Gostaria de saber o que se passa na cabeça de um spammer. O que faz com que ele, ou eles, ou a corporação "Spam Networks", escolha uma caixa de comentários específica para inundar com seus dejetos.
Existe um texto meu chamado "Meu mundo e nada mais", escrito há decênios. Era só uma postagem sobre o fim de um ano e as habituais retrospectivas que fazemos quando um ano se finda e outro se inicia. Eis que, por mistérios insondáveis e esdrúxulos, essa postagem recebe pelo menos 10 spams semanais na caixa de comentários. Ao abrir meu e-mail acabo me deparando com um anônimo postando cocô.
Olha. Meu blog é pessoal. Nem monetizado ele é. Não é lido por celebridades, não muda a vida de ninguém e fica abandonado por tempo demais. Senhor Spam, será que é pedir muito para que você ME ERRE? Obrigado.
Meia dúzia de qualquer coisa
Garçom, tem um aforismo em minha sopa
11.12.11
2.10.11
Gula
Em
uma tigela, coloque cerca de 300 gramas de farinha de trigo.
Acrescente uma pitada de sal e coloque água na mistura, batendo
vigorosamente até que a farinha salgada transforme-se em uma pasta
com consistência entre a massa de bolo e a panqueca. Reserve. Em uma
frigideira, coloque óleo de soja ou qualquer tipo de gordura
disponível – os fanáticos por comida saudável vão sofrer uma
apoplexia quando ler, mas minha casa tinha um depósito quase
industrial de gordura de torresmo, cortesia de minha vó e depois de
meu tio – e deixe aquecer. Quando a gordura estiver quente, pegue
uma colher, retire uma porção da massa anteriormente batida e
deposite sobre o óleo. Repita a operação até que toda a massa
esteja frita. O tempo de fritura vai depender do seu gosto; se quiser
os bolinhos crocantes, como os meus preferidos, uns cinco minutos por
batelada. Rápido, prático, calórico, nada saudável e a salvação
da lavoura em tempos bicudos.
Geralmente
eu não dava trabalho nenhum a ninguém; eu mesmo preparava meu café
e meus bolinhos, em uma época em que eu ficava constantemente
sozinho em casa. Infelizmente, meu pai, meu tio e meus irmãos
descobriram as delícias de produzir picuinhas em voz alta e com som
em alto volume, minando meus espaços calmos e os reduzindo às horas
que eles não estavam. Para que estes poucos instantes não fossem
embora durante a fritura dos bolinhos, tive a ideia de comprar
algumas frutas, já que me sobravam alguns cruzeiros (depois cruzados
e cruzados novos) após as obrigações. Numa segunda-feira após o
expediente, fui ao mercado e comprei maçãs, laranjas e bananas,
numa quantidade grande o suficiente para que eu pudesse ler meus
livros beliscando algo por pelo menos quatro dias.
No
dia seguinte, chego em casa, tomo meu banho e pego meu livro (“O
Caso dos Dez Negrinhos”, Agatha Christie, me lembro bem). Vou à
geladeira para pegar uma maçã e... só tem uma! Vou à bacia que
servia de fruteira e as bananas e laranjas tinham acabado. Puto, mas
ainda civilizado, pergunto candidamente: “já acabaram as frutas?”.
“É, o pessoal comeu”, respondeu meu tio. Não consegui terminar
a leitura, tamanha a raiva.
Sábado.
Meu tio e meu pai perguntam se eu ainda tinha dinheiro para comprar
“mistura”. Disse que não e avisei que iria dar uma volta. Como
sempre, deram de ombros – sempre tive a impressão que eles
continuariam a dar de ombros mesmo se eu dissesse “vou ao centro
ficar pelado e esfaquear todos os vira-latas que encontrar” - e fui
para Indaiatuba. Mais especificamente, para o maior supermercado da
cidade naquela época.
A
caminhada não durou mais do que vinte minutos. Ao entrar no
supermercado, peguei uma cestinha, inalei o caldo indistinto formado
pelo aroma vindo das seções de hortifruti, açougue, higiene e
limpeza e padaria e andei como se pisando na borda do precipício.
Calma e calculadamente. As gôndolas desfraldavam os produtos numa
ordem simétrica, marca com marca, pacotes retangulares, quadrados,
circulares. Foi a primeira e única vez em que entrei em um
estabelecimento comercial sem saber o que eu queria previamente. A
compra deve ter durado inacreditáveis 45 minutos.
