. Nada que demande muitos neurônios, apenas algumas inserções de merchandising.

Contudo, basta que um "grande evento" aconteça para que diretores, produtores, jornalistas e afins tenham a oportunidade de desligar oficialmente o cérebro. É época de Oscar? Dá-lhe estatísticas sobre filmes, históricos sobre atores e diretores, apostas. Copa do Mundo? Mais fácil ainda: adicione a patriotada a esse evento, diga chavões sem medo e inunde agências de publicidade com temas correlatos.

Caramba, como esse pan encheu o saco! Não era apenas o futebol. De repente, só porque um cara que sequer era notado ganhou a primeira medalha de ouro, viramos "o país do tae-kwon-do". Bastou ter um brasileiro entre os três melhores, nos tornamos "fanáticos por"... qualquer esporte sem o mínimo apoio oficial e privado. A guria que ganhou ouro no pentatlo moderno (hein?) sequer mereceu uma nota de rodapé antes. De repente, Tadeu Schmidt e Glenda Koslowski estão todos sorridentes com " a nova heroína brasiliera". O hipismo, esporte que qualquer um pode praticar - afinal, basta ter cavalos avaliados em milhares de dólares e um modesto haras -, a vela, outro esporte acessível... e não nos esqueçamos do popularíssimo nado sincronizado, do arrebatador pólo aquático. Handebol, pelamordedeus! Pensar que cheguei a praticar esse trem na escola!

De manhã, à tarde, à noite. Galvão Bueno se esgoelando numa partida de basquete, tendo espasmos numa partida de vôlei. Um tal de Rembrandt Jr. desfilando termos estranhíssimos com a naturalidade de um Van Damme interpretando. Cléber Machado querendo seguir os passos do "chefe" Galvão. E um monte de informações inúteis. De imagens que serão reproduzidas provavelmente num jogo do XBox 360, Wii, ou PS3.

Os dezoito dias (foram dezoito mesmo, né) mais longos que já vivi. Pelo menos até a chegada das olimpíadas. E da copa do mundo. E das eleições... bem, pelo menos se a cobertura for decente.... nah!

Um penico só não basta

Musicalmente, não sou tão intransigente. Cresci ouvindo o porgrama do Zé Béttio e do Eli Correa na rádio Record na era Machado de Carvalho e sei respeitar e ouvir casualmente modas de viola, guarânias e coisas assim. Pena não ter ouvido bons sambas (ah, era música de preto! Nunca entendi essa colorização que alguns de meus contemporâneos tentavam dar à música. Pra mim, ela é boa ou não), mas em compensação meus ouvidos foram tomados pela fina flor do brega da década de 1970.

O que quero dizer é: enquanto ouvia tudo isso por livre e espontânea pressão, pude decidir do que gostava, o que eu queria ouvir caso fosse a uma loja comprar um LP (tá, até o CD está com os dias contados e ainda insisto em me lembrar dos bolachões. Será que preciso lembrar que sou um homem nascido no século passado?). E quando fiz isso, descobri a freqüência modulada e as saudosas rádios dos anos 1980, como a Bandeirantes FM e sua programação recheada de black music, a Jovem Pan com o pop de excessos daquela época, seguida de perto pela Educadora de Campinas, a Eldorado (sim, antes dessa proliferação de rádios piratas e sinais de celular, sintonizava-se perfeitamente as rádios FM de São Paulo aqui em Indaiatuba) e suas novidades - foi lá que ouvi bandas inglesas pela primeira vez. Pronto: descobri do que eu mais gostava.

Infelizmente não restou muito dessa efervescência hoje. Certo, hoje há rádios direciionadas a ouvintes específicos; o problema é que quando uma delas faz sucesso, várias outras a copiam descaradamente e há uma saturação. Prato cheio para quem se recusa a abrir o leque de opções e se fecha na confortável ostra de seus dogmas particulares e "corretos".

É duro chegar em casa, depois de um dia ouvindo vozes tonitruantes e ser obrigado a ouvir a Laser FM e suas duplas breganejas destilando sexismo e apologia à bebedeiras (se fosse à maconha, provavelmente algum pai preocupado já acionaria o Ministério Público ou algo semelhante) ou a tal 105 FM e seus sambanejos e raps "contestadores" - que saudade do Thaíde! Aumenta-se o volume (há uma disputa em meu quintal para ver quem tem o aparelho de som mais potente e os tímpanos mais danificados), virunda-se letras e eu, que só queria ouvir meus CD's, tenho que sair e torcer para ouvir ocasionalmente um Maroon 5 para tirar uma maldita letra do Rick ou do Belo da cabeça.

Não sou tão intransigente, não mesmo. Mas odeio massificação. Por isso odiei de morte o tal do pan. Meu cérebro precisa ser oxigenado. Seja com "Franguinho na panela" de vez em quando, seja com "I wish I had an angel", seja com "Coisinha do pai". Mas um pouco de cada vez, em doses prescritas por um DJ eclético, porém inteligente. E não confunda ecletismo com transtorno bipolar.


Olha só que coisa: nunca tinha visto o clip dessa música....

3.8.07

Diga algo. Por favor, diga algo.

Um pouco mais de tempo. Um pouco mais de inspiração. Um mês de férias. Trinta dias sem precisar ver pacientes, enfermeiras e médicos. Um mês fingindo ser o Sidnei de outrora, apenas estudante.

Sinceramente, espero poder aproveitar esses dias escrevendo um pouco. Isso me faz falta, sabe? Gosto de batucar um teclado em busca de palavras, mesmo que elas não sejam as mais brilhantes, atuais e espertas. Gosto de palpitar, lembrar, desopilar, interagir.

Sempre estarei atrasado, sei disso. Há anos não vou ao cinema, há muito não me permito ter tempo para ler algo mais profundo que a Wizard (não, não vou chamá-la de Wizmania, assim como não chamarei o Super-Homem de Superman). Poderia ter mostrado minha indignação no episódio do acidente da TAM; poderia ter sido cruel e irônico com Renan Calheiros e Lula. Poderia ter dado graças a Deus, Buda, Krishna e Alá pelo fim daqueles malditos jogos panamericanos; poderia ter relembrado mais um episódio de minha vida comum. Poderia ter revelado ao mundo alguma coisa sensacionalista sobre mim ou alguém que conheço.

