24.11.08

O fim

O tranco na porta anuncia a chegada. Há anos, quiçá uma década, que Homero promete a si mesmo consertar o batente, trocar a porta ou coisa associada. E para variar ela nunca está trancada; o fato dele ter a chave não é motivo suficiente para mantê-la sob a frágil, porém unica segurança da lingueta gasta. Ele bate os pés sobre a camiseta velha usada como capacho e pano de chão e retirá o pó inexistente dos tênis.
Homero observa rapidamente os ângulos conhecidos dos cômodos da casa. A cozinha está razoavelmente limpa, sem panelas no fogão. "Bem, acho que vou comer aquele rango frio de novo!", murmura inaudível para si num tom de deboche acomodado. A sala está na penumbra, a tevê só mostra sua presença através do led verde; no quarto de Cícero e Helena, o lusco-fusco da televisão envolto no sussurro dos atores da novela. Mochila deitada na cama, tênis retirado displicente. "Nossa, a melhor coisa que fiz foi comprar aquele talco anti-chulé!", borrifando nuvens discretas do que restou do talco ao tirar a meia.
No chuveiro, a lembrança do dia de trabalho foi menos monótona. As doidas que trabalham na repartição compraram um bolo, refrigerantes e um presente singelo (um frasco de desodorante adorável) para comemorar os quarenta anos dele. Homero nunca se sentiu tão querido quanto naquele momento; fez valer os cinco anos e meio tendo que suportar a superdose de mulheres. A ironia de trabalhar em uma repartição que é um feudo feminino sendo gay sempre dava deixas para piadas de gosto duvidoso que ele adora proferir. Mas não naquele momento. Ele simplesmente ficou quieto enquanto Lúcia, sua chefe, lia um texto curto, repleto de lugares-comuns. Homero não chorou porque ele soltou uma frase feita, com chavões irônicos. O bolo estava delicioso.
Enxuto, trocado e com fome, Homero foi até a geladeira. Panelas guardadas (e isso porque Helena encheu o saco do seu irmão para comprar alguns "tapaué" de 1,99!), o arroz branco, pálido, implorando tardiamente por uma refoga de cebola e alho, o feijão, um guisado indefinido, suando gordura. "Prefiro a fome a isso", profere mentalmente com ira, fechando a porta.
Escova de dentes, creme dental. As gengivas são limpas com fervor, os dentes esfregados quase com fúria. Quando a língua passa pelos dentes que não existem mais (coincidentemente os dois pré-molares), o arrependimento pelo dinheiro não gasto num tratamento sempre volta. O fio dental do fim da escovação age com eficiência, limpando as gengivas e pensamentos.
A cama o convida, mas o hábito de tentar ver algo que preste na tevê persiste. Uma ou outra notícia dada pelo Carlos Nascimento, uns tais Yeah Yeah Yeahs verbalizam coisas em inglês para uma encantada Domingas Person, algumas tramas confusas nas novelas - "dá até saudade de minha vida de noveleiro acéfalo" - e o sono mune as pálbebras de areia. É hora de ficar olhando oescuro até que ele o acolha.
Geralmente é rápido, "pá e bosta", como diria seu tio; um punhado de frases pinçadas no cérebro, uma lembrancinha, a epifania que é rapidamente esquecida e o sono. Só que esse dia específico é diferente. Homero teima em colocar a vida em retrospectiva uma vez por ano, ao soprar de mais uma velinha. Um amontoado de frases iniciadas com a conjunção "se".
"Se eu tivesse começado a trabalhar mais cedo. Se eu tivesse completado o segundo grau. Se eu tivesse pretado vestibular para jornalismo. Se eu saísse da barra da saia dessa casa. Se eu não fosse gay e não gostasse tanto de homens mais velhos. Se eu tivesse continuado a trabalhar na Müller. Se eu fosse mais magro. Se..."
A cada conjunção, uma resposta dura. E a prespectiva de uma velhice cada vez mais próxima, solitária e desprovida de recursos financeiros. "Minha nossa", pensa, irritado, " nem para mim mesmo deixo de usar essas metáforas politicamente corretas. Seu gordo pobre e viado, você nunca vai se mancar e tomar uma atitude??". Como se fosse uma resposta implícita, uma enorme e atordoante angústia toma conta dele. A epifania veio e não permitiu ser esquecida:
"Sou fruto de minhas decisões".
A angústia doeu. E não foi apenas metaforicamente. Algo em seu peito começou a querer explodir, como um motor arrancado do capô a marretadas. Homero soltou um gemido de dor, que se transformou num grito. Todos os músculos pareceram se retesar, mas seu cérebro ainda teimava em permanecer lúcido, como se saboreando sadicamente o sofirmento.
"Deus... é um ataque cardíaco... alguém... me aju..." foi o que ele quis dizer, em meio à lamentação uivante. O corpo dele espasmava sem controle, títere sem cordas que o apoiasse. Mais um grito feroz, quase um urro animalesco. Os olhos arregalaram e viram a escuridão do quarto se preenhida pela luz. A cegante luz.
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A luz do dia preencheu o quarto. Homero pula assustado da cama, colocando a mão no peito, já sem dor. Atordoado, balança a cabeça fortemente e o que era apenas luz toma forma. As paredes azuis... "peraí, as paredes do quarto são brancas!", pensa. "Devo estar no hospital. Muita bondade do Cícero...", murmura, irônico. Quando passa as mãos no rosto, um susto: aquelas mãos pequenas. Pequenas demais! Incrédulo, olha para si mesmo com mais atenção. Suas pernas... encolheram. E essa cama? "Parece a cama de palha onde eu...". Não consegue terminar a frase. De seu corpo, olha para o quarto. As paredes ainda continuam azuis. E mais.

