Gostaria de saber o que se passa na cabeça de um spammer. O que faz com que ele, ou eles, ou a corporação "Spam Networks", escolha uma caixa de comentários específica para inundar com seus dejetos.
Existe um texto meu chamado "Meu mundo e nada mais", escrito há decênios. Era só uma postagem sobre o fim de um ano e as habituais retrospectivas que fazemos quando um ano se finda e outro se inicia. Eis que, por mistérios insondáveis e esdrúxulos, essa postagem recebe pelo menos 10 spams semanais na caixa de comentários. Ao abrir meu e-mail acabo me deparando com um anônimo postando cocô.
Olha. Meu blog é pessoal. Nem monetizado ele é. Não é lido por celebridades, não muda a vida de ninguém e fica abandonado por tempo demais. Senhor Spam, será que é pedir muito para que você ME ERRE? Obrigado.
11.12.11
2.10.11
Gula
Em
uma tigela, coloque cerca de 300 gramas de farinha de trigo.
Acrescente uma pitada de sal e coloque água na mistura, batendo
vigorosamente até que a farinha salgada transforme-se em uma pasta
com consistência entre a massa de bolo e a panqueca. Reserve. Em uma
frigideira, coloque óleo de soja ou qualquer tipo de gordura
disponível – os fanáticos por comida saudável vão sofrer uma
apoplexia quando ler, mas minha casa tinha um depósito quase
industrial de gordura de torresmo, cortesia de minha vó e depois de
meu tio – e deixe aquecer. Quando a gordura estiver quente, pegue
uma colher, retire uma porção da massa anteriormente batida e
deposite sobre o óleo. Repita a operação até que toda a massa
esteja frita. O tempo de fritura vai depender do seu gosto; se quiser
os bolinhos crocantes, como os meus preferidos, uns cinco minutos por
batelada. Rápido, prático, calórico, nada saudável e a salvação
da lavoura em tempos bicudos.
Geralmente
eu não dava trabalho nenhum a ninguém; eu mesmo preparava meu café
e meus bolinhos, em uma época em que eu ficava constantemente
sozinho em casa. Infelizmente, meu pai, meu tio e meus irmãos
descobriram as delícias de produzir picuinhas em voz alta e com som
em alto volume, minando meus espaços calmos e os reduzindo às horas
que eles não estavam. Para que estes poucos instantes não fossem
embora durante a fritura dos bolinhos, tive a ideia de comprar
algumas frutas, já que me sobravam alguns cruzeiros (depois cruzados
e cruzados novos) após as obrigações. Numa segunda-feira após o
expediente, fui ao mercado e comprei maçãs, laranjas e bananas,
numa quantidade grande o suficiente para que eu pudesse ler meus
livros beliscando algo por pelo menos quatro dias.
No
dia seguinte, chego em casa, tomo meu banho e pego meu livro (“O
Caso dos Dez Negrinhos”, Agatha Christie, me lembro bem). Vou à
geladeira para pegar uma maçã e... só tem uma! Vou à bacia que
servia de fruteira e as bananas e laranjas tinham acabado. Puto, mas
ainda civilizado, pergunto candidamente: “já acabaram as frutas?”.
“É, o pessoal comeu”, respondeu meu tio. Não consegui terminar
a leitura, tamanha a raiva.
Sábado.
Meu tio e meu pai perguntam se eu ainda tinha dinheiro para comprar
“mistura”. Disse que não e avisei que iria dar uma volta. Como
sempre, deram de ombros – sempre tive a impressão que eles
continuariam a dar de ombros mesmo se eu dissesse “vou ao centro
ficar pelado e esfaquear todos os vira-latas que encontrar” - e fui
para Indaiatuba. Mais especificamente, para o maior supermercado da
cidade naquela época.
A
caminhada não durou mais do que vinte minutos. Ao entrar no
supermercado, peguei uma cestinha, inalei o caldo indistinto formado
pelo aroma vindo das seções de hortifruti, açougue, higiene e
limpeza e padaria e andei como se pisando na borda do precipício.
Calma e calculadamente. As gôndolas desfraldavam os produtos numa
ordem simétrica, marca com marca, pacotes retangulares, quadrados,
circulares. Foi a primeira e única vez em que entrei em um
estabelecimento comercial sem saber o que eu queria previamente. A
compra deve ter durado inacreditáveis 45 minutos.
Saindo
com a sacola plástica na mão, visualizei meu trajeto mentalmente e
decidi onde pararia: à sombra de uma pata-de-vaca perto do
Indaiatuba Clube. Um lugar ermo, onde, ao contrário de hoje, viva
alma ousava passar (ok, é um exagero, mas digamos que a densidade
populacional de Indaiatuba não era tão grande assim). Sentei meu
traseiro gordo em um paralelepípedo estrategicamente colocado
embaixo da árvore e comecei a destrinchar o conteúdo da sacola.
Primeiro,
o iogurte. Seis bandejas, quatro delas sabor morango. Foi como
desnudar a pessoa amada: o invólucro de cada potinho foi
meticulosamente retirado e eu sorvi os seis com gana. Literalmente,
lambi os beiços. Terminei e coloquei os seis potes empilhados ao meu
lado, no chão. Depois, mais iogurte, desta vez líquido. Aquelas
garrafas de 1 litro. “Agite antes de beber”, ordenava o rótulo.
A embalagem parecia uma coqueteleira em minhas mãos felizes. Um
minuto depois, retiro calmamente a tampa e bebo. Como água.
Ininterruptamente. Tudo o que eu pude dizer no final foi “coco”.
Próximo
item: um pedaço de cerca de 350 gramas de queijo mussarela. Quase
dois centímetros de espessura, e um cheiro que eu jamais vou me
esquecer; não por evocar sabores, mas por ser o troféu de uma
conquista gastronômica. “ Esse eu não preciso dividir com
ninguém. E nem comer uma ou duas fatiazinhas”, pensei. Não houve
esforço ao mastigar e quando cada pedaço alojou-se em minha boca,
eu o chupava como bala, como que prolongando o sabor e a sensação.
O
salgadinho veio quase que imediatamente após. Cebolitos. Ele foi o
responsável pelo maior dilema dentro do supermercado: Cebolitos,
Baconzitos ou Stiksy? Nunca me arrependi desta decisão, e hoje o salgadinho
faz parte dos sabores de minha memória afetiva. Mas o melhor, ao
menos para mim, reservei para o final.
Quando
foi lançado, o bolinho Ana Maria era o que o povo aqui de casa
chamava de coisa de rico. Quando isso era dito eu meio que
automaticamente aceitava, como se nossa “pobreza” fosse motivo de
alguma espécie anacrônica de orgulho. O problema é que eu senti o
cheiro do bolinho. Baunilha. Tentei emular o sabor da baunilha nos
doces que eu comprava no bar ou até mesmo esquecer que o bolinho
existia. Afinal, eu nunca compraria e comeria aquele troço.
Na
sacola a meu lado, três pacotes com seis bolinhos Ana Maria. Todos
de chocolate com recheio de baunilha. Fui cruel comigo mesmo naquele
momento. Abri um pacote, enfiei o nariz e me intoxiquei com odor. A
saliva matou minha língua afogada. Peguei um bolinho e fiz o que
alguns homens fazem com charutos: cheirei toda a extensão da Ana
Maria antes de abocanhar.