Saindo
com a sacola plástica na mão, visualizei meu trajeto mentalmente e
decidi onde pararia: à sombra de uma pata-de-vaca perto do
Indaiatuba Clube. Um lugar ermo, onde, ao contrário de hoje, viva
alma ousava passar (ok, é um exagero, mas digamos que a densidade
populacional de Indaiatuba não era tão grande assim). Sentei meu
traseiro gordo em um paralelepípedo estrategicamente colocado
embaixo da árvore e comecei a destrinchar o conteúdo da sacola.
Primeiro,
o iogurte. Seis bandejas, quatro delas sabor morango. Foi como
desnudar a pessoa amada: o invólucro de cada potinho foi
meticulosamente retirado e eu sorvi os seis com gana. Literalmente,
lambi os beiços. Terminei e coloquei os seis potes empilhados ao meu
lado, no chão. Depois, mais iogurte, desta vez líquido. Aquelas
garrafas de 1 litro. “Agite antes de beber”, ordenava o rótulo.
A embalagem parecia uma coqueteleira em minhas mãos felizes. Um
minuto depois, retiro calmamente a tampa e bebo. Como água.
Ininterruptamente. Tudo o que eu pude dizer no final foi “coco”.
Próximo
item: um pedaço de cerca de 350 gramas de queijo mussarela. Quase
dois centímetros de espessura, e um cheiro que eu jamais vou me
esquecer; não por evocar sabores, mas por ser o troféu de uma
conquista gastronômica. “ Esse eu não preciso dividir com
ninguém. E nem comer uma ou duas fatiazinhas”, pensei. Não houve
esforço ao mastigar e quando cada pedaço alojou-se em minha boca,
eu o chupava como bala, como que prolongando o sabor e a sensação.
O
salgadinho veio quase que imediatamente após. Cebolitos. Ele foi o
responsável pelo maior dilema dentro do supermercado: Cebolitos,
Baconzitos ou Stiksy? Nunca me arrependi desta decisão, e hoje o salgadinho
faz parte dos sabores de minha memória afetiva. Mas o melhor, ao
menos para mim, reservei para o final.
Quando
foi lançado, o bolinho Ana Maria era o que o povo aqui de casa
chamava de coisa de rico. Quando isso era dito eu meio que
automaticamente aceitava, como se nossa “pobreza” fosse motivo de
alguma espécie anacrônica de orgulho. O problema é que eu senti o
cheiro do bolinho. Baunilha. Tentei emular o sabor da baunilha nos
doces que eu comprava no bar ou até mesmo esquecer que o bolinho
existia. Afinal, eu nunca compraria e comeria aquele troço.
Na
sacola a meu lado, três pacotes com seis bolinhos Ana Maria. Todos
de chocolate com recheio de baunilha. Fui cruel comigo mesmo naquele
momento. Abri um pacote, enfiei o nariz e me intoxiquei com odor. A
saliva matou minha língua afogada. Peguei um bolinho e fiz o que
alguns homens fazem com charutos: cheirei toda a extensão da Ana
Maria antes de abocanhar.
Foi
a última vez em que comer foi quase uma experiência mística,
religiosa. Digo isso porque nunca mais chorei ao comer algo.
1.10.11
Avareza
Alguns
hábitos não nos deixam, mesmo quando não encontramos um motivo
lógico para que os mantenhamos. Quando vou bater perna ou cumprir
compromissos financeiros na parte central da cidade, faço como
muitos contemporâneos meus: anuncio com uma certa pompa “vou pra
Indaiatuba”, resquício de uma época em que a cidade era
informalmente dividida entre o “lado de lá” da linha férrea (o
Centro) e o “lado de cá” (a periferia). Enfim. Uma vez por mês,
lá vou eu pra Indaiatuba, boletos, contas de consumo e listas nas
mãos e paciência na alma.
Depois
das inevitáveis filas e das notas de real que rareiam na carteira, a
missão “cidadão pagador de impostos, taxas e afins” é cumprida
dentro do prazo. Há momentos em que a fome não nos acompanha com a
proximidade de uma sombra,mas no oitavo dia do mês de Agosto, a
manhã dando adeus, meu estômago anunciou que não poderia aguardar
o almoço em casa. Como só me alimento com arroz e feijão no
(des)conforto do lar, minha escolha foi a mais óbvia possível:
Pastelaria Kibe e Esfiha.