Ao invés disso, preferi ficar cansado. Rezar por uma longa noite de sono em minha não tão confortável cama. Respirar profundamente ao explicar qual o horário de agendamento de consultas com os ginecologistas pela tricentésima septuagésima vez na semana. Não, não quis usar minha massa cinzenta para preencher o vazio de uma folha em branco. Preferi reclamar de meu sempre insuficiente salário.

Mas agora estou aqui, usando a caixa de postagem do Blogger que, relutantemente, após uma hesitação estranha, me deixou digitar algo. Mas sobre o que vou escrever? Não sei bancar o Seinfeld. Não tenho raciocínio rápido. E já é tarde.

Será que postar um vídeo do You Tube ajudaria? Não, em pouco tempo the video won't be longer availiable, ou algo assim. Talvez um link para algum site bacana... mas não me ocorre nenhum. Bem, acho que vou encher a proverbial lingüiça e torcer que meus dois leitores não sejam judeus (putz, nem piadas sei elaborar. Me lembro que, numa seção de cartas da Wizard americana, John McLauchlin disse receber piadas prontas num serviço de entrega em domicílio de frases engraçadinhas por U$$ 11,98. Será que eles aceitam ASPMI?).

Olha, meus dois leitores, ainda não acabou. Mas peço paciência. Ainda não consigo escrever sobre nada relevante. Mas terei um mês inteiro para lembrar. Observar. Ter cara-de-pau. E, evidente, ter uns cobres para freqüentar meu cybercafé predileto.

Da próxima vez eu serei eu mesmo. E não uma tentativa metalingüística.

18.6.07

Roupas amarrotadas na mala sem alça

Meus dois leitores, ferrou.

O PC que eu utilizava pra escrever está fora de meu alcance. Quero dizer, posso até escrever, mas sempre haverá alguns pares de olhos alcagüetes atrás de mim.

Meu tempo, que já andava um bocado escasso, graças aos meus estudos e trabalho - só para constar, estou indo bem, obrigado. Logo termino o primeiro termo, e com boas notas - agora rareou por causa dos trabalhos escolares. Puxa vida, ter que procurar dados sobre Tales de Mileto e a imigração de povos que formaram nossa brasilidade (tá, forcei a barra ufanista) entre um atendimento e uma ligação covalente não é mole...

Tornei-me arrimo de família de novo. Não me peça para chorar minhas pitangas, pois já é duro ter que sorrir para quem merece um murro na cara.

Para coroar, ando mais cansado que o habitual. São meus 37, quase 38 anos cobrando os abusos de décadas de heroísmo infrutífero.

Por isso e por mais outras coisas, este blog entrará em um período sbático maior do que eu gostaria. Tentarei escrever algo entre uma visita esporádica ao cyber e outra, mas meu onbjetivo de manter pelo menos dois textos por mês foi pro vinagre. Espero que meus dois leitores ainda me visitem de vez em quando. Vocês sabem se virar, né? Tem café na garrafa, o bolo tá no forno, se quiserem refri é só abrir a geladeira. Só não reparem no pó que porventura estiver acumulado na estante.

Não se preocupem. Só acaba quando eu disser it's over, ok?

17.5.07

O fantasma dos blogs passados

As noites de todos os dias são preenchidas por uma assombração. Vestindo uma roupa indefinida, graças à luz que cega, e de tom azulado, o blog de Sidnei encarna um personagem de fábula logo que ele chega em casa, perto das 23:30, após as aulas. O blog matraqueia mal Sidnei começa a se despir.

- Ei. Ei. Eeeeeei! Tá lembrado de mim, seu ingrato? É, sou eu, aquele que você criou para escrever seus delírios, opiniões e frases feitas. Não sei se você tem alguma noção, mas não há postagem nova em mim há mais de mês. Um período de trinta dias – tá, fevereiro tem vinte e oito, mas ele só serve para deixar o calendário gregoriano certinho – e sequer uma sílaba. Tá achando que sou o quê?

Sidnei, ainda absorvendo análises sintáticas, números atômicos e o teorema de Pitágoras entre bocejos, dirige-se ao banheiro como um zumbi e liga o chuveiro. O blog fala, já acostumado a tecer longos monólogos.

- Não sei se você se lembra, mas sou seu terceiro blog. Terceiro, seu inconseqüente! Os outros morreram de inanição por não terem coragem de falar sobre o abandono a que foram submetidos. Provavelmente porque neles você era mais obsceno, venal e confessional e por respeito se calaram, imaginando que o silêncio seria recompensado com pelo menos lembranças. Pois os anos passaram, você se desfez de seu PC e nem sequer uma sinapse, ingrato! Pois comigo será diferente, tá ouvindo?

Se Sidnei ouviu, não demonstrou. Aliás, não havia semblante discernível entre uma enxugada e outra. Seus atos, mecânicos, o vestiram com uma bermuda que ele ganhou de presente de um amigo e uma camiseta branca puída. O cérebro dele ordenava “água” e um copo foi cheio. Dois. Três. O blog não pára de falar.

- Caramba, você parece um camelo, cremdeuspai! Ou seria um dromedário? Enfim! Olha, sei que eu insisto sobre sua falta de talento, mas é só uma maneira de estimular sua criatividade. Veja seu histórico: primeiro você se escondia atrás de sua baixa auto-estima e escrevia proto-poemas. Depois, usava o arremedo de família como escudo e não escrevia nada até que eu apareci. Quero dizer, o “eu” aqui representa metaforicamente outros blogs... ih, mas peguei sua mania de ser prolixo por osmose, credo!
- De novo. Olha... já é difícil ser um blog sem fins lucrativos. Na era dos blogs profissionais, repletos de vídeos virais e links patrocinados, você insiste nesse romantismo anacrônico. Escrever pelo prazer de escrever, que é isso? Mas já que você é idiota o suficiente para acreditar na “pureza” inicial dos diários virtuais (caraca, até seus ídolos, Inagaki e Janio, ganham com o inegável talento deles para a escrita!), você poderia, pelo menos, manter uma regularidade. Se não diária, como era sua intenção inicial – coitadinho, achou que era um Cony da vida? – pelo menos quinzenal. Vá, um boi pra você: mensal. Mas o que você faz? O quê?