Foi
a última vez em que comer foi quase uma experiência mística,
religiosa. Digo isso porque nunca mais chorei ao comer algo.
1.10.11
Avareza
Alguns
hábitos não nos deixam, mesmo quando não encontramos um motivo
lógico para que os mantenhamos. Quando vou bater perna ou cumprir
compromissos financeiros na parte central da cidade, faço como
muitos contemporâneos meus: anuncio com uma certa pompa “vou pra
Indaiatuba”, resquício de uma época em que a cidade era
informalmente dividida entre o “lado de lá” da linha férrea (o
Centro) e o “lado de cá” (a periferia). Enfim. Uma vez por mês,
lá vou eu pra Indaiatuba, boletos, contas de consumo e listas nas
mãos e paciência na alma.
Depois
das inevitáveis filas e das notas de real que rareiam na carteira, a
missão “cidadão pagador de impostos, taxas e afins” é cumprida
dentro do prazo. Há momentos em que a fome não nos acompanha com a
proximidade de uma sombra,mas no oitavo dia do mês de Agosto, a
manhã dando adeus, meu estômago anunciou que não poderia aguardar
o almoço em casa. Como só me alimento com arroz e feijão no
(des)conforto do lar, minha escolha foi a mais óbvia possível:
Pastelaria Kibe e Esfiha.
Para
quem não conhece a outrora pacata cidade de Indaiatuba, o
estabelecimento acima citado é famoso pelos preços não muito
escorchantes e lanches rápidos acima da média. Adoro o pão de
queijo, a coxinha, os folhados e as esfirras fechadas. Prático e
decidido quando o assunto é comida, já estava com o menu anotado
mentalmente quando entrei. Infelizmente, todas as mesas estavam
ocupadas e tive que optar em colocar os produtos em uma caixa que
eles fornecem no balcão self-service para degustar os petiscos na
praça em frente à Pastelaria. Escolher, colocar, pedir o suco,
pagar.
Visualizo
um banco sob a agradável sombra de uma sibipiruna; sento, deposito a
caixa ao meu lado, e ataco os salgados com precisão cirúrgica:
guardanapos de papel envolvendo a esfirra, abrir a boca e comer.
Nesse momento tudo o que desejo é a paz de minhas mastigadas em
silêncio. Só que sempre existem as pessoas que adoram ser um
empecilho consciente ao alento alheio.
À
minha esquerda, ocupando um banco mais a mureta que separa os
buxinhos do passeio público, cinco pessoas. Cinco seres humanos, que
adoram mostrar que não tomam banho há semanas e que dividem
garrafas pet de 600 mililitros preenchidas com aguardente, dividiam
sua atenção entre os goles de pinga e o achaque aos transeuntes,
vítimas de sobrinhos postiços que sempre querem um real (“ô,
tio, arruma uma moedinha aí!”). Um desses cinco seres humanos,
carregando uma caixa de engraxate, me reconheceu e veio célere em
minha direção. Meu pensamento foi invadido por duas palavras. “Ô,
merda...”.
O
sujeito era tristemente famoso pela notória cara-de-pau. Não
importava quantas vezes o Serviço Social o enviava à sua suposta
terra natal (Jundiaí, ele sempre dizia), lá estava o gajo de volta
às ruas, ora sentado em uma sarjeta pedindo esmolas com cara de cão
sem dono, ora simplesmente abordando as pessoas usando a velha tática
da vergonha alheia para conseguir o que queria. E justo num dos raros
dias em que me dou ao luxo de comprar algo além do estritamente
necessário ele resolve me tornar alvo de suas palavras.
“E
aí, gordão! Tá gostoso aqui né?”, disse o cabra, à guisa de
cumprimento. Grunhi algo ininteligível graças à minha boca cheia
de massa de esfirra. “Dá um real aí! O troco do lanchinho!”,
ele pediu com um tom arrogante. “Não sobrou troco”, respondo
seco. “Então me dá um pão de queijo, tô com fome. Não vai
negar comida prum irmão né?”.
Não
sei bem porquê, me lembrei quando eu e minha irmã voltávamos do
supermercado, há mais ou menos quatro anos, comendo o conteúdo de
uma caixa de Bis, quando passamos por quatro crianças brincando na
calçada. Um deles, um moleque loirinho, gritou “tio, dá um Bis”.
Sem pensar muito, atendi ao pedido. As outras crianças começaram a
pedir com uma certa insistência; aquilo de certa forma me divertiu e
fui distribuindo chocolate até que eu ri e joguei para cima o
restante da caixa na direção deles. Continuamos nosso trajeto ao
som de “obrigado, tio!”.
Contudo,
não era uma criança a me pedir um pão de queijo. Era um sujeito
que já me fez passar muita vergonha por diversas vezes. E quando eu
o ouvi pedindo com empáfia, como se o meu salgado fosse o direito
divino DELE, olhei bem no fundo dos olhos dele e disse “não”.
Ao
ouvir a negativa, ele começou a usar a velha tática de agir como
pobre-diabo faminto. “Nossa, vai negar comida mesmo? Cadê seu
coração?”. Continuei a olhar para ele e disse: “esse é meu
almoço. Fiz por merecer e vou comer tudo. Agora com licença”.
Peguei a caixa com os dois pães de queijo e o folhado de frango, me
levantei abruptamente e dei as costas pro sujeito. “Olha, gente, o
gordão tá me negando um salgadinho! Tomara que engasgue!”.
Abandonei
a sombra e me sentei em outro banco que ficava a pelo menos 100
metros longe daquele sujeito, sob o sol do meio dia. Com a mão
direita, levava o folhado à boca; com a mão direita, tapava meus
olhos como uma viseira, impedindo precariamente a incidência dos
raios solares sob meus olhos. O que deveria ter sido um momento de
degustação tornou-se um cocho onde engoli o restante dos salgados.
O suco ajudou a empurrar goela abaixo. E não engasguei. “Da
próxima vez”, pensei, “me sento nem que seja no chão da
pastelaria”.
24.9.11
Como a Geração Sexo, Drogas e Rock'n'Roll salvou Hollywood
Algumas
coisas precisam do julgamento implacável do tempo para sabermos se
terão importância para entendermos o mundo em que vivemos. O
zeitgeist é formado por um caldo cozido em um caldeirão disforme e
em fogo brando; o sabor pode ser doce, amargo, fugidio, penetrante...
e será sentido desta maneira de acordo com as deidades pessoais.
Publicado
em 1998 pelo escritor e jornalista Peter Biskind, Como a Geração
Sexo, Drogas e Rock'n'Roll Salvou Hollywood (Easy Riders, Raging
Bulls: How the sex, drugs and rock'n'roll generation saved
Hollywood), tinha tudo para ser apenas um livro de fofocas indecentes
e picantes sobre as starlets hollywoodianas que deram um gap no
cinema estadunidense entre o final dos anos 1960 e a década de 1970.
Felizmente, Biskind sabia exatamente o que tinha em mãos, além de ter talento para extrair de seus entrevistados as etéreas lembranças
de uma época tão chapada.
Preciso
confessar, contudo, que o que me atraiu para o livro a ponto de
comprá-lo foi saber que a tradução é de Ana Maria Bahiana. Há
tempos, quando ainda sofríamos com o escorbuto nas naus portuguesas,
lia de tempos em tempos uma revista chamada SomTrês, onde fui meio
que educado a ouvir mais coisas além das rádios AM. Entre um mar de
críticos inteligentes porém rancorosos, destacava-se para mim as
resenhas equilibradas e impecavelmente bem escritas de Ana Maria
Bahiana; foi uma de minhas primeiras “grifes pessoais”, ou seja,
pessoas que eu acompanharia onde quer que elas estivessem e fazendo o
que quer que fizessem.