Para
quem não conhece a outrora pacata cidade de Indaiatuba, o
estabelecimento acima citado é famoso pelos preços não muito
escorchantes e lanches rápidos acima da média. Adoro o pão de
queijo, a coxinha, os folhados e as esfirras fechadas. Prático e
decidido quando o assunto é comida, já estava com o menu anotado
mentalmente quando entrei. Infelizmente, todas as mesas estavam
ocupadas e tive que optar em colocar os produtos em uma caixa que
eles fornecem no balcão self-service para degustar os petiscos na
praça em frente à Pastelaria. Escolher, colocar, pedir o suco,
pagar.
Visualizo
um banco sob a agradável sombra de uma sibipiruna; sento, deposito a
caixa ao meu lado, e ataco os salgados com precisão cirúrgica:
guardanapos de papel envolvendo a esfirra, abrir a boca e comer.
Nesse momento tudo o que desejo é a paz de minhas mastigadas em
silêncio. Só que sempre existem as pessoas que adoram ser um
empecilho consciente ao alento alheio.
À
minha esquerda, ocupando um banco mais a mureta que separa os
buxinhos do passeio público, cinco pessoas. Cinco seres humanos, que
adoram mostrar que não tomam banho há semanas e que dividem
garrafas pet de 600 mililitros preenchidas com aguardente, dividiam
sua atenção entre os goles de pinga e o achaque aos transeuntes,
vítimas de sobrinhos postiços que sempre querem um real (“ô,
tio, arruma uma moedinha aí!”). Um desses cinco seres humanos,
carregando uma caixa de engraxate, me reconheceu e veio célere em
minha direção. Meu pensamento foi invadido por duas palavras. “Ô,
merda...”.
O
sujeito era tristemente famoso pela notória cara-de-pau. Não
importava quantas vezes o Serviço Social o enviava à sua suposta
terra natal (Jundiaí, ele sempre dizia), lá estava o gajo de volta
às ruas, ora sentado em uma sarjeta pedindo esmolas com cara de cão
sem dono, ora simplesmente abordando as pessoas usando a velha tática
da vergonha alheia para conseguir o que queria. E justo num dos raros
dias em que me dou ao luxo de comprar algo além do estritamente
necessário ele resolve me tornar alvo de suas palavras.
“E
aí, gordão! Tá gostoso aqui né?”, disse o cabra, à guisa de
cumprimento. Grunhi algo ininteligível graças à minha boca cheia
de massa de esfirra. “Dá um real aí! O troco do lanchinho!”,
ele pediu com um tom arrogante. “Não sobrou troco”, respondo
seco. “Então me dá um pão de queijo, tô com fome. Não vai
negar comida prum irmão né?”.
Não
sei bem porquê, me lembrei quando eu e minha irmã voltávamos do
supermercado, há mais ou menos quatro anos, comendo o conteúdo de
uma caixa de Bis, quando passamos por quatro crianças brincando na
calçada. Um deles, um moleque loirinho, gritou “tio, dá um Bis”.
Sem pensar muito, atendi ao pedido. As outras crianças começaram a
pedir com uma certa insistência; aquilo de certa forma me divertiu e
fui distribuindo chocolate até que eu ri e joguei para cima o
restante da caixa na direção deles. Continuamos nosso trajeto ao
som de “obrigado, tio!”.
Contudo,
não era uma criança a me pedir um pão de queijo. Era um sujeito
que já me fez passar muita vergonha por diversas vezes. E quando eu
o ouvi pedindo com empáfia, como se o meu salgado fosse o direito
divino DELE, olhei bem no fundo dos olhos dele e disse “não”.
Ao
ouvir a negativa, ele começou a usar a velha tática de agir como
pobre-diabo faminto. “Nossa, vai negar comida mesmo? Cadê seu
coração?”. Continuei a olhar para ele e disse: “esse é meu
almoço. Fiz por merecer e vou comer tudo. Agora com licença”.
Peguei a caixa com os dois pães de queijo e o folhado de frango, me
levantei abruptamente e dei as costas pro sujeito. “Olha, gente, o
gordão tá me negando um salgadinho! Tomara que engasgue!”.
Abandonei
a sombra e me sentei em outro banco que ficava a pelo menos 100
metros longe daquele sujeito, sob o sol do meio dia. Com a mão
direita, levava o folhado à boca; com a mão direita, tapava meus
olhos como uma viseira, impedindo precariamente a incidência dos
raios solares sob meus olhos. O que deveria ter sido um momento de
degustação tornou-se um cocho onde engoli o restante dos salgados.