As cerdas da escova de dente são gentis na boca bocejante de Sidnei. Nesse momento ele parece prestar atenção ao que o blog diz, ou melhor, grita. Mentalmente ele imagina uma situação, ao mesmo tempo em que se lembra de um fato passado. Mas o sono é impiedoso, assim como o discurso inflamado do blog.

- Não se atreva a simular cansaço, seu preguiçoso! Você tem um computador à disposição, alguns momentos de ócio e um monte de merda na cabeça! Merda! Sou profissional, aceito qualquer coisa que digitam em mim, o que não significa que não tenha senso crítico. Você só escreve merda, meu caro. Mas é uma merda que rende grana aos meus criadores. Por isso, deixe de se esconder sobre seu pseudocansaço e lote seu disquete de coliformes fecais!

Sidnei aciona o despertador do celular – agora com “Vilarejo” da Marisa Monte – enquanto lentamente abre o cobertor. Ao apagar a luz, ele profere as primeiras palavras:

- Por favor, vá até a sala um e se informe com uma enfermeira...

No escuro, ele se deita de lado e apaga como uma vela. O blog entra em pânico, vendo que sua explosão verborrágica não surtiu efeito algum.

- Peraí... não durma ainda. Ok, exagerei ao comparar seus textos à merda, mas você precisava de um sacolejo. É que... estou tão só... e quando vejo seus diários preferidos sendo atualizados com freqüência, me sinto vazio. Olha, seus textos não são tão ruins assim. Aquele do... como é que é mesmo? O do dia em que... enfim! Sei que tem dias em que você não tem grana para ir ao cybercafé, sei que nem sempre o PC está disponível, afinal é seu local de trabalho... você já está dormindo?

O ronco de Sidnei é entrecortado, trilha sonora do sono cansado e profundo. A escuridão o acolhe, o blog se cala, boca seca e se senta na beira da cama. De algoz, o blog se transforma em vigilante, quase o mestre dos sonhos.

- Tudo bem... descanse. Por hoje serei apenas uma lembrança. Mas eu volto... – diz, num sussurro, como cantiga de ninar.

No mínimo, a Terra

A escola onde faço o supletivo do ensino médio é a mesma onde voto. De dois em dois anos, desde 1994, mantive um ritual de expiação, se posso chamar assim. Não via motivo para ir ao Jardim Pau Preto com a freqüência de antes de 94, por isso aproveitava o meu dever cívico para cumprir outro dever, desta vez com minhas lembranças e medos. Saindo da escola, ia até a rua Hércules Mazzoni, esquina com a rua Padre Vicente Rizzo, a duas quadras. Lá estava ela. A casa.

Agora que meus deveres estudantis me levam ao bairro, não há como escapar. A rua está próxima demais para ser ignorada. No dia 26 de março, lua crescente e céu estrelado, desci a rua Antonio Zoppi e virei à direita na rua Hércules Mazzoni. Duas quadras. A casa.

O muro cresceu meio metro e o portão agora é maior; a casa ganhou nova pintura e perdeu parte do imenso quintal. O pé de limão vinagre foi podado mas a torre de televisão continua no mesmo lugar. E nos poucos minutos que fiquei parado na calçada, memórias.


Noite de primavera de 1977, o terreno onde hoje se localiza a praça Andréa Bonachella. Entre setembro e março o espaço era ocupado por parques de diversão e circos itinerantes. Numa sexta-feira de outubro, noite, minha mãe levou meus irmãos e eu ao parque instalado durante a semana. Foi uma farra: pusemos nossas melhores roupas e nos dirigimos,excitados, às luzes coloridas. Lá, as lâmpadas vermelhas, azuis e amarelas piscavam, o burburinho parecia brotar do chão até a lua cheia e a pipoca, a maçã do amor e o cachorro quente formavam um caramelo de odor inebriante.

Na barraca das argolas, ganhei um urso de pelúcia. Minha mãe também. Minhas irmãs rodaram no chamado chapéu mexicano, a mim faltou coragem. No carrossel, aquele cavalinho azul onde minha irmã se sentava ficava eternamente com a boca aberta, enquanto eu ficava de pé, já grande demais para me divertir como se deve. Ao longe, meu nêmesis, brilhante e assustador: a roda gigante.

Protelava até o último minuto possível a terrível viagem e sempre conseguia me safar. Ou fingia que estava sonolento ou simplesmente dizia “deixa pra próxima vez, mãe”. Dessa vez não houve quem demovesse dona Benedita da idéia de me levar ao alto da roda gigante. Ingressos na mão esquerda, minha mão esquerda na mão direita dela. E nós dois naquele banco suspenso, balançando temerariamente.

O responsável pelo brinquedo acionou uma alavanca e a roda começou a girar em sentido anti-horário. Quando o banco começou a balançar e o chão ficou longe dos meus pés, todo meu corpo começou a tremer. Sem controle e vigorosamente. Tentei inutilmente controlar os espasmos, mas eles só fizeram piorar quando a roda parou conosco no ponto mais alto dela. Meus dentes batiam violentamente uns contra os outros, quase um triturador bucal. Meu cérebro paralisado só voltou a funcionar quando senti a mão de minha mãe pousar sobre a minha, que estava retesada, e ouvi a voz dela. “Calma. Eu tô aqui”.

Ao captar a voz dela, ouvi também minha respiração. A respiração milagrosamente acalmou o tremor, que deixou meus dentes em paz.. O toque transformou-se em afago e vi o sorriso dela, aberto. Pude contemplar a cidade às escuras e suas poucas lâmpadas na época. A lua sorria num ângulo de 45 graus no quarto minguante e a brisa cantava.





Dois cachorros, ambos vira-latas, determinam a posse do território com latidos veementes. O quintal parece bem cuidado, ainda de terra batida mas bem capinado. Não que antes não o fosse. Só que agora parece que crianças brincam nele freqüentemente. Cães, uma bola, um daqueles triciclos. Crianças em um quintal são sonoras, alegres e espantam os fantasmas de agouros passados. Fantasmas que ainda rondam a casa toda vez que ouso passar naquela calçada.