Claro
que, falando de algo que me interessa muito, que é o cinema, comprar
o livro e posteriormente lê-lo era questão de achar a oferta certa.
Porém, o medo de que o livro fosse apenas um compêndio de carreiras
de cocaína e baganas de maconha me fez ter dúvidas; afinal, não
conhecia o senhor Biskind. E qual não foi a minha surpresa ao ver
que o cabra manja?
Peter
Biskind contou parte da história do cinema, ponto. Por isso seu
livro não tornou-se datado, inconsistente e parcial. Quer dizer, não
muito parcial; é inevitável que as opiniões do autor sobre os
filmes essenciais e o estado da indústria cinematográfica permeiam
os capítulos, mas isso é feito de maneira a não eclipsar o que
realmente importa: o impacto da chamada Nova Hollywood e seus
artífices no cinema combalido e enfraquecido, quase à deriva, da
Velha Hollywood. E a consequente derrocada desta “nova geração”
graças à inexperiência em lidar com o mais devastador pecado
capital: a vaidade.
Inteligentemente,
Biskind delimita a era dos pretensos auteurs estadunidenses entre
dois filmes, Sem Destino (Easy Rider, 1969) e Touro Indomável
(Raging Bull, 1980) e escancara todo o delírio dos personagens
principais na nada modesta empreitada de mudar o mundo do
entretenimento em busca da “arte”. Na verdade, o que pareceu, no
frigir dos ovos, foi que a chamada Velha Hollywood recuou quando não
sabia o que fazer com o som e a fúria dos anos rebeldes e
polarizados (Democratas/Republicanos, negros/brancos, guerra/paz,
careta/chapado – e isso é terrivelmente levado a sério pelos
estadunidenses e sua moral de caixa de leite) e ao ver o que os
representantes desta geração tinham a dizer e ensinar, voltaram com
mais subsídios intelectuais e cooptaram os que eram comercialmente
viáveis (Spielberg, Lucas, e por um tempo Friedkin, Coppola, Ashby)
ao esquema high-concept – tramas e sinopses que poderiam ser
resumidos em poucas linhas, vendidos em pacotes com astro, diretor e
faixa etária definidos – que fez a fortuna de produtores como
Jerry Bruckheimer e Joel Silver. Ou seja, a mesma Hollywood de sempre
com uma visão mais “moderna”, “comercial” e “vendável”.
Triste
foi ver a “contagem de corpos”, literal e figurativa. A quase
loucura de Francis Ford Coppola (nunca imaginei que Apocalypse Now
tivesse uma história tão conturbada assim!), a paranoia de Dennis
Hopper amplificada pelo álcool e drogas, as atitudes comercialmente
suicidas de Robert Altman e William Friedkin, a morte de Hal Ashby.
Foi a morte do diretor de Ensina-me a Viver (Harold and Maude, 1972)
que encerrou o livro. Mais do que um frio filme, foi o declínio de
um cineasta que determinou, pelo menos para Biskind, o verdadeiro fim
de uma era que, para o bem e para o mal, foi decisiva para a
indústria cinematográfica.
Como
a Geração Sexo, Drogas e Rock'n'Roll salvou Hollywood
Autor:
Peter Biskind
Tradução:
Ana Maria Bahiana
502
páginas
Editora
Intrínseca
18.9.11
O opositor
Conheci
Luis Fernando Verissimo na Veja. Opa, é melhor contextualizar a
frase acima, caso contrário algum incauto vai imaginar que eu e o
escritor nos encontramos nos corredores da redação da revista
semanal. De novo, do início.
Meados
da década de 1980. Algumas professoras me presenteavam com edições
antigas da revista Veja, quando o editor-chefe era o José Roberto
Guzzo (leio tudo em uma revista. Tudo. Até o expediente).Mais do que
o início da abertura política, fui fisgado pelas páginas iniciais,
onde lia-se em grandes letras o nome “Luis Fernando Verissimo”. A
primeira coisa que pensei foi “será que tem algum parentesco com o
Érico?”.
Depois
do primeiro parágrafo, isso não importava mais. Descobri o meu
segundo cronista preferido – o primeiro, mesmo depois de tanto
anos, ainda é Rubem Braga – e uma referência para pesquisas. Sim,
pois muito do que ele dizia era javanês aos meus olhos pouco
letrados. Não foram raras as vezes em que eu me debruçava em um
dicionário ou ia ao Barsa (crianças, sou pré-histórico; Wikipédia
e Google sequer faziam parte do vocabulário corrente) por conta de
uma palavra ou frase de uma crônica dele.
Também
foi graças a Verissimo filho que odiei com toda a hemoglobina da
minha corrente sanguínea durante uma década inteira o Jô Soares.
Quando o hoje apresentador de talk-show o substituiu, eu me referia
ao senhor Eugênio Soares usando um epíteto de três palavras: filho
da puta. Mas já passou.
Passei
a consumir Luis Fernando Verissimo na biblioteca, tanto nas
coletâneas literárias quanto nas edições do Estado de S. Paulo.
Enquanto Érico Verissmo era um sonho intelectual inatingível para
uma capiau (embora eu secretamente quisesse ser um escritor tão
intenso quanto ele), Luis Fernando parecia conversar comigo. O texto
dele não era arrogante, tipo “minha educação formal é maior que
a sua, chupa!”; se havia referências mais rebuscadas, elas faziam
parte da estrutura assim como as moléculas de hidrogênio fazem parte da fórmula
da água.
Após
anos, ou melhor, décadas sem comprar um livro ou mesmo ler um (shame
on me), estava eu no mês de Agosto numa fria e impessoal rodoviária
quando vi na vitrine de uma livraria o nome dele, seguido de um
título simples – O opositor – e um preço deveras convidativo.
Não pensei duas vezes e comprei. Como ainda estava no meio da
leitura de Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros, deixei para
degustar as palavras de Verissimo depois, sem nenhum empecilho.
O
que me chamou a atenção no início foi que esse livro faz parte
de um projeto chamado 5 Dedos de Prosa. Embora eu ache estranha essa
mania que algumas editoras tem em fazer com que um escritor aja como
um operário do vernáculo, “forçando-o” a criar uma história a
partir de alguma temática qualquer (foge um pouco ao meu
conceito de liberdade criativa, mas sei que os tempos são outros e
romantismo não paga as contas), foi muito feliz dar ao polegar, o
incensado dedo opositor que tanta diferença fez na evolução do
Homo sapiens, a verve e a imaginação de Verissimo.
Usando
o conceito das teorias conspiratórias tão em voga desde o século
XX, um pouco de história da Arte, fábulas brasileiras,
religiosidade e mitologia, o livro cria um universo crível dentro um
thriller de espionagem, onde a primeira coisa que se faz é a
desconstrução da alucinação psicotrópica: dá-se a ilusão
primeira de que o narrador sem nome está sob o efeito do chá
alucinógeno servido por uma das personagens mais estranhamente
incríveis criadas por ele, Serena, a “índia dinamarquesa”, pois
o relato contado a ele por um sujeito eternamente embriagado, grande
e estrangeiro, parece coisa de um filme do Paul Greengrass com um
toque de LSD.