O suco ajudou a empurrar goela abaixo. E não engasguei. “Da
próxima vez”, pensei, “me sento nem que seja no chão da
pastelaria”.
24.9.11
Como a Geração Sexo, Drogas e Rock'n'Roll salvou Hollywood
Algumas
coisas precisam do julgamento implacável do tempo para sabermos se
terão importância para entendermos o mundo em que vivemos. O
zeitgeist é formado por um caldo cozido em um caldeirão disforme e
em fogo brando; o sabor pode ser doce, amargo, fugidio, penetrante...
e será sentido desta maneira de acordo com as deidades pessoais.
Publicado
em 1998 pelo escritor e jornalista Peter Biskind, Como a Geração
Sexo, Drogas e Rock'n'Roll Salvou Hollywood (Easy Riders, Raging
Bulls: How the sex, drugs and rock'n'roll generation saved
Hollywood), tinha tudo para ser apenas um livro de fofocas indecentes
e picantes sobre as starlets hollywoodianas que deram um gap no
cinema estadunidense entre o final dos anos 1960 e a década de 1970.
Felizmente, Biskind sabia exatamente o que tinha em mãos, além de ter talento para extrair de seus entrevistados as etéreas lembranças
de uma época tão chapada.
Preciso
confessar, contudo, que o que me atraiu para o livro a ponto de
comprá-lo foi saber que a tradução é de Ana Maria Bahiana. Há
tempos, quando ainda sofríamos com o escorbuto nas naus portuguesas,
lia de tempos em tempos uma revista chamada SomTrês, onde fui meio
que educado a ouvir mais coisas além das rádios AM. Entre um mar de
críticos inteligentes porém rancorosos, destacava-se para mim as
resenhas equilibradas e impecavelmente bem escritas de Ana Maria
Bahiana; foi uma de minhas primeiras “grifes pessoais”, ou seja,
pessoas que eu acompanharia onde quer que elas estivessem e fazendo o
que quer que fizessem.
Claro
que, falando de algo que me interessa muito, que é o cinema, comprar
o livro e posteriormente lê-lo era questão de achar a oferta certa.
Porém, o medo de que o livro fosse apenas um compêndio de carreiras
de cocaína e baganas de maconha me fez ter dúvidas; afinal, não
conhecia o senhor Biskind. E qual não foi a minha surpresa ao ver
que o cabra manja?
Peter
Biskind contou parte da história do cinema, ponto. Por isso seu
livro não tornou-se datado, inconsistente e parcial. Quer dizer, não
muito parcial; é inevitável que as opiniões do autor sobre os
filmes essenciais e o estado da indústria cinematográfica permeiam
os capítulos, mas isso é feito de maneira a não eclipsar o que
realmente importa: o impacto da chamada Nova Hollywood e seus
artífices no cinema combalido e enfraquecido, quase à deriva, da
Velha Hollywood. E a consequente derrocada desta “nova geração”
graças à inexperiência em lidar com o mais devastador pecado
capital: a vaidade.
Inteligentemente,
Biskind delimita a era dos pretensos auteurs estadunidenses entre
dois filmes, Sem Destino (Easy Rider, 1969) e Touro Indomável
(Raging Bull, 1980) e escancara todo o delírio dos personagens
principais na nada modesta empreitada de mudar o mundo do
entretenimento em busca da “arte”. Na verdade, o que pareceu, no
frigir dos ovos, foi que a chamada Velha Hollywood recuou quando não
sabia o que fazer com o som e a fúria dos anos rebeldes e
polarizados (Democratas/Republicanos, negros/brancos, guerra/paz,
careta/chapado – e isso é terrivelmente levado a sério pelos
estadunidenses e sua moral de caixa de leite) e ao ver o que os
representantes desta geração tinham a dizer e ensinar, voltaram com
mais subsídios intelectuais e cooptaram os que eram comercialmente
viáveis (Spielberg, Lucas, e por um tempo Friedkin, Coppola, Ashby)
ao esquema high-concept – tramas e sinopses que poderiam ser
resumidos em poucas linhas, vendidos em pacotes com astro, diretor e
faixa etária definidos – que fez a fortuna de produtores como
Jerry Bruckheimer e Joel Silver. Ou seja, a mesma Hollywood de sempre
com uma visão mais “moderna”, “comercial” e “vendável”.