"Meu Deus... é a máquina de costura de minha vó! E a antiga cômoda! Ela foi jogada fora em 87, como pode isso?" Os pés descalços sentem o piso sem o revestimento. E está vermelho! O teto... onde está o forro? A janela... é do mesmo tom das paredes e é de madeira.

"Eu morri... tive um ataque cardíaco e morri, é isso. E essa é a representação do céu que estava reservado para mim??? Que piada de mau gosto é essa, Deus????". Homero sai quase correndo do quarto, não querendo acreditar no que viria. E ele viu. O conjunto estofado verde, a mesinha onde a televisão preto-e-branco ficava. " O espelho. O espelho.", sua mente bradava. Ele finalmente se viu no espelho da prateleira onde ele antes reconheceu o vidro de perfume Unforgettable, o pó compacto, o vidro de desodorante Italian Pine, seu rosto das fotos da década de 1970 no reflexo.

Horrorizado, Homero quase gritou e só foi impedido por uma voz.

"Homero, já acordou? Vem tomar seu leite, tem pão também."

Lentamente ele se virou na direção da cozinha. O cheiro de café acompanhou o vagaroso movimento de seu pescoço incrédulo. Aquela voz...

"Mãe?", ele disse timidamente.

"Vem, o leite tá esfriando. Já passei margarina na sua banda de pão.", ordenou suave a voz.

Alguém manipulando o tempo deve ter acionado a câmera lenta nesse momento. Passo a passo, ele foi na direção da voz. A cozinha era como ele vagamente se lembrava, mas agora estava colorida e vívida na frente dele. A mesa de madeira feita pelo seu Lucas. Seu Lucas sentado. Fátima, ainda criança, comendo sua banda de pão. Rosa, quase um bebê, sorvendo um chá numa chuquinha dada pela patroa de... dona Lívia.

"Mãe?", repetiu Homero, já na iminência de chorar.

Dona Lívia, encostada no fogão vermelho, adoçando o leite. Seus longos cabelos presos em um lenço, sua saia branca, suas chinelas. "Isso não é possível!". Suas pernas bambeiam como nunca antes. Antes dele cair no chão de cimento, dona Lívia, agílíssima, o agarra. Seu rosto se preocupa, seu Lucas, prático e seco, vocifera: "o que que te deu, moleque?". As mãos dela percorrem o rosto agora infantil de Homero, que se recupera, incrédulo e quase mudo.

"Tá tudo bem, Homero? Se não, te levo pro hospital."

A voz suave, o timbre decidido com leve sotaque caipira. Era ela mesmo, ele se permitiu dizer. E todos estavam ali, naquele instante. Aquilo era tudo, menos a morte. Mas o que era esse "tudo"?

"Tá tudo bem, mãe. Foi só uma tontura", e seu tom infantil soou alienígena aos seus próprios ouvidos.

"Ainda bem, ainda mais que amanhã é seu primeiro dia de aula!"

Estamos em 14 de fevereiro de 1977.