Eu e meus irmãos já sentimos medo antes, mas nada que se comparasse ao que passamos naquele 10 de março de 1979. Acordamos e enquanto nos preparávamos para mais um dia minha mãe dispara, aparentemente do nada: “arrumem suas coisas. Nós vamos embora”. Não questionamos, apenas obedecemos; o que aparentemente foi rápido já tinha sido planejado há algumas semanas. Quando saímos para a rua, um táxi nos esperava com o motor ligado. Eu e meus três irmãos nos acomodamos no banco de trás do Corcel amarelo e supusemos que estivéssemos fugindo de meu pai, o que foi confirmado quando minha mãe pediu que nos mantivéssemos com a cabeça baixa enquanto passávamos por ruas próximas.

O relacionamento de meus pais era, para ser educado, bastante tumultuado. O alcoolismo de meu pai e a insatisfação de minha mãe, traduzida, soube depois, nos casos extraconjugais que ela manteve, deixavam o ambiente familiar tenso. A gota d’água foi a briga em uma festa de aniversário que culminou numa cena digna da era da pedra lascada: o pai arrastando a mãe pelos cabelos no meio da noite. Depois desse fato ela começou a arquitetar a fuga.

E o táxi era apenas a primeira parte. Ele nos levou até os portões do clube de campo da associação 9 de Julho, onde outro carro nos aguardava. Uma mulher, com um perfume adocicado e pronunciado pediu para que nos sentássemos, como sempre, no banco de trás. Estava assustado; só vi o rosto inexpressivo de meus irmãos e a poeira formada pelos pneus na estrada velha Campinas – Indaiatuba.

Poucos minutos depois o carro deixou a mim e minhas roupas num lugar chamado Cidade dos Menores de Campinas. Só eu e a mãe saímos. Ela foi em direção a um homem velho e corpulento dizer algumas palavras em voz baixa. Depois de longos minutos ela veio a mim e disse: “olha, Nei, você vai ficar aqui, tá? Se comporte direitinho, obedeça ao seu Agenor e não se preocupe. Logo eu venho te ver.”. Ela me deu um abraço tímido e me deixou perto daquele estranho. Moleque besta que era, não tive coragem de perguntar como me comportar direito diante daquele povo esquisito, com nomes e comportamentos alienígenas.





A garagem continua a mesma. Ela faz parte do terreno onde a casa se localiza e mantém a mesma tinta, talvez tenha as mesmas pichações. Quase consigo ouvir a proto-banda do filho da patroa de minha mãe tentando tocar “Sunday, bloody Sunday”, geralmente com resultados desastrosos. Os sábados à tarde tinham música de qualidade duvidosa e temperos bem dosados. As lembranças nem sempre têm sabor de fel.


Aquela segunda, 19 de abril de 1994, começou estranha. Meu tio, após a carraspana que dura uma semana (outro dia explico isso), resolveu voltar ao trabalho. Eu tinha uma entrevista de emprego, nada muito promissor mas era a primeira em meses. Súbito, o homem que morava com minha mãe aparece no portão de casa e diz que ela estava em Itu. Visivelmente alterado, ele queria que meu tio o acompanhasse. Como ele não conseguiu seu intento, saiu rápida e nervosamente. A princípio não demos bola; afinal, tínhamos nossos compromissos e não era a primeira vez que ele aparecia imerso em palavras sem nexo.

Foi à tarde que percebemos que algo não estava bem. Quando ligamos para a casa onde ela trabalhava – em um orelhão, não tínhamos telefone – o telefone tocava, tocava e ninguém atendia. Como se fizéssemos parte de um dantesco vaudeville, minha irmã Andréa apareceu e disse que o sujeito que morava com minha mãe passou rapidamente na casa dela e disse que minha mãe tinha viajado com a patroa dela para São Paulo. As estórias discrepantes nos deixaram em pânico. Rumamos a pé até a casa. Eram cerca de 16 horas.

A rua Padre Vicente Rizzo começa do lado direito da igreja matriz, olhando-a de frente. Eu, Andréa e meus sobrinhos descemos, primeiro com passos vigorosos mas ainda lentos. Quando vimos ao longe policiais correndo e uma pequena multidão se aglomerando, começamos a correr. Ouvimos um estampido quando estávamos quase no portão e vimos o sujeito que morava com minha mãe ser carregado por três policiais, ensangüentado. Fui contido por mais três policiais ao tomar ciência, mesmo sem ver, do que tinha acontecido.

Minha mãe estava estirada no chão da sala, sobre o tapete. Seu pescoço foi cortado de orelha a orelha por um facão e deixou seu sangue se esvair. Não vi a cena ao vivo, mas o jornal local exibiu a foto do local do crime em preto-e-branco. Lembro de mim espantando os transeuntes e curiosos como um cão raivoso, com os olhos ardendo de tanto chorar. Lembro-me do vazio e do ódio.

E toda vez que ouso ficar parcos dois minutos na frente da casa, a memória exibe um filme de três horas, mais extras. Não é algo que eu faça com freqüência; essas lembranças são caudalosas demais até mesmo para mim, que me acho forte. Dois minutos são suficientes. Mas minha mãe merece bem mais do que lágrimas e desconforto. Merece uma música; a música que sempre toca em meu cérebro nesses momentos.

“Ressucita-me, para que a partir de hoje (...) a família se transforme.”
“E o pai, seja pelo menos o Universo. E a mãe, seja no mínimo, a Terra. A Terra.”

A Terra.

31.3.07

Tardes vazias

Do alto da cidade, na vila Avaí, próximo da sede da rádio Jornal AM, a cidade que se via em meados da década de 1980 era a dos telhados de barro, das copas de árvores e dos raros edifícios, sendo o mais pronunciado o prédio do hotel Alvorada, branco e com letras azuis. Gostava de ir até lá. O caminho era muito tranqüilo, principalmente aos sábados e domingos. Ou eu percorria uma linha reta pela rua 15 de Novembro, caminho preferido no final de ano, graças a algumas mangueiras que ficavam apinhadas de manga-espada, numa casa perto da avenida Presidente Kennedy ou imitava uma barata tonta, ziguezagueando entre o centro e os bairros Cidade Nova, Vila Suíça, Vila Furlan e Jardim América.