A
maneira brilhante que Verissimo usou para usar o polegar na história
faz com que a todo momento você se veja curioso para pescar as
referências que ele usa, desde o versículo da segunda carta de
Paulo aos Tessalonicenses à presença das Três Fúrias da mitologia
romana, da epidemia étnica ao afresco de Fra Angelico. Tudo isso
embalado em um suspense que faz com que o leitor queira chegar logo
ao final, tarefa muito simples e prazerosa, pois é uma edição
curtinha, pra se ler em uma sentada.
O
opositor é uma crônica em forma de livro, onde os sabores dos sucos
tomados pelo narrador sem nome – caju, açaí, seriguela, buriti,
bacuri,patavá e sapiri – ilustram os atos em que a história se
divide, cada sabor sendo uma alegoria do desenrolar dos
acontecimentos. No final, resta apenas a água como simbolismo da
purificação e da verdade.
Todo
esse blablablá só pra dizer que adorei o livro... preciso ser mais
conciso da próxima vez.
O
opositor
Autor:
Luis Fernando Verissimo
Editora
Objetiva
140
páginas
11.9.11
Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros
O
mundo do entretenimento está numa encruzilhada. Já não há mais
espaço para arroubos criativos que não possam vir a gerar
dividendos, pois não há mais lugar para a inocência e o
romantismo, se é que em algum momento da história houve inocência
e romantismo. Mesmo os que pregam uma espécie de anarquia criativa
querem, em algum momento, ser reconhecidos pelas suas obras. Como a
indústria do divertimento audiovisual movimenta quantias de dinheiro
nada desprezíveis (basta lembrar os US$ 6 bilhões arrecadados pela
indústria dos videogames no primeiro trimestre de 2011 – isso
mesmo, TRIMESTRE), não há muito mais espaço na mesa dos executivos
de grandes corporações da mídia para meros arroubos criativos.
É
sob este prisma que o livro Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros
(Abraham Lincoln: Vampire Hunter) deve ser analisado. O autor, Seth
Grahame-Smith, não deve ser menosprezado por sua suposta tendência
canibalesca, ao prover um cozido ficcional-histórico. O que ele fez,
e com muita competência, foi produzir e apresentar um produto para
uso futuro no cinema, games e programas de TV. Usar a figura
emblemática do 16º. presidente estadunidense e fazer dele um
caçador de vampiros sem que sua biografia fosse sequer
desconstruída – pelo contrário, graças às óbvias lacunas que
todas a figuras históricas deixam graças a informações não
comprovadas ou documentos inconclusivos, há espaço de sobra para a
nobre arte de criação de teorias da conspiração, arte dominada
com mestria pelos estadunidenses – deu margem para que o livro,
imprecisões físicas e literárias à parte, cumprisse o papel de
apresentar ao público e aos investidores um pré-roteiro elaborado o
suficiente para não ofender a inteligência do leitor e para dar um
tratamento imagético inicial aos donos dos talões de cheque em
Hollywood.
Não
podemos esquecer que o próprio Grahame-Smith é um homem de cinema e
tevê, pois é coproprietário da Katzsmith Production e cada passo
que ele dá é previamente calculado para que possa ser transformado
em plots televisivos ou cinematográficos. Mas isso tira os possíveis
méritos do livro? Claro que não. O objetivo primordial da obra foi
alcançado: é divertimento que faz com que quem conheça a biografia
oficial de Lincoln busque as referências nominais usadas nas partes
onde os ficcionais vampiros aparecem, além de atiçar a curiosidade
de quem não tem muita intimidade com a história tanto de Abe quanto
da Guerra da Secessão. Malandramente, aproveita-se do hype
vampiresco que ainda inunda o imaginário das pessoas, graças a
obras como True Blood, The Vampire Diaries e (tá, tá certo...) a
saga Crepúsculo.
Marcelo
Hessel, do site Omelete, disse que um dos grandes problemas do livro
é a unidimensionalidade de Abe Lincoln, assepsiando sua
personalidade e o tornando uma espécie de versão em carne e osso do
Capitão América. Nós, brasileiros, não veríamos problema algum
em ver um personagem histórico gringo ser desconstruído para fins
“artísticos”; o grande problema é a grande idolatria que o nome
Abraham Lincoln causa nos EUA. Por mais que Seth Grahame-Smith queira
amealhar seus milhões de dólares usando a liberdade criativa
(podendo inclusive apelar para a primeira emenda da constituição
estadunidense), ele deve ter achado que já foi livre demais ao
incluir vampiros na trajetória de vida do presidente. Na versão
para o cinema provavelmente o senhor Lincoln será um pouco mais
ousado e com nuances mais cinzentas.
Sabia
exatamente o que me aguardava quando comprei o livro e ao terminar
imaginei o tratamento que o diretor Timur Bekmanbetov dará ao filme.
Bem diferente dos meus anos pueris, onde os livros que eu lia
formavam-se apenas em minha imaginação. Bem vindos à era nerd do
entretenimento mundial. Os super-heróis já não são mais a
fronteira final.
Abraham
Lincoln: Caçador de Vampiros
Autor
: Seth Grahame-Smith
Tradução:
Alexandre Barbosa de Souza
Editora
Intrínseca
333
páginas
Dois segundos de alegria
Não
é preciso escolher uma roupa definitiva; basta que ela seja
confortável o suficiente para ir até o estúdio, já que os
figurinos estão previamente escolhidos. “Esteja na produtora às 8
da manhã”, informou lacônico o telefonema. Sua agente era uma
pessoa prática e sem floreios.
Sua
mulher apronta sua bolsa e seus relatórios enquanto o observa
colocar uma camiseta amarela e um jeans. “Tem alguma previsão de
quando vai terminar?”, pergunta, já sabendo a resposta. “Não. A
agência conseguiu quatro filmagens; uma delas poderá ser em
locação. Então já viu”, diz calmamente o homem, olhando para a
pilha de papéis que condensam sua dissertação. Sociologia, um
sonho oposto aos desejos do pai, que o queria arquiteto. Ela solta um
beijo no ar e se despede; o escritório a espera. Ele verifica seu
próprio rosto, pega documentos, chaves e celular e sai em direção
à estação do metrô.
Quarenta
minutos. O estúdio de gravação fica em um prédio de linhas retas,
“herança da escola Bauhaus, provavelmente”, pensa num esgar de
sorriso. Sétimo andar. Oi, deixa eu ver as credenciais. Ok, camarim
3. Suas roupas são colocadas no armário 38 e lá ficarão por tempo
indeterminado. Primeiro figurino: camisa de um time de futebol falso,
bandeirola, copo. Cinco outros o acompanham na cena em um cenário
simples: sofá, plantas artificiais, quadros. Ele ficará à
esquerda, sentado. “Beleza? Quanto tempo”, cumprimenta um dos
atores, que se senta no meio do sofá. “Desde o filme das
fraldas...”. Rápidas falas, quando o diretor pede silêncio e
orienta o que deve ser feito.
“Ensaiando”.
Ele se levanta, grunhe algo ininteligível em êxtase, e seu rosto
passa a alegria de ver seu time fazendo um gol no time adversário.