Triste
foi ver a “contagem de corpos”, literal e figurativa. A quase
loucura de Francis Ford Coppola (nunca imaginei que Apocalypse Now
tivesse uma história tão conturbada assim!), a paranoia de Dennis
Hopper amplificada pelo álcool e drogas, as atitudes comercialmente
suicidas de Robert Altman e William Friedkin, a morte de Hal Ashby.
Foi a morte do diretor de Ensina-me a Viver (Harold and Maude, 1972)
que encerrou o livro. Mais do que um frio filme, foi o declínio de
um cineasta que determinou, pelo menos para Biskind, o verdadeiro fim
de uma era que, para o bem e para o mal, foi decisiva para a
indústria cinematográfica.
Como
a Geração Sexo, Drogas e Rock'n'Roll salvou Hollywood
Autor:
Peter Biskind
Tradução:
Ana Maria Bahiana
502
páginas
Editora
Intrínseca
18.9.11
O opositor
Conheci
Luis Fernando Verissimo na Veja. Opa, é melhor contextualizar a
frase acima, caso contrário algum incauto vai imaginar que eu e o
escritor nos encontramos nos corredores da redação da revista
semanal. De novo, do início.
Meados
da década de 1980. Algumas professoras me presenteavam com edições
antigas da revista Veja, quando o editor-chefe era o José Roberto
Guzzo (leio tudo em uma revista. Tudo. Até o expediente).Mais do que
o início da abertura política, fui fisgado pelas páginas iniciais,
onde lia-se em grandes letras o nome “Luis Fernando Verissimo”. A
primeira coisa que pensei foi “será que tem algum parentesco com o
Érico?”.
Depois
do primeiro parágrafo, isso não importava mais. Descobri o meu
segundo cronista preferido – o primeiro, mesmo depois de tanto
anos, ainda é Rubem Braga – e uma referência para pesquisas. Sim,
pois muito do que ele dizia era javanês aos meus olhos pouco
letrados. Não foram raras as vezes em que eu me debruçava em um
dicionário ou ia ao Barsa (crianças, sou pré-histórico; Wikipédia
e Google sequer faziam parte do vocabulário corrente) por conta de
uma palavra ou frase de uma crônica dele.
Também
foi graças a Verissimo filho que odiei com toda a hemoglobina da
minha corrente sanguínea durante uma década inteira o Jô Soares.
Quando o hoje apresentador de talk-show o substituiu, eu me referia
ao senhor Eugênio Soares usando um epíteto de três palavras: filho
da puta. Mas já passou.
Passei
a consumir Luis Fernando Verissimo na biblioteca, tanto nas
coletâneas literárias quanto nas edições do Estado de S. Paulo.
Enquanto Érico Verissmo era um sonho intelectual inatingível para
uma capiau (embora eu secretamente quisesse ser um escritor tão
intenso quanto ele), Luis Fernando parecia conversar comigo. O texto
dele não era arrogante, tipo “minha educação formal é maior que
a sua, chupa!”; se havia referências mais rebuscadas, elas faziam
parte da estrutura assim como as moléculas de hidrogênio fazem parte da fórmula
da água.
Após
anos, ou melhor, décadas sem comprar um livro ou mesmo ler um (shame
on me), estava eu no mês de Agosto numa fria e impessoal rodoviária
quando vi na vitrine de uma livraria o nome dele, seguido de um
título simples – O opositor – e um preço deveras convidativo.
Não pensei duas vezes e comprei. Como ainda estava no meio da
leitura de Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros, deixei para
degustar as palavras de Verissimo depois, sem nenhum empecilho.
O
que me chamou a atenção no início foi que esse livro faz parte
de um projeto chamado 5 Dedos de Prosa. Embora eu ache estranha essa
mania que algumas editoras tem em fazer com que um escritor aja como
um operário do vernáculo, “forçando-o” a criar uma história a
partir de alguma temática qualquer (foge um pouco ao meu
conceito de liberdade criativa, mas sei que os tempos são outros e
romantismo não paga as contas), foi muito feliz dar ao polegar, o
incensado dedo opositor que tanta diferença fez na evolução do
Homo sapiens, a verve e a imaginação de Verissimo.
Usando
o conceito das teorias conspiratórias tão em voga desde o século
XX, um pouco de história da Arte, fábulas brasileiras,
religiosidade e mitologia, o livro cria um universo crível dentro um
thriller de espionagem, onde a primeira coisa que se faz é a
desconstrução da alucinação psicotrópica: dá-se a ilusão
primeira de que o narrador sem nome está sob o efeito do chá
alucinógeno servido por uma das personagens mais estranhamente
incríveis criadas por ele, Serena, a “índia dinamarquesa”, pois
o relato contado a ele por um sujeito eternamente embriagado, grande
e estrangeiro, parece coisa de um filme do Paul Greengrass com um
toque de LSD.