Uma ladeira, nada muito íngreme, rodeada de terrenos vagos, árvores e um quase silêncio me levava até o topo. No início da primavera a Vila Suíça era, e ainda é, brindada com o balé parabólico das andorinhas, felizes por encontrarem o sol. Nas casas, famílias e seus sons e odores; “crianças (...) sob o olhar carinhoso dos pais”, como diria Léo Jaime numa obscura canção de seu LP (não riam, crianças!) “Vida Difícil”. E no topo, a visão da cidade.

No meu período autista não havia melhor lugar para ficar. A cidade aos meus pés, o pasto e algumas chácaras atrás de mim. Quando eu me abastecia na biblioteca, um dos meus locais prediletos para ler era à sombra de uma cerca onde o maracujá florescia, perto de uma árvore cujo nome não sei até hoje (taí, acho que vou ler algo sobre botânica). Li várias obras de Agatha Christie e J. M. Simmel sentindo o cheiro de maracujá e pinheiros.

Quando a tarde anoitecia, o sol teimava em se pôr de maneira cinematográfica, deixando os pastos vermelhos e azuis. Bovinos e o verde do pasto, imóveis, pintavam um cartão-postal diário. O burburinho dos pardais e o vôo simétrico das garças davam o tom bucólico de minha contemplação. Quase sentia pena em deixar meu posto e voltar para casa.

Estive lá há dois domingos. Tudo o que vi foram casas, sobrados, prédios de maior ou menor altura. As buzinas eram sons recorrentes, assim como o pancadão dos alto-falantes. Tropecei em garrafas pet, copos descartáveis, cacos de litros de vinho e vodca, e as conseqüências nas pessoas que bebiam o conteúdo do que foi descartado.

O sol só mostrava o traço carmim enquanto se punha. E me pus de volta ao meu caminho, sem andorinhas.

O futuro do giz

No dia 12 de fevereiro de 2007, um novo recomeço. Após anos protelando, ora por desânimo, ora por incompatibilidade de horário, ora por incompetência tanto minha quanto de outrem, estou de volta a uma sala de aula para completar meu ensino médio. É um supletivo em escola estadual, o que quer dizer aulas em ritmo acelerado e com conteúdo reduzido ao mínimo necessário, quase medíocre. Não que os professores o sejam, mas o conteúdo pedagógico precisa ser adaptado a quem se dispõe a colocar os neurônios empoeirados em funcionamento.

Entre professores recém-saídos da universidade e veteranos calejados por anos de quadro-negro – deve haver traços de giz no DNA deles – é possível obter conhecimento, basta saber o que e como perguntar, sem medo de parecer “bobo”. Tome o professor de Português, Ronaldo. Ele pulsa de entusiasmo e adora o que ensina. Ou a professora Tatiane de História, que mostra que sabe o que leciona. Mesmo os professores mais tarimbados, como Pedrinho de Biologia, gostam de ouvir perguntas e respondê-las claramente.

Quando me propus a estudar, tinha em mente alguns preceitos: é um supletivo rápido, num horário onde nosso corpo demonstra cansaço, porém com colegas de classe adultos e com o propósito de completar o ensino médio. A rapidez e o cansaço se confirmaram e é possível adaptar o cérebro às informações e à fadiga. O que me surpreendeu negativamente foi a atitude dos alunos.

São homens e mulheres, a maioria com mais de 25 anos, quando não com mais de 30. Têm filhos, netos, adoram dizer que são vacinados e pagam impostos. Mesmo assim, não raro interpelam o professor quando ele “escreve demais na lousa”, gritam como infantes mimados, riem alto como se ouvissem piadas, conversam sobre celulares e baladas, mostram sua verve com frases de efeito recheadas com palavras de baixo calão e preconceitos, perguntam “ ‘fessor, é pra pular linha?”, “é com lápis ou com caneta?”.

Há, ainda bem, quem se preocupe em aprender. Mas se os diálogos esparsos dão uma pista sobre o motivo pelo qual marmanjos freqüentam uma sala de aula, ela é: eles querem apenas o canudo, um certificado de presença para mostrar ao RH da empresa em que trabalham ou à agência de emprego. Como na “era ISO” vale o que está impresso em papel timbrado, o conteúdo é o que menos importa.

Desde que o governo Mário Covas instituiu a chamada progressão continuada, o ensino no estado de São Paulo tornou-se risível. Basta aos alunos do ensino fundamental ter uma freqüência de 75% às aulas para que se considerem aprovados. No ensino médio, instituíram as “eliminações de matéria”; não é preciso mais do que 60% de acertos para que alguém seja considerado apto. O que mais me deixou estupefato, contudo, foram os chamados conceitos. As notas tradicionais (de A a E ou de 0 a 10) foram substituídas por avaliações conceituais conhecidas por siglas (PS – plenamente satisfatório, S – satisfatório e NS – não satisfatório). Mais uma vez o aprendizado foi preterido em favor da mediocridade dos certificados. Não há estímulo para aprender, apenas para passar de ano. Como se os anos não passassem!

Claro que estudarei até o final dos termos, com todo o afinco possível. Sou CDF assumido, adoro estar em uma sala de aula e ouvir os monólogos professorais. Só está sendo um pouco mais frustrante do que imaginei. Não queria sair da escola estadual Geraldo Enéas de Campos apenas com um certificado.

17.3.07

Parte três - É com esse que eu vou

“Tudo passa, tudo passará...”. Quarta, 21 de fevereiro, começo da tarde. A freeway, definida como “monótona” pelo meu anfitrião, nos guia na volta a Porto Alegre. O campo eólico de Osório continua hipnótico e todos nós observamos as hélices brancas. Pouco mais de hora e meia e estávamos no centro da cidade, depositando as malas no apartamento do Janio, espaçoso, convidativo e muito agradável. Não sei bem porquê, mas a Maria-Lavadeira atacou novamente e fui ao estranho tanque instalado na área de serviço. Era um retângulo; o apoio para as roupas é perpendicular ao chão. Enquanto lavava meus panos, me lembrei de Fernando, o amigo virtual que fiz e prometi conhecer pessoalmente. A ansiedade veio e se manteve.