(Continua)

23.11.08

Mea culpa

Desde que me tornei "adulto" ouvia, quase sempre acompanhado de uma detalhada descrição da vida do meu interlocutor, a definição de felicidade e o porquê de eu não conseguir ser feliz. E foi ouvindo tantas descrições de felicidade que descobri, enfim, mais uma daquelas fórmulas mágicas. Só gostaria de ter um mínimo talento literário para poder enrolar, digo, escrever um livro de auto- ajuda; best-seller incontestável, principalmente se eu o intitulasse com algo prosaico, engraçadinho, emotivo ou qualquer que seja o tom que eu viesse a dar ao meu calhamaço.
Eu poderia ser feliz, por exemplo, adquirindo um vício socialmente aceito. Se eu fumasse, poderia sempre usar a boa e velha desculpa do isqueiro para puxar uma conversa, seja numa roda de desconhecidos que poderiam ser amigos ou para aquela gatinha solitária, caso quisesse tentar fazer sexo sem compromisso ou perpetuar a espécie, se ela fosse a mulher de minha vida. Claro que logo meu enfisema pulmonar e meus problemas cardíacos me faria persona non grata tanto em planos de saúde quanto no SUS, mas até lá eu seria irremediavelmente feliz.
E se eu bebesse? Definitivamente teria inúmeras histórias para contar, a imensa maioria com forte teor cômico, pelo menos para quem ouve. Desde a primeira carraspana - todos se lembram da primeira vez em que enfiaram o pé na jaca (eu me lembro muito bem!), - até histórias sobre vômitos, verdades ditas durante uma bebedeira, brigas por causa de palavras não comprendidas, esporros dados pela mulher, filhos, amigos. O problema é se eu não sobrevivesse no caso hipotético de eu dirigir depois de algumas biritas ("eu shóó thomeeei chinco caipirecs, sheu gualda!"). Bem, não sei dirigir mesmo...
Taí. E se meu maior sonho fosse ter um carro, como todos os que conheço? Ser fascinado por um modelo específico, tipo maníacos por Fusca, Opala, Maverick. Ou ser do tipo que adora especificações técnicas, como injeção tiptronic full flex com câmbio GPS Pinnifarina. Talvez adorar ir pela Augusta (ou qualquer rua) a 120 por hora. O importante é fazer o que muitos fazem: usar um carro não como veículo automotor, mas como símbolo de status do feliz proprietário. Se eu não fosse excessivamente cuidadoso (acho que alguns diriam covarde) ao ver no que o trânsito se transformou - só aqui em Indaiatuba a proprorção carro/habitante é de 1,78, se eu não me engano - ou não quisesse ser mais um a preencher o ar com mais gás carbônico, poderia ser mecanicamente feliz.
Alguns me dizem que preciso encontrar felicidade em uma religião, desde que ela seja baseada no cristianismo. Realmente. Moro em frente a um templo evangélico, e a quantia de barulho que eles fazem para louvar a Deus denota uma explosão de felicidade. Mas felizes são também os que repetem à exaustão a liturgia católica - quando eu tinha 12 anos, ultima vez em que frequentei uma missa, tinha decorado todo o roteiro (sim, era um roteiro! Uma indicação ordenada de frases ditas todo domingo, com algumas incursões improvisadas) da liturgia e decidi que não iria mais a uma missa. Acho que eu disse algo como "isso é muito chato". Pois é, se eu não achasse isso tão aborrecido, poderia compartilhar do êxtase. Mas eu sou herege mesmo, como uma colega de trabalho me rotulou.
Poderia ser feliz sendo gay! Ora, etimologicamente a palavra gay significa alegre. E me parece que ser gay é ser feliz, mesmo sendo considerado opção, doença, encosto... o problema é que eu teria que me encaixar em alguma ortodoxia. Ou eu teria que emagrecer, muscular meus bíceps, transformar minha barriga em um acessório de lavanderia, ou criar pêlos em minha casca adiposa para me transformar em um animal carnívoro, da família dos úrsidas, ou me submeter a silicones para poder soltar "a mulher em mim". Xi, mas antes teria que fazer uma bioplastia peniana; tenho, hã, um instrumento muito pequeno e como diria um sujeito cujo nome esqueci, size does matter!
Já sei. Sou solteiro. Feliz é quem tem uma mulher, cinco filhos, uma casa própria com prestações ainda a quitar (mas só faltam 13 anos), um emprego onde você precisa mostrar que é competitivo, antenado, uma mulher carinhosa e que saiba que o mundo agora pertence a elas, com TPM e tudo. Justo agora que descobri que viver só é muito inebriante...
Sou um idiota mesmo. Não presto para ser feliz. Terei que ser eu mesmo até o fim de minha vida, que droga!