Abraços trocados, felicidade. “Corta”. Voltando às marcas
iniciais. Pequenos ajustes de foco e algumas orientações sobre como
ser feliz vendo um marmanjo chutando uma bola. Impassível, ele olha
o vazio imaginando o tipo de sorriso que um apaixonado por futebol
dá. “Gravando”. Ele muda a expressão, abre a boca em um
“gooool” enquanto o olhar sorri por ele. “Corta”. Um gole de
água antes da segunda tomada. Grava. O rosto agora vai para trás
exprimindo quase um orgasmo. O abraço no parceiro de cena é mais
efusivo. Corta. Take 3. Take 4. E fim.
No
único lugar onde ele pode fumar em paz (não que os haja muitos
ultimamente), ele ainda se prepara para o próximo esquete. Uma das
atrizes o acompanha e entre uma tragada e outra diz que pediu ao seu
agente para tentar colocá-la na figuração de Malhação ou de
alguma novela da Record. “Cara, você tem noção do quanto é
difícil conseguir isso?”. “Tenho sim; quando eu consegui uma
pontinha naquela novela das seis foi quase uma guerra! Pior foram as
promessas... não, você vai conseguir outras coisas, até fazer
parte do elenco de apoio”. “E aí, conseguiu o quê?”. “ A
vaga no comercial de lasanha”. Pfff. “Pelo menos foi uma
série...”.
Próximo
figurino: terno,gravata, pasta de couro. “Pai de família,
provavelmente, e sem falas”. Na cena, ele entra sorridente na copa,
onde uma mulher e duas crianças dividem um pão com um novo
requeijão saborizado. “Merda, odeio requeijão”, pensa enquanto
procura mentalmente o sorriso adequado. Orientação da diretora.
Ensaio. O paletó é colocado displicentemente no encosto da cadeira,
e o sorriso é um tanto quanto confiante demais. Corta. Desta vez o
paletó é colocado com um pouco mais de zelo na borda e um sorriso
“bom dia”, aqueles que ele sempre admirou nos comerciais antigos
de margarina, brota. Um beijo cúmplice na estranha, um afago e uns
grunhidos amigáveis às crianças. Chegou a temida hora; comer o pão
com requeijão. Corta, repete. Corta, repete em outro ângulo. E
sempre com o olhar de quem adora. Corta. Mais uma. E outra. Outra.
Corta, ficou ótimo. O gosto do requeijão enfim pôde encontrar a
real cara de nojo dele. As crianças riram divertidas. “Deveria ter
gravado isso” diverte-se a diretora.
“Locação
na próxima!”, avisa o assistente. Como a próxima vai demorar um
pouco e o local é num parque próximo, ele decide comer algo leve.
Num quilão frequentado por motoristas de táxi, ele coloca em um
prato alguns legumes e um bife acebolado. Enquanto come calmamente,
observa os frequentadores, detendo seus olhos e ouvidos em um senhor,
com seus 50 e tantos anos, barba espessa e grisalha, gabando-se com
seus colegas de métier sobre sua recente conversão ao catolicismo.
“Fui crente durante toda minha vida, mas foi Santo Expedito quem me
mostrou o caminho!”. Ele sempre foi fascinado em estudar o gestual
de certos profissionais, já que alguns destes gestos poderia ser
usado em suas curtas atuações. “O que cê tá olhando, moleque?
Não curto viado não! Vá encontrar Jesus!”, disse o velho
motorista ao notar que ele o observava. Ato contínuo, ele desviou o
olhar e terminou a refeição com um sorriso sarcástico.
Mais
um cigarrinho antes da filmagem. Chiclete de menta para disfarçar o
bafo. Agora o traje era esportivo: short de corrida, camiseta branca,
tênis. “Um fumante fingindo ser da geração saúde, é mole?”,
diverte-se ele com sua companheira de cena. “Vocês vão correr
suavemente por pelo menos 30 metros, certo? Vocês gostam muito disso
a linguagem corporal vai dizer TUDO!”, vaticina o obeso diretor.
Ensaio.
Os dois correm lado a lado. Um sorriso cúmplice e um mexer de boca
simulando uma conversa. Corta. “Conversem algo de verdade. Digam
algo com sentido. Não irá ao ar mas dará verdade pra cena”. Tá
bom. Ele entreolha a companheira de cena, que já entende. Ação.
Ele: “Dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial...”.
Ela: “Cebola e picles num pão com gergelim”. Com a mesma
cumplicidade anterior. Corta. Repete. Ele: “I'm not aware of too
many things...”. Ela: “I know what I know if you know what I
mean”. Mais cúmplices ainda, e com um sorriso cada vez mais real.
Dez
tomadas e dez citações depois - “daqui a pouco a gente ia recitar
Tenessee Williams aqui”, ela disse – fim das filmagens. “Tem
mais alguma coisa?”, ele pergunta à sua agente. Ele suspira e
questiona. “E o elenco de apoio da novela, alguma notícia?”.
“Cara, tu sabe como é. O que tem de gente que quer trabalhar na
tevê... muita concorrência! Tenta entrar em uma companhia teatral”.
Ah, sim, o status do tablado antes de ser um mundano ator de tevê.
Ainda bem que sempre haverá a sociologia.
Banho
e de volta às próprias roupas. No metrô, as expressões uniformes
de enfado e indiferença das pessoas o faz questionar se alguma
daquelas propagandas realmente mostram reações de verdade. “Que
bobagem, é essa fantasia que paga minhas contas”.
“Você
chegou cedo hoje”, diz sua companheira. “A gravação do
comercial de plano de saúde foi cancelada para outro dia. Pena, eu
fico bem de jaleco”. Ela não esboça qualquer reação à piadinha
sem graça e ele pergunta se há algo errado.
“Eu
tô grávida”.
4.9.11
A inútil trajetória da comida
Sábado,
8h.
Feno,
ração, um pouco de capim fresco. Vitinha, como foi apelidada por um
funcionário do frigorífico, rumina calmamente e seus olhos pretos
mantém-se fechados como se saboreando o repasto que foi depositado
no estéril cocho onde ela e mais vacas se alimentam. Muitos apreciam
a quase simétrica disposição de suas pintas pretas em seu corpo
branco, além de sua calma zen que inspirou muitos trabalhadores a
serem vegetarianos.
Mal
sabia Vitinha que aquela seria sua última refeição.
Sábado,
10h30min.
Paula
volta com a caminhonete vazia. Cheia, pelo menos até a ida ao banco,
só a pequena sacola com o resultado da venda dos pés de alface.
Mais do que satisfeita com a negociação, ela olha o pai e os irmão
já preparando o terreno agora vazio onde outrora se encontravam as
vicejantes hortaliças. “Vão plantar mais alface?”, ela pergunta
.
“Não,
filha. Talvez um pouco de rúcula agora”.
Sábado,
12h43min.
Os
eixos passam trêmulos pela balança na rodovia. Tudo certo, hora de
aumentar um pouco a velocidade pra chegar logo ao destino. Cícero
puxa pela memória uma época que parece tão distante, onde ele
colhia os grãos de feijão e arroz debaixo do sol inclemente e os
levava na “cacunda”, como dizia sua mãe. Hoje, ao dirigir o
caminhão repleto de sacos destes grãos, ele fala sozinho enquanto
ouve Fernando e Sorocaba no rádio.
“Essa
molecada não tem ideia do que é trabalho!”.
Segunda,
9h37.
Leitor
óptico de código de barras na mão, Lucinda vai dando coordenadas
que aos ouvidos dos motoristas e carregadores parecem descoordenadas.