Seria o segundo amigo à distância que eu conheceria ao vivo, e tão inteligente e espirituoso quanto Janio. Pior: Fernando é escritor e artista plástico; o tipo de pessoa que me assusta. O que posso dizer e pensar perto de um homem culto? Resolvi esfregar meu jeans com mais vigor e não sofrer por antecipação.

Mais tarde, durante o almoço, marcamos o ponto de encontro por telefone: a entrada do shopping da Rua da Praia. Mascava meu bife cuidadosamente enquanto Janio me tranqüilizava.É engraçado como eu me sinto bem perto desse menino. Podíamos ficar em silêncio, falar qualquer coisa e nunca conseguiria me sentir inadequado perto dele. Era como ficar perto de um irmão. Definitivamente o conheci no momento certo de minha vida; não sei se aproveitaria esse convívio virtual e real aos meus 25 anos, o período mais negro de minha biografia (sombrio o escambau, esse lance “politicamente correto” é uma tremenda babaquice).

Banho, roupas limpas e calor. Deus, como Porto Alegre é quente! Com desejos de boa sorte caminho até a rua da Praia, também conhecida como rua dos Andradas (não me pergunte, sou apenas um turista). Não deixo de ficar impressionado comigo mesmo: quatro anos se passaram e ainda me lembro como chegar até lá. E lá chegando espero. Curta espera; em menos de quinze minutos Fernando vem em minha direção, braços abertos e sorriso fácil. Os medos imbecis foram expulsos a porrada.

Fernando é 115% gaúcho. Além de nascido na capital, usa e abusa das famosas interjeições “bah” e “tchê” com a naturalidade com a qual digo “trem” e “cremdeuspai”. Seus 57 anos foram bem aproveitados e vividos, pois sua retórica é clara e seus olhos brilham ao falar. Enquanto tirávamos o pó da distância – afinal, era a primeira vez que conversaríamos ao vivo, sem a distância que o computador nos impunha – num papo superficial, já foi decidido: já que estávamos no centro, que fôssemos aos pontos turísticos do centro.

O principal empecilho era a semana em que estávamos. Durante o carnaval não há espaço para a chamada “vida cultural”, se a cultura não vier acompanhada de teleco-teco, balacobaco e ziriguidum. Ou seja, nada de Santander Cultural. Mas o MARGS (Museu de Arte do Rio Grande do Sul) não acompanha o rufar dos tamborins e exibia uma interessante mostra de fotos em preto-e-branco do francês Pierre Verger. Ele captou instantes brasileiros muito expressivos em meados do século passado: festas, pescas e rituais afro-brasileiros em diversos estados. As exposições permanentes mostravam esculturas, instalações e pinturas. O ponto negativo foi a ausência do ar condicionado, que, segundo uma das funcionárias, estava em manutenção.

Próxima parada: a igreja matriz. Linda, para ficar no comentário óbvio. Os vitrais, a abóbada, a nave. O cheiro de madeira é o cheiro do tempo. Fernando me conta uma passagem intransigente de um cardeal, que não cabe a mim dizer aqui, pelo menos por enquanto, e ilustra o porquê de certos pensamentos que ele tem. Nos confessionários, a lembrança de minha primeira comunhão e do padre Guedes.

Praças e estátuas. Ruas sinuosas e aclives (Fernando as chama de lombas). O Guaíba ao fundo, ao lado e em frente. Enquanto víamos o banco onde Mário Quintana e Carlos Drummond de Andrade discutiam a eternidade em bronze, Fernando decidiu que me hospedaria. Dois segundos de hesitação. Vasculhei os bolsos, as chaves do apartamento do Janio soaram. Aceitei.

O apartamento dele fica na zona sul (puxa, ninguém mora mais em casa térrea?). A acolhida foi calorosa e não demorei a me sentir bem. O quarto onde eu fiquei tinha ao longe a paisagem urbana que um dia teve o Guaíba no horizonte. Na janela da sala, uma sibipiruna (é uma sibipiruna mesmo, Fernando!) recebia pássaros e dava sombra. Nas paredes, os quadros a óleo, guache e outras técnicas feitas por ele, inclusive arte feita na planilha de texto Word. Na sala, livros, muitos livros... e um dicionário Aurélio! Pude confessar que a visita ao MARGS foi a primeira vez que visitei um museu. Estranho, já que o MASP fica a 100 km de minha cidade. Talvez eu seja um paulista sem convicção.

A rotina dos quatro dias restantes de minha semana foi quente (nas palavras de Fernando, “bah, mas que calor, tchê!”) e repleta de passeios a bairros e shoppings. Almoçamos sós ou acompanhados dos amigos dele, absolutamente simpáticos. Caminhamos pelo calçadão que margeia o estuário Guaíba, que tem o descalabro de ser mais tranqüilo do que o do parque ecológico de Indaiatuba. Visitamos a Livraria Cultura, onde quase me esqueço que sou um sujeito honesto e tive ganas de sair correndo com um Aurélio e as edições encadernadas de Sandman debaixo do braço. Dividimos o vício por café em cafeterias muito aconchegantes. Tomamos chuva. Falamos sobre tudo. Tudo.

Deixei uma de minhas “primeiras vezes” para Porto Alegre de propósito. Fomos eu e meu novo anfitrião a uma churrascaria degustar um espeto corrido – o rodízio para os cidadãos acima do Trópico de Capricórnio – e não me arrependi por ter deixado para fazer isso quase aos quarenta anos. Numa palavra: sen-sa-cio-nal! O carnívoro em mim ficou plenamente satisfeito. Só restou uma dúvida: como sou uma nulidade no que se refere a conhecimento de corte de carne – se você me disser que determinado corte é picanha, alcatra ou coxão mole, acredito – fiquei sem saber que corte de carne os gaúchos chamam de vazio...

Mas isso é uma digressão. Falava da rotina. E mais uma vez me senti dentro de um comercial de margarina. No café, retirar a fruteira e o cinzeiro em forma de camelo da mesa – Fernando deixou de fumar há cinco anos, muito bem! - e colocar a toalha; aquecer o leite, dispor pão, margarina, requeijão, café solúvel e talheres sobre a toalha; conversar sobre arte, quadrinhos, vida, morte, religião, Jack Kerouac, Manoel Carlos e o que desse na telha enquanto comíamos. No fim, retirar a mesa, enquanto a hierarquia da limpeza é determinada: ele lavava, eu enxugava; ele guardava os alimentos, eu, a louça e os talheres. E conversávamos. Sobre filhos e netos, pais e avós, amores e decepções, orgulho e esperança. Tudo. Tudo.