A
maneira brilhante que Verissimo usou para usar o polegar na história
faz com que a todo momento você se veja curioso para pescar as
referências que ele usa, desde o versículo da segunda carta de
Paulo aos Tessalonicenses à presença das Três Fúrias da mitologia
romana, da epidemia étnica ao afresco de Fra Angelico. Tudo isso
embalado em um suspense que faz com que o leitor queira chegar logo
ao final, tarefa muito simples e prazerosa, pois é uma edição
curtinha, pra se ler em uma sentada.
O
opositor é uma crônica em forma de livro, onde os sabores dos sucos
tomados pelo narrador sem nome – caju, açaí, seriguela, buriti,
bacuri,patavá e sapiri – ilustram os atos em que a história se
divide, cada sabor sendo uma alegoria do desenrolar dos
acontecimentos. No final, resta apenas a água como simbolismo da
purificação e da verdade.
Todo
esse blablablá só pra dizer que adorei o livro... preciso ser mais
conciso da próxima vez.
O
opositor
Autor:
Luis Fernando Verissimo
Editora
Objetiva
140
páginas
11.9.11
Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros
O
mundo do entretenimento está numa encruzilhada. Já não há mais
espaço para arroubos criativos que não possam vir a gerar
dividendos, pois não há mais lugar para a inocência e o
romantismo, se é que em algum momento da história houve inocência
e romantismo. Mesmo os que pregam uma espécie de anarquia criativa
querem, em algum momento, ser reconhecidos pelas suas obras. Como a
indústria do divertimento audiovisual movimenta quantias de dinheiro
nada desprezíveis (basta lembrar os US$ 6 bilhões arrecadados pela
indústria dos videogames no primeiro trimestre de 2011 – isso
mesmo, TRIMESTRE), não há muito mais espaço na mesa dos executivos
de grandes corporações da mídia para meros arroubos criativos.
É
sob este prisma que o livro Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros
(Abraham Lincoln: Vampire Hunter) deve ser analisado. O autor, Seth
Grahame-Smith, não deve ser menosprezado por sua suposta tendência
canibalesca, ao prover um cozido ficcional-histórico. O que ele fez,
e com muita competência, foi produzir e apresentar um produto para
uso futuro no cinema, games e programas de TV. Usar a figura
emblemática do 16º. presidente estadunidense e fazer dele um
caçador de vampiros sem que sua biografia fosse sequer
desconstruída – pelo contrário, graças às óbvias lacunas que
todas a figuras históricas deixam graças a informações não
comprovadas ou documentos inconclusivos, há espaço de sobra para a
nobre arte de criação de teorias da conspiração, arte dominada
com mestria pelos estadunidenses – deu margem para que o livro,
imprecisões físicas e literárias à parte, cumprisse o papel de
apresentar ao público e aos investidores um pré-roteiro elaborado o
suficiente para não ofender a inteligência do leitor e para dar um
tratamento imagético inicial aos donos dos talões de cheque em
Hollywood.
Não
podemos esquecer que o próprio Grahame-Smith é um homem de cinema e
tevê, pois é coproprietário da Katzsmith Production e cada passo
que ele dá é previamente calculado para que possa ser transformado
em plots televisivos ou cinematográficos. Mas isso tira os possíveis
méritos do livro? Claro que não. O objetivo primordial da obra foi
alcançado: é divertimento que faz com que quem conheça a biografia
oficial de Lincoln busque as referências nominais usadas nas partes
onde os ficcionais vampiros aparecem, além de atiçar a curiosidade
de quem não tem muita intimidade com a história tanto de Abe quanto
da Guerra da Secessão. Malandramente, aproveita-se do hype
vampiresco que ainda inunda o imaginário das pessoas, graças a
obras como True Blood, The Vampire Diaries e (tá, tá certo...) a
saga Crepúsculo.