“Não tem noção de logística mesmo”, pensa entredentes e com
uma certa empáfia a encarregada de recebimento de materiais. A carne
vai pra câmara frigorífica. Vitinha está entre elas. Legumes e
verduras? Ali. “Puxa, vou levar uns pés desta alface pra casa, tá
bonita!”, admira-se Lucinda. “O arroz e o feijão já pode deixar
por aqui mesmo. Dia de pagamento”.
Cícero,
ao longe, engole um café retirado da pequena garrafa, distraído.
Segunda,
18h48min.
“Droga,
perder a novela das seis pra fazer compras, ninguém merece...”,
resmunga Douglas enquanto pega um carrinho. No açougue, coxão duro
e bife de patinho. “Ô chefe, tá uma facada o preço da carne,
hein?”. “E olha que nem passou na minha chaira, patrão!”,
diverte-se o açougueiro, já moendo a carne da próxima freguesa. O
arroz tá perto das embalagens de óleo. “Droga, a alface tá meio
murcha. Vai assim mesmo, quem manda ela não vir mais cedo?”. Ele
mentaliza o cardápio e já sabe o que vai pedir para Norma fazer.
“CPF
na nota, senhor?”.
Quarta,
10h18min.
Douglas
sempre se diverte com o que lê escrito no banheiro do trabalho. E
não adianta os chefes chamarem a atenção; frustrações mal
resolvidas entre subordinados e subordinantes não criam a coragem da
palavra dita. “Pior que eu reconheço a letra desta aqui sobre o
Artur!”, ri sozinho. Fim das atividades escatológicas. Papel,
descarga. “Minhas tripas são um reloginho”, orgulha-se, enquanto
lava as mãos.
O
alimento vai transformar-se em energia motora e sensorial. Pois bosta
ele já é.
Entre
o sábado e a quarta, a mangueira próxima ao supermercado deixou
cair algumas folhas, viu algumas pétalas darem adeus e não teve
trabalho algum para captar a luz solar que que penetrou nos estômatos
e transformou-se em alimento. Como subproduto, ela expele oxigênio e
galhos e folhas secas transformarão em húmus, que alimentarão as
próximas vacas e e os próximos pés de alface, arroz e feijão.
#3
SEXO!
Confesse
seus pensamento ao ler esta palavra. Vamos, não se acanhe; este blog
é maior de 18 anos e responsável por todos os seus atos. Uma única
palavra e as pessoas formulam, postulam, fornicam, discutem e tentam
cooptar. Por que ninguém se importa quando alguém diz “árvore”,
“espaguete”, “ornitorrinco” mas se remexe nas cadeiras ao ler
a palavra SEXO?
Nunca
entendi nem o endeusamento nem a satanização do sexo. Se quem se
preocupa tanto com essa simples junção de quatro letras procurasse
a definição em um bom dicionário teria uma visão bastante
prática. Vejamos o o que diz o Houaiss:
sexo
(cs) s.m. 1 conformação física, orgânica, celular, particular que
permite disqtinguir o homem e a mulher, atribuindo-lhe um papel
específico na reprodução (…) 5 p.ext. Sensualidade, lublicidade,
sexualidade (…)
Ou seja, sexo define se um ser
humano vai nascer com pênis ou vagina. Sexo também nomeia os
sentimentos que levam duas pessoas a copular. É isso.
O problema não é o sexo; aliás,
o problema NUNCA foi o sexo, e sim o uso sociológico, religioso e
político dos atos sexuais. Desde a formação do conceito de família
até à prostituição, da supervalorização do cortejo à
pornografia, das discussões sobre os hormônios às intermináveis
querelas sobre heteroseexualidade e homossexualidade; tudo o que
envolve sexo é motivo para debates.
E se fôssemos apenas animais
conscientes sobre nossa sexualidade, sem polarizações? Vão dizer
que isso é uma simplificação burra. Pois a intelectualização nos
levou à ditadura do politicamente correto. Somos forçados a sermos
cem por cento puros e estéreis, sem nuances cinzas que forçam o
pensamento.
Ah, quer saber? Estou sob o efeito
de energéticos e é uma da manhã. É melhor eu dormir. Sem sexo.
#5
Música
sempre foi essencial em minha caminhada. Mesmo frustrado em minhas
pretensões iniciais de cantar bem ou tocar algum instrumento – é
preciso aliar vontade ao talento – nunca deixei de ter uma trilha
sonora, real ou neural. Em meus delírios pueris e juvenis me via
parte integrante de um imenso musical; enquanto muitos achavam
absurda a ideia de ver marmanjos cantando para expressar alguma coisa
em filmes, eu sorvia “Cantando na Chuva”, “Sete Noivas para
Sete Irmãos” e “Mary Poppins” com voracidade quase religiosa.
Quando
eu escolhia minhas músicas prediletas, valendo-me dos mesmos valores
subjetivos dos críticos mas sem poder embasar minhas preferências
usando a história ou o profundo conhecimento das técnicas
envolvidas (hah), eu preferia as canções mais tristonhas, seja nas
letras ou na linha melódica. Gostava, e gosto, do desamparo, da
desesperança, da crueza e das lições implícitas nestas tristes
canções.
Quando
eu cantava a plenos pulmões “Meu mundo e nada mais” com meus
cinco anos, eu não estava ferido e amargurado como a persona da
letra; apenas achava bonito que alguém pudesse expressar tão bem
sentimentos tão tristonhos. Mas foi ao conhecer Elton John que vi
que a dor e a amargura poderiam ser munições perfeitas para a
música pop. Vou falar especificamente de uma.
Em
1973, uma novela fazia muito sucesso: “Carinhoso”, escrita por
Lauro César Muniz. Uma das músicas da trilha sonora internacional
fez um estrondoso sucesso, “Skyline Pigeon”; ela é uma daquelas
canções que fazem parte do inconsciente coletivo dos brasileiros,
como outras que fizeram parte de trilhas sonoras de folhetins na
década de 1970 (nem me faça começar). Foi através da música que
conheci o senhor Reginald Kenneth Dwight, cujo nom de plume tornou-se
sinônimo de música pop e rock de qualidade.
Nesta
época, só alguns privilegiados tinham aparelhos de som que mereciam
o nome; eu tinha uma Sonata que me tio havia me dado junto com alguns
compactos simples. Um destes privilegiados era o filho da patroa de
minha mãe à época; num sábado eu fui com minha mãe até a casa
desta mulher (enorme e linda, com apetrechos que eu só tomaria real
conhecimento do que eram na década de 1990) para ajudá-la a trazer
algumas roupas que ela havia ganhado. Enquanto ela dispunha vestidos,
calças e camisetas em sacolas, eu permaneci quieto, olhando tudo com
um misto de fascínio e curiosidade. Os odores daquela casa eram
muito diferentes dos que eu estava acostumado a sentir, e muito de
minha percepção futura de “casa de rico” vem desta memória
olfativa.
De
repente o filho da patroa passa pela porta do quarto onde estávamos
eu e a mãe com um disco nas mãos. Era uma cópia americana de
“Goodbye Yellow Brick Road”, como ele fez questão de frisar. Ele
entrou em seu próprio quarto e colocou para rodar. Além da
faixa-título, uma música em particular me chamou a atenção. Mal
sabia minha própria língua, mas a canção não-nomeada era linda.