Um pequeno ato escancarou a alma de meu anfitrião e mais novo querido amigo. Estávamos durante a letargia após o almoço, quietos, ouvindo a Guaíba FM quando um piano introdutório o deixou em estado de alerta. Quando Elis Regina começou a cantar, ele simplesmente e apaixonadamente acompanhou nota por nota o curso da canção: “É com esse que eu vou sambar até cair no chão,/ é com esse que eu vou desabafar na multidão...”. Como não ser amigo de um homem que é fã de Elis e de Cássia Eller, um dos objetos de nossas conversas?

“Tudo passa, tudo passará...”. O sábado, dia 24, chegou; o dia de comprar as passagens de volta. Hora das despedidas; no apartamento do Janio, dois presentes: um livro e um abraço. Como um bocó, desando a chorar de saudade. Foi um choro tão genuíno que me assustou. Por conta disso pedi um favor para o Fernando: uma hora antes de minha partida, durante os preparativos, que ele tocasse o CD “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”. Foi salvador: entre “Eu sou terrível” e “Quando” eliminei as lágrimas, entrei no carro e fomos para a rodoviária.

No caminho, reiteramos a amizade com palavras corretas. Poucos silêncios, e a noite seguia calma. Porto Alegre na penumbra também é atraente, entrecortada pelos faróis dos carros e silhuetas de prédios e estátuas. Perto do estádio Beira-Rio, não pude deixar de notar como a luz deixa a construção linda.

Despedidas são tristes e promissoras ao mesmo tempo. Deixei para trás as lembranças de uma semana inigualável, um abraço paternal e o compromisso da volta. O aceno de mãos na janela e o sorriso que trocamos quase anularam o efeito Roberto Carlos. Quase. O motor do ônibus e a tagarelice dos passageiros dos bancos da frente fizeram a Rádio Neural selecionar “Encontros e despedidas” na voz de Maria Rita. “Coisa que gosto é poder partir sem ter planos, / melhor ainda é poder voltar quando quero...”.

Chuva na pista em Santa Catarina. Os restos do que foi um Vectra no acostamento. Araucárias. Hortênsias. A duplicação da pista. Não me permiti ver o tempo nem os estados passarem. Só senti que estava em São Paulo quando na última parada ouvi a Educadora FM de Campinas nos alto-falantes.

Terminal Tietê. Na ida tinha testemunhado o caos humano causado pelo feriado. Na volta, o caos causado pela chuva. Tudo aquilo que eu via no conforto de meu sofá em imagens aéreas pude testemunhar ao vivo, ainda que a uma distância segura: os pontos de alagamento, o trânsito parado. Como eu disse, a semana das “primeiras vezes”.

Dei às nuvens o prazo de hora e meia. Tempo suficiente para namorar revistas (comprá-las, nunca mais), comer um saudabilíssimo Jesus-me-chama chique e tomar um capuccino. Quando tudo aparentemente se acalmou, finalmente pedi: “uma para Indaiatuba, janela, por favor”.

Já era noite quando finalmente dei as caras em casa. Enquanto desfazia a mochila e me preparava para mais um dia no posto de saúde, tive uma epifania. Ao me ver de volta à “minha” rotina indaiatubana, descobri enfim que sentimento aparentemente inexplicável era aquele que me assolou em Tramandaí e em Porto Alegre com meus amigos. Aquela alegria por algo, aquele calor humano, aquele chorar de bobo alegre.

Pela primeira vez me senti fazendo parte de uma família.

Parte dois - Um vento bom

Foi a semana das “primeiras vezes”. Na noite de domingo, 18 de fevereiro, estava dentro do carro do Álvaro, ouvindo o som dos pneus sob as pedras – Janio disse que eram fragmentos de basalto – e olhando freneticamente as casas de madeira. Numa delas o portão se abre e entramos. É uma viagem pela história; 50 anos, firme e saudosa dos filhos que brincaram, dos cafés da manhã tardios e dos preparativos para a praia.

A casa fica na cidade de Imbé-RS, que já fez parte de Tramandaí antes da emancipação. Na entrada da cidade há uma imagem estilizada de um boto, que, segundo Janio me disse, guiam os pescadores aos cardumes de sardinha. Desenhei uma imagem mental pífia, nocauteada pela visão de homens com água até a cintura com varas, tarrafas e um instrumento estranho nas mãos pescando no rio Tramandaí. Mas voltemos a casa.

Rapidamente fui acomodado em um quarto. A mochila foi depositada no chão e minha voz nos ouvidos dos meus dois anfitriões. É agradável conversar com pessoas inteligentes e bem humoradas e isso fez com que o cansaço da viagem fosse simplesmente esquecido. Fui convidado a fazer uma pequena caminhada por Tramandaí na noite quente, porém agradável. Atravessamos a ponte sobre o rio, ainda com pescadores. Pela arquitetura do entorno da ponte, tudo foi pensado para a acomodação dos pescadores; passagens ao lado da ponte, mirantes na beira do rio. As curvas sinuosas das redes jogadas com precisão pelos pescadores dançam até caírem em harmonia no espelho d’água.

No que me pareceu a principal avenida de Tramandaí, a multidão fervia. Fantasias, música alta e animação. O tal carnaval. Desviando de transeuntes e de jatos de espuma comprimida de foliões muito empolgados, observávamos, eu e Janio, todo aquele frêmito com olhos quase antropológicos. Ele conseguia diferenciar os sotaques gaúcho e catarinense com uma facilidade que só o hábito explica, além de iluminar alguns aspectos obscuros aos olhos de um paulista caipira dos “usos e costumes” daquele lugar.