Marcelo
Hessel, do site Omelete, disse que um dos grandes problemas do livro
é a unidimensionalidade de Abe Lincoln, assepsiando sua
personalidade e o tornando uma espécie de versão em carne e osso do
Capitão América. Nós, brasileiros, não veríamos problema algum
em ver um personagem histórico gringo ser desconstruído para fins
“artísticos”; o grande problema é a grande idolatria que o nome
Abraham Lincoln causa nos EUA. Por mais que Seth Grahame-Smith queira
amealhar seus milhões de dólares usando a liberdade criativa
(podendo inclusive apelar para a primeira emenda da constituição
estadunidense), ele deve ter achado que já foi livre demais ao
incluir vampiros na trajetória de vida do presidente. Na versão
para o cinema provavelmente o senhor Lincoln será um pouco mais
ousado e com nuances mais cinzentas.
Sabia
exatamente o que me aguardava quando comprei o livro e ao terminar
imaginei o tratamento que o diretor Timur Bekmanbetov dará ao filme.
Bem diferente dos meus anos pueris, onde os livros que eu lia
formavam-se apenas em minha imaginação. Bem vindos à era nerd do
entretenimento mundial. Os super-heróis já não são mais a
fronteira final.
Abraham
Lincoln: Caçador de Vampiros
Autor
: Seth Grahame-Smith
Tradução:
Alexandre Barbosa de Souza
Editora
Intrínseca
333
páginas
Dois segundos de alegria
Não
é preciso escolher uma roupa definitiva; basta que ela seja
confortável o suficiente para ir até o estúdio, já que os
figurinos estão previamente escolhidos. “Esteja na produtora às 8
da manhã”, informou lacônico o telefonema. Sua agente era uma
pessoa prática e sem floreios.
Sua
mulher apronta sua bolsa e seus relatórios enquanto o observa
colocar uma camiseta amarela e um jeans. “Tem alguma previsão de
quando vai terminar?”, pergunta, já sabendo a resposta. “Não. A
agência conseguiu quatro filmagens; uma delas poderá ser em
locação. Então já viu”, diz calmamente o homem, olhando para a
pilha de papéis que condensam sua dissertação. Sociologia, um
sonho oposto aos desejos do pai, que o queria arquiteto. Ela solta um
beijo no ar e se despede; o escritório a espera. Ele verifica seu
próprio rosto, pega documentos, chaves e celular e sai em direção
à estação do metrô.
Quarenta
minutos. O estúdio de gravação fica em um prédio de linhas retas,
“herança da escola Bauhaus, provavelmente”, pensa num esgar de
sorriso. Sétimo andar. Oi, deixa eu ver as credenciais. Ok, camarim
3. Suas roupas são colocadas no armário 38 e lá ficarão por tempo
indeterminado. Primeiro figurino: camisa de um time de futebol falso,
bandeirola, copo. Cinco outros o acompanham na cena em um cenário
simples: sofá, plantas artificiais, quadros. Ele ficará à
esquerda, sentado. “Beleza? Quanto tempo”, cumprimenta um dos
atores, que se senta no meio do sofá. “Desde o filme das
fraldas...”. Rápidas falas, quando o diretor pede silêncio e
orienta o que deve ser feito.
“Ensaiando”.
Ele se levanta, grunhe algo ininteligível em êxtase, e seu rosto
passa a alegria de ver seu time fazendo um gol no time adversário.
Abraços trocados, felicidade. “Corta”. Voltando às marcas
iniciais. Pequenos ajustes de foco e algumas orientações sobre como
ser feliz vendo um marmanjo chutando uma bola. Impassível, ele olha
o vazio imaginando o tipo de sorriso que um apaixonado por futebol
dá. “Gravando”. Ele muda a expressão, abre a boca em um
“gooool” enquanto o olhar sorri por ele. “Corta”. Um gole de
água antes da segunda tomada. Grava. O rosto agora vai para trás
exprimindo quase um orgasmo. O abraço no parceiro de cena é mais
efusivo. Corta. Take 3. Take 4. E fim.
No
único lugar onde ele pode fumar em paz (não que os haja muitos
ultimamente), ele ainda se prepara para o próximo esquete. Uma das
atrizes o acompanha e entre uma tragada e outra diz que pediu ao seu
agente para tentar colocá-la na figuração de Malhação ou de
alguma novela da Record. “Cara, você tem noção do quanto é
difícil conseguir isso?”. “Tenho sim; quando eu consegui uma
pontinha naquela novela das seis foi quase uma guerra! Pior foram as
promessas... não, você vai conseguir outras coisas, até fazer
parte do elenco de apoio”. “E aí, conseguiu o quê?”. “ A
vaga no comercial de lasanha”. Pfff. “Pelo menos foi uma
série...”.