A voz cristalina de Elton John, o piano, aquele jeito de cabaré, e o
que mais me chocou: a tristeza e pungência com que ele cantava o
refrão. Fomos embora sem saber que música era aquela; afinal, o
filho da empregada não podia dirigir a palavra a um dos membros de
tão rica família (quando soube, décadas mais tarde, que eles eram,
e são, apenas uma família de classe média, me penitenciei por ser
tão subserviente às convenções implícitas naquela época). Ela
nunca foi exatamente um hit aqui no Brasil, assim como a faixa-título
e , talvez, “Benny and the Jets”. Por isso a canção tornou-se
uma espécie de fantasma que assombrava minha memória de tempos em
tempos.
No
começo de 2011, estava eu tentando ouvir rádio (coisa que se torna
cada dia mais difícil graças à qualidade de certas rádios pop),
girando o dial aleatoriamente quando ouvi a tal canção misteriosa
de Elton John. Foi como se eu visse a pessoa amada pela primeira vez:
minha pele pipocou de arrepio, minha boca ficou seca, os olhos
lacrimejaram, o coração bateu descompassado – e não estou
exagerando. E a tristeza do refrão continuava intacta; pude ouvir a
gaivota no final da canção, dando um ar mais desesperançado ao
conjunto.
Agora
tenho a música em meu pen drive. Ela se chama “Sweet Painted
Lady”, primeira faixa do lado A do disco 2. E meus instintos
estavam certos: a letra é de uma certa forma uma ode à tristeza de
uma vida sem muitas expectativas, e que pode ser resumida no refrão:
“Sweet painted lady/ Seems it's always been the same/ Getting paid
for being laid/ Guess that's the name of the game, ooooohh”.
Sem
querer, o filho da patroa quis me cooptar ao lado comodista da Força.
Não conseguiu. Mas eu gosto de saber que ele existe para inspirar
tão belas canções.
#6
A
primeira vez que me senti apaixonado foi aos 13 anos. Não era um
desejo carnal tão comum quando os hormônios nos fazem ir à caça e
o cérebro, este órgão fanfarrão, quer transformar tudo em uma
linda história cheia de preceitos morais, éticos e humanos. Era uma
paixão pelas partes do todo que culminavam em uma obsessão pelo
objeto completo.
Os
cabelos longos e de um amarelo dourado. Os olhos
castanho-esverdeados. As mãos a segurar lápis e canetas. O cheiro.
E, claro, minha falta de coragem para me declarar. Quando a coragem
veio, fiz que faço de melhor: escrevi uma carta (ok, engraçadinhos,
eu acho que escrever é o que faço de melhor, posso? Agora parem de
rir. É sério. Ah, qualé...).
Foi
a pior atitude que eu tomei. Eu não era alvo do radar dela, mas
quando apareci no monitor ela percebeu que tinha um motivo para se
divertir. De uma certa forma foi até bom; alguns homens não sonham
ser a razão da alegria e das risadas de uma mulher? Pois é. Pena
que eu era só o bobo da corte, não o cortejador.
Ao
vê-la beijando um rapazinho diametralmente oposto ao meu tipo físico
– corpo longilíneo, tez alva e cabelos loiros, se fazem tanta
questão de saber – meu corpo entrou no horizonte de eventos
próximo a um buraco negro. Só não fui sugado porque eu descobri os
gibis da Marvel e que o cheiro da biblioteca era melhor do que o
perfume dela.
Cheiro.
Há o rosto, há o toque, há até o paladar da saliva, mas assim
como um Grenouille tupiniquim eu sou atraído pelo cheiro. Chego a me
apaixonar por ele. É como se ele exalasse algo que me falta. Por
isso eu nunca dei muita sorte nessa coisa que algumas pessoas chama
de amor – meus amigos, essa coisa que vocês chama de amor nada
mais é que a ação dos verdadeiros donos do seu corpo, os
hormônios, como a noraprinefrina, a serotonina e a dopamina. Mas
estou divagando.
Falava
do cheiro e dos efeitos nada benéficos que ele causa em minha vida
afetiva. Sem entrar muito em detalhes, digamos que, ao seguir os
conselhos de muita gente que dizia “jogue-se, entregue-se, ouse”,
eu esqueci de uma coisa muito importante: as pessoas baseiam-se em
seus olhos e ouvidos. E não sou exatamente uma escolha agradável à
visão de algumas pessoas. Pensando bem, se não fossem os perfumes
que uso, nem meu cheiro seria tolerado!
Você
não entendeu? Que pena.
#7
Fuscas
sempre disparam alguns gatilhos em minha memória. Num dos famosos
casos de falta de pauta de um programa zapeado ao acaso,foi ao ar
uma propaganda de 1965, eu acho, do Fusca, ressaltando que ele era “o
único carro brasileiro com refrigeração a água”. Graças à
referência líquida, dois casos que envolveram eu, meu pai e um
Fusca vieram à tona do nada, me fazendo rir como um bocó, sozinho,
no sofá da sala.
Eu
tinha seis anos. Meu pai, à época um funcionário público que
trabalhava no matadouro municipal, conseguiu, sabe-se lá como, a
permissão para usar um dos carros da frota da secretaria ao qual ele
era subordinado (não me pergunte qual, pois os nomes mudaram muito
de 1976 para cá). Um Fusca branco. Feliz e pimpão, meu pai e mais
dois amigos saíram do expediente já dirigindo a caranga numa sexta
feira com o tanque cheio e algumas ideias na cabeça.
Chegando
em casa, meu pai e seus asseclas começaram a se mover num frenesi
coletador: pegaram varas de pescar, aquelas de bambu mesmo, uma
sacola de lona cheia de tralha indefinida de pesca, um lampião a
querosene, herança de meu avô, mais os sanduíches que minha mãe
foi quase que obrigada a fazer com os pães que meu pai comprou. Eu,
ao longe meio que via a movimentação, meio que brincava com meus
“hominhos de doce de banana” (se você nunca os teve é porque
não é tão velho quanto eu) no monte de areia. E tudo terminaria
ali para mim se não fosse a surpreendente frase do pai no final da
arrumação: “Nei, vem com nóis. Cê vai pescar com o pai”.
Surpreso,
olhei inquisidor na direção da mãe, que murmurou um indeciso
“vai”. Me levantei, fui tomar banho (ordem do pai, e com uma
recomendação singela: “vê se não banca o lerdo debaixo do
chuveiro!”), coloquei um short, uma camiseta e meu par de chinelos
e entrei no banco de trás do Fusca, junto com um dos amigos do pai,
um sujeito cujo nome não me lembro mas cheirava à banha que minha
vó usava para guardar as carnes de porco que ela tanto gostava de
fazer. Não sei porquê, mas ao invés de sentir asco, senti fome.
Na
viagem, tentava olhar para a paisagem através do vidro, tentativa
frustrada pela escuridão da tarde que já se adiantava. Me contentei
com os vultos de casas, árvores e a visão das luzes longínquas
acesas nas ruas. Ao chegarmos ao destino, notei que não havia nada
que se parecesse com alguns curso de água corrente; apenas um
apinhado de casas térreas construídas ao largo de uma extensa rua
de terra batida. A voz do meu pai, como um trovão, cortou o breve
silêncio após ter desligado o carro (minha nossa, como aquele Fusca
era barulhento! Fazia algo tipo
rrrruuuuummmm-pocpocpoc-rrrruuuuuummmm... ).