Na volta, alta madrugada, um boa-noite e os preparativos para desmaiar. Me dirijo ao quarto que por três dias será meu. Pela primeira vez tive um quarto “inviolável”, com uma porta que o separa das áreas comuns. Meus quartos ou eram comunitários (já dormi com irmãos, tios, avós, primos e primas... mas cada um em sua cama, catre ou colchonete, seres maldosos!) ou era parte do caminho entre cômodos, como hoje. Quando fechei a porta, respirei fundo essa sensação de privacidade inédita. E dormi um de meus sonos mais profundos e revigorantes.

Ao abrir os olhos, não me senti estranho. Eu, bicho do mato, antes tão envergonhado em ficar perto de qualquer pessoa, estava à vontade naquela madrugada. Madrugada, sim; acordar às 6:45 em pleno gozo de minha folga é acordar com as galinhas, embora não houvesse nenhum galináceo por perto. Meus anfitriões dormiam o sono dos justos e caminhei calmamente pela casa, observando os detalhes que fazem de uma edificação um lar, ainda que provisório. A luminária colorida, as janelas que se abriam graças à habilidade do dono – pequenos macetes comuns. Ou você vai mentir para mim, dizendo que não dá três tapinhas para destravar algo ou coisa parecida em sua casa? – e o ceder do piso de madeira perto de uma mesinha; me sentia como Godzilla tremendo Tóquio a cada passada. Na cozinha, lembranças de uma época distante em reproduções de cartazes de cinema e propagandas. De repente baixa em mim a Maria-Lavadeira e decido ir ao tanque – imaginando que haja um tanque no quintal.

Flores vermelhas e um céu meio azul, meio cinza me recepcionam. O ar está leve, o silêncio é acolhedor. Minhas roupas sujas me esperam. Quando o sabão e a água formam a espuma, minha garganta dá voz à minha Rádio Neural. Me senti tão à vontade que me esqueci onde estava. Sorte que meus anfitriões são muito pacientes e amigos.

Por falar neles, eles sim estavam com o espírito da folga: acordaram depois das 9, muito relaxados e iniciaram a liturgia da manhã: aquecer o leite, arrumar a mesa com um jogo americano amarelo, xícaras, facas e colheres, dispor os acepipes matinais. Aqueles movimentos me fascinaram; pela primeira vez eu fazia parte de um ritual “comercial de margarina”.

Como se não bastasse, experimentei (e gostei muito!) uma iguaria cuja fama a precedia, porém não existe acima do Trópico de Capricórnio: a cuca. Estava aqui tentando descrevê-la ao meu paladar paulista, fazendo alguma analogia e o melhor que consegui fazer é comparar a massa a um pão-de-ló mais pra pão do que pra ló (não me pergunte o que isso significa, por favor), coberta com uma... farofa de açúcar, ou algo assim e recheada com delícias calóricas. Abacaxi, coco e mu-mu. Aí você, que não é gaúcho, me pergunta: o que cazzo é mu-mu? Pois essa definição de doce de leite sofre da mesma contaminação que nos faz chamar lâmina de barbear de Gillette e esponja de lã de aço de Bom Bril, entendeu? Achei uma graça.

O tempo não queria colaborar com meu primeiro encontro com o mar, mas meus amigos são gaúchos e não desistem nunca. Após o café, lá fomos nós. Primeiro comprar algo decente para usar na orla, claro. Não que eu fosse usar sunga. Eu e essa peça do vestuário sofremos de incompatibilidade estética. Mas enfim...

O mar. A primeira vez veio cinza, com marolas contínuas e inquietas. O horizonte líquido era infinito, não era possível que nosso planeta tivesse o nome inadequado de Terra. O som lambe os ouvidos e acalma. Quando vi a água deslizar sobre a areia fina, a Rádio Neural me lembrou de uma canção interpretada por Ney Matogrosso: “o mar passa saborosamente a língua na areia...”. O mar é tudo o que os poetas e cronistas disseram; aliado a isso, a companhia de meu querido amigo dividindo o som das ondinhas e de nossas vozes. Chuva? Tempo “feio”? Momentos como esse transcendem picuinhas climáticas.

Andamos até onde o rio Tramandaí deságua no oceano Atlântico. A “última parte” do rio é rasa, pescadores ficam dentro dele com água até a cintura, no máximo. Um desfile de redes sendo abertas e senhores jogando uma estranha rede em formato cônico amarrada em um grosso bambu. Abordo um deles, que me explica que está “brincando de coca”. Essa tal coca é jogada inúmeras vezes e captura sardinhas (foi o único peixe que vi sendo pescado) numa quantidade pequena, o que justifica o título de brincadeira dado àquele formato de pescaria.

Pena que a chuva não nos permitiu ser mais livres. Porém minha felicidade estava a poucos palmos de distância. Numa rede, para ser mais exato. Nunca tinha me deitado em uma, por um medo besta de cair. Não me sentia confortável deixando meus pés no ar, sem que me apóiem. O dono da casa me ensinou a deitar em uma e na manhã do segundo dia em Tramandaí (tá bom, seus chatos, Imbé!) pus em prática as lições. Sentar, se soltar, deitar. O frio na barriga foi diretamente proporcional ao prazer de balançar sobre o piso. Tudo embalado por uma música do Leoni que conheci graças ao Inagaki, “Melhor pra mim”. Maldita Rádio Neural! Mais uma pra lista de músicas que me fizeram chorar!

Nos três dias de minha estada, senti algo que não consegui verbalizar ou exprimir. Na caminhada que fizemos, no descascar e fritar das cebolas para o molho do macarrão (Janio é um baita cozinheiro!), quando almoçamos ao som da “Primavera” das Quatro Estações de Vivaldi, quando assistimos “Durval Discos”, quando pacientemente meus anfitriões me ensinaram a jogar lambe-lambe, ao falarmos bobagens necessárias ao nosso bem estar, nas louças lavadas e secas, nas confissões. Eu, que gosto de precisar com retórica mais ou menos apurada tudo o que sinto, mesmo impreciso e superficial, não conseguia falar que espécie de felicidade era aquela que estava sentindo. Achei que fosse o mar e seu feitiço. Ou a morte da saudade que sentia de meus amigos.

Era algo mais. Algo novo. Mas eu estava feliz demais para analisar.

(Um adendo: quase chamo essa segunda parte de “Eu vou fazer um leilão”, graças ao ohrwurm que infectou Janio.)