Próximo
figurino: terno,gravata, pasta de couro. “Pai de família,
provavelmente, e sem falas”. Na cena, ele entra sorridente na copa,
onde uma mulher e duas crianças dividem um pão com um novo
requeijão saborizado. “Merda, odeio requeijão”, pensa enquanto
procura mentalmente o sorriso adequado. Orientação da diretora.
Ensaio. O paletó é colocado displicentemente no encosto da cadeira,
e o sorriso é um tanto quanto confiante demais. Corta. Desta vez o
paletó é colocado com um pouco mais de zelo na borda e um sorriso
“bom dia”, aqueles que ele sempre admirou nos comerciais antigos
de margarina, brota. Um beijo cúmplice na estranha, um afago e uns
grunhidos amigáveis às crianças. Chegou a temida hora; comer o pão
com requeijão. Corta, repete. Corta, repete em outro ângulo. E
sempre com o olhar de quem adora. Corta. Mais uma. E outra. Outra.
Corta, ficou ótimo. O gosto do requeijão enfim pôde encontrar a
real cara de nojo dele. As crianças riram divertidas. “Deveria ter
gravado isso” diverte-se a diretora.
“Locação
na próxima!”, avisa o assistente. Como a próxima vai demorar um
pouco e o local é num parque próximo, ele decide comer algo leve.
Num quilão frequentado por motoristas de táxi, ele coloca em um
prato alguns legumes e um bife acebolado. Enquanto come calmamente,
observa os frequentadores, detendo seus olhos e ouvidos em um senhor,
com seus 50 e tantos anos, barba espessa e grisalha, gabando-se com
seus colegas de métier sobre sua recente conversão ao catolicismo.
“Fui crente durante toda minha vida, mas foi Santo Expedito quem me
mostrou o caminho!”. Ele sempre foi fascinado em estudar o gestual
de certos profissionais, já que alguns destes gestos poderia ser
usado em suas curtas atuações. “O que cê tá olhando, moleque?
Não curto viado não! Vá encontrar Jesus!”, disse o velho
motorista ao notar que ele o observava. Ato contínuo, ele desviou o
olhar e terminou a refeição com um sorriso sarcástico.
Mais
um cigarrinho antes da filmagem. Chiclete de menta para disfarçar o
bafo. Agora o traje era esportivo: short de corrida, camiseta branca,
tênis. “Um fumante fingindo ser da geração saúde, é mole?”,
diverte-se ele com sua companheira de cena. “Vocês vão correr
suavemente por pelo menos 30 metros, certo? Vocês gostam muito disso
a linguagem corporal vai dizer TUDO!”, vaticina o obeso diretor.
Ensaio.
Os dois correm lado a lado. Um sorriso cúmplice e um mexer de boca
simulando uma conversa. Corta. “Conversem algo de verdade. Digam
algo com sentido. Não irá ao ar mas dará verdade pra cena”. Tá
bom. Ele entreolha a companheira de cena, que já entende. Ação.
Ele: “Dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial...”.
Ela: “Cebola e picles num pão com gergelim”. Com a mesma
cumplicidade anterior. Corta. Repete. Ele: “I'm not aware of too
many things...”. Ela: “I know what I know if you know what I
mean”. Mais cúmplices ainda, e com um sorriso cada vez mais real.
Dez
tomadas e dez citações depois - “daqui a pouco a gente ia recitar
Tenessee Williams aqui”, ela disse – fim das filmagens. “Tem
mais alguma coisa?”, ele pergunta à sua agente. Ele suspira e
questiona. “E o elenco de apoio da novela, alguma notícia?”.
“Cara, tu sabe como é. O que tem de gente que quer trabalhar na
tevê... muita concorrência! Tenta entrar em uma companhia teatral”.
Ah, sim, o status do tablado antes de ser um mundano ator de tevê.
Ainda bem que sempre haverá a sociologia.
Banho
e de volta às próprias roupas. No metrô, as expressões uniformes
de enfado e indiferença das pessoas o faz questionar se alguma
daquelas propagandas realmente mostram reações de verdade. “Que
bobagem, é essa fantasia que paga minhas contas”.
“Você
chegou cedo hoje”, diz sua companheira. “A gravação do
comercial de plano de saúde foi cancelada para outro dia. Pena, eu
fico bem de jaleco”. Ela não esboça qualquer reação à piadinha
sem graça e ele pergunta se há algo errado.
“Eu
tô grávida”.
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