“Nei, tem pão e suco aqui na sacola, Fica aqui dentro”. Não entendi nada: se o objetivo daquela pequena viagem era uma pescaria, por que diabos eu tinha que ficar trancado ali dentro? Ato contínuo, apareceram uns vultos femininos indistintos que pegaram meu pai e sus amigos pela mão, não sem antes olharem o interior do carro; uma delas falou com uma voz infantilizada incongruente: “olha só que menininho bonitinho!”, soltando uma risada e levando os três adultos para dentro de uma daquelas casas. Fiquei sem ação, tanto pela atitude estranha do meu pai quanto pelo suposto elogio que aquela mulher disparou.
“Nei, tem pão e suco aqui na sacola, Fica aqui dentro”. Não entendi nada: se o objetivo daquela pequena viagem era uma pescaria, por que diabos eu tinha que ficar trancado ali dentro? Ato contínuo, apareceram uns vultos femininos indistintos que pegaram meu pai e sus amigos pela mão, não sem antes olharem o interior do carro; uma delas falou com uma voz infantilizada incongruente: “olha só que menininho bonitinho!”, soltando uma risada e levando os três adultos para dentro de uma daquelas casas. Fiquei sem ação, tanto pela atitude estranha do meu pai quanto pelo suposto elogio que aquela mulher disparou.
Sem
ter muito o que fazer, comi alguns dos sanduíches (mortadela com
aquela linguiça fininha, não sei até hoje o nome daquela
variedade), me deitei no banco e adormeci profundamente. Quando
acordei já estava em casa, ouvindo minha mãe possessa, falando
coisas desconexas entre um xingamento e outro. À época, não
entendi o porquê daquela reação tão extremada. Só depois de
alguns anos e dono de informações mais privilegiadas é que pude
entender o significado de algumas daquelas palavras sem nexo:
Itatinga. Luz vermelha. Mulheres da vida. Meu pai realmente foi
pescar naquele dia.
Ele
pegou muitas piranhas.
Três
anos depois, o pai ficou incumbido de levar um Fusca azul para uma
pessoa não especificada. Esse Fusca estava em uma oficina mecânica
perto de casa e esse amigo sem nome pediu ao pai para levar o carro
até o bar do Vando, onde eles se encontrariam e se confraternizariam
bebendo cachaça e comendo aqueles jesus-me-chama entre uma partida
de bocha e outra.
Eu
estava quieto em meu canto, eu juro. De repente ele me chama. “Nei!
Vem, vou te levar pra passear de carro!”. O pior era a falta de
opção; assim como no Brasil desta época, “democracia” era
apenas uma palavra no dicionário. Fui. O Fusca azul até estava com
bom motor, mas os bancos... o da frente tinha uma mola que insistia
em cutucar minha nádega direita. No meio do caminho entre minha casa
e o bar do Vando havia mais dois bares. O pai parou nos dois. Bebeu
nos dois. E a cada enroscada da embreagem eu temia pela minha vida
(tá, parece meio melodramático, mas experimente não cagar nas
calças ao ver a distância entre você e uma pata-de-vaca diminuir
consideravelmente até que o motorista se lembre que lugar de carro é
no asfalto!). Antes do destino final (o bar, não o Elísio!), ele
parou bruscamente ao virar na rua Cerqueira César. Ainda sou capaz
de sentir o gosto do vidro Blindex quando paro pra lembrar do dia.
Bati fortemente o rosto no para-brisa, quase desloquei a coluna. E
ele parou para dar uma mijada!
Quando
ele desceu, eu imediatamente pulei para o bando de trás e lá
fiquei, me lembrando daquele outro Fusca. Ao invés de uma mulher
exaltando minha fofura, apareceu o pai no vidro. “O que cê tá
fazendo aí, Nei?”. “Vou sentar aqui agora, pai”. “volta pra
frente AGORA!”. Bati o recorde mundial de salto em bando de Fusca.
E quando enfim chegamos ao maldto bar, quase imitei o papa ao descer
do carro.
Depois
ainda perguntam porque eu não faço questão de aprender a
dirigir...
Sobre as vergonhas engraçadinhas
Você
já teve o dissabor de alguém, geralmente um parente muito próximo,
ter desencavado para pessoas externas ao convívio familiar fotos
comprometedoras da infância – tipo “pagando bundinha com as
fraldas caindo”, “cara de choro ao ser contrariado por alguma
bobagem” - ou histórias que só fazem sentido em contextos
terrivelmente pessoais? Quem já teve desnudada essas passagens sabe
que, por mais cuca fresca que sejamos, a vergonha é um sentimento
inevitável.
Mas
se antes estas passagens nada abonadoras costumavam ater-se ao
círculo de amigos íntimos dos pais, o que restringia o vexame aos
bares, igrejas, templos, sinagogas e praças do entorno – e é
MUITA coisa para algo tão vexatório quanto um episódio que envolve
alguma idiossincrasia pueril – elas tomaram de assalto qualquer
pessoa no planeta que tenha acesso a Internet e assista ao YouTube.
Se
o objetivo inicial era apenas perpetuar a gracinha vergonhosa de uma
criança ou adolescente e mostrá-la, não sem uma nesga de
crueldade, aos parentes apenas com um clique, hoje busca-se a
notoriedade da web. Depois que deram cria a uma criatura chamada
“vídeo viral”, a internet notabilizou-se em esculpir em pedra o
adágio fanfarrão de Andy Warhol. E dá-lhe crianças discutindo
sobre o sentido da vida sob os efeitos do óxido nitroso, bebês
grunhindo gracinhas ininteligíveis, emulando o movimento de pernas
de Beyoncé ou chorando por causa de uma formiguinha morta.
O
problema que ninguém consegue visualizar, por estar aparentemente
tão distante, é: e depois? O que a adorável criança fará quando
crescer, ter seus próprios valores sobre o que é engraçado ou não
e ter que conviver à sombra de um vídeo viral? Crianças não são
psicologicamente preparadas para este tipo de exposição
simplesmente por ainda não terem amadurecido – e é por isso que
são CRIANÇAS. Não que eu vislumbre um futuro distópico onde
adultos traumatizados por terem sua intimidade pueril devassada pelo
mundo extravasam sua raiva, frustração ou qualquer reação
Jungiana ou Freudiana que o valha através de atos de extrema
violência.
Esse
seria, acreditem, o melhor dos futuros possíveis. Porque casos assim
são resolvidos rapidamente, seja pela força da lei, seja pela pena
de Talião que todos condenam abertamente mas exultam a cada
reportagem de um programa mundo-cão qualquer. Estas crianças
vilipendiadas em seu direito divino de ter privacidade podem vir a
ser formadores de opinião ou lideres carismáticos, que poerão usar
sua influência e poder para devassar, tripudiar, envergonhar e
lucrar com as vergonhas alheias. E tudo isso com a anuência de uma
geração que se habituou a achar que privacidade é “babaquice”
e que vergonha alheia é engraçado.
Talvez
fosse a hora de pensarmos mais a longo prazo, sem a urgência que
esta geração tanto preza. Nem todos se sentem confortáveis sendo
motivo de chacota para uma audiência cada vez maior e mais voraz. E
por mais que uma gracinha infantil tenha seu encanto, ele é fugaz
perto dos efeitos imponderáveis do futuro que não tarda a vir.
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