Não
é preciso escolher uma roupa definitiva; basta que ela seja
confortável o suficiente para ir até o estúdio, já que os
figurinos estão previamente escolhidos. “Esteja na produtora às 8
da manhã”, informou lacônico o telefonema. Sua agente era uma
pessoa prática e sem floreios.
Sua
mulher apronta sua bolsa e seus relatórios enquanto o observa
colocar uma camiseta amarela e um jeans. “Tem alguma previsão de
quando vai terminar?”, pergunta, já sabendo a resposta. “Não. A
agência conseguiu quatro filmagens; uma delas poderá ser em
locação. Então já viu”, diz calmamente o homem, olhando para a
pilha de papéis que condensam sua dissertação. Sociologia, um
sonho oposto aos desejos do pai, que o queria arquiteto. Ela solta um
beijo no ar e se despede; o escritório a espera. Ele verifica seu
próprio rosto, pega documentos, chaves e celular e sai em direção
à estação do metrô.
Quarenta
minutos. O estúdio de gravação fica em um prédio de linhas retas,
“herança da escola Bauhaus, provavelmente”, pensa num esgar de
sorriso. Sétimo andar. Oi, deixa eu ver as credenciais. Ok, camarim
3. Suas roupas são colocadas no armário 38 e lá ficarão por tempo
indeterminado. Primeiro figurino: camisa de um time de futebol falso,
bandeirola, copo. Cinco outros o acompanham na cena em um cenário
simples: sofá, plantas artificiais, quadros. Ele ficará à
esquerda, sentado. “Beleza? Quanto tempo”, cumprimenta um dos
atores, que se senta no meio do sofá. “Desde o filme das
fraldas...”. Rápidas falas, quando o diretor pede silêncio e
orienta o que deve ser feito.
“Ensaiando”.
Ele se levanta, grunhe algo ininteligível em êxtase, e seu rosto
passa a alegria de ver seu time fazendo um gol no time adversário.
Abraços trocados, felicidade. “Corta”. Voltando às marcas
iniciais. Pequenos ajustes de foco e algumas orientações sobre como
ser feliz vendo um marmanjo chutando uma bola. Impassível, ele olha
o vazio imaginando o tipo de sorriso que um apaixonado por futebol
dá. “Gravando”. Ele muda a expressão, abre a boca em um
“gooool” enquanto o olhar sorri por ele. “Corta”. Um gole de
água antes da segunda tomada. Grava. O rosto agora vai para trás
exprimindo quase um orgasmo. O abraço no parceiro de cena é mais
efusivo. Corta. Take 3. Take 4. E fim.
No
único lugar onde ele pode fumar em paz (não que os haja muitos
ultimamente), ele ainda se prepara para o próximo esquete. Uma das
atrizes o acompanha e entre uma tragada e outra diz que pediu ao seu
agente para tentar colocá-la na figuração de Malhação ou de
alguma novela da Record. “Cara, você tem noção do quanto é
difícil conseguir isso?”. “Tenho sim; quando eu consegui uma
pontinha naquela novela das seis foi quase uma guerra! Pior foram as
promessas... não, você vai conseguir outras coisas, até fazer
parte do elenco de apoio”. “E aí, conseguiu o quê?”. “ A
vaga no comercial de lasanha”. Pfff. “Pelo menos foi uma
série...”.
Próximo
figurino: terno,gravata, pasta de couro. “Pai de família,
provavelmente, e sem falas”. Na cena, ele entra sorridente na copa,
onde uma mulher e duas crianças dividem um pão com um novo
requeijão saborizado. “Merda, odeio requeijão”, pensa enquanto
procura mentalmente o sorriso adequado. Orientação da diretora.
Ensaio. O paletó é colocado displicentemente no encosto da cadeira,
e o sorriso é um tanto quanto confiante demais. Corta. Desta vez o
paletó é colocado com um pouco mais de zelo na borda e um sorriso
“bom dia”, aqueles que ele sempre admirou nos comerciais antigos
de margarina, brota. Um beijo cúmplice na estranha, um afago e uns
grunhidos amigáveis às crianças. Chegou a temida hora; comer o pão
com requeijão. Corta, repete. Corta, repete em outro ângulo. E
sempre com o olhar de quem adora. Corta. Mais uma. E outra. Outra.
Corta, ficou ótimo. O gosto do requeijão enfim pôde encontrar a
real cara de nojo dele. As crianças riram divertidas. “Deveria ter
gravado isso” diverte-se a diretora.
“Locação
na próxima!”, avisa o assistente. Como a próxima vai demorar um
pouco e o local é num parque próximo, ele decide comer algo leve.
Num quilão frequentado por motoristas de táxi, ele coloca em um
prato alguns legumes e um bife acebolado. Enquanto come calmamente,
observa os frequentadores, detendo seus olhos e ouvidos em um senhor,
com seus 50 e tantos anos, barba espessa e grisalha, gabando-se com
seus colegas de métier sobre sua recente conversão ao catolicismo.
“Fui crente durante toda minha vida, mas foi Santo Expedito quem me
mostrou o caminho!”. Ele sempre foi fascinado em estudar o gestual
de certos profissionais, já que alguns destes gestos poderia ser
usado em suas curtas atuações. “O que cê tá olhando, moleque?
Não curto viado não! Vá encontrar Jesus!”, disse o velho
motorista ao notar que ele o observava. Ato contínuo, ele desviou o
olhar e terminou a refeição com um sorriso sarcástico.
Mais
um cigarrinho antes da filmagem. Chiclete de menta para disfarçar o
bafo. Agora o traje era esportivo: short de corrida, camiseta branca,
tênis. “Um fumante fingindo ser da geração saúde, é mole?”,
diverte-se ele com sua companheira de cena. “Vocês vão correr
suavemente por pelo menos 30 metros, certo? Vocês gostam muito disso
a linguagem corporal vai dizer TUDO!”, vaticina o obeso diretor.
Ensaio.
Os dois correm lado a lado. Um sorriso cúmplice e um mexer de boca
simulando uma conversa. Corta. “Conversem algo de verdade. Digam
algo com sentido. Não irá ao ar mas dará verdade pra cena”. Tá
bom. Ele entreolha a companheira de cena, que já entende. Ação.
Ele: “Dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial...”.
Ela: “Cebola e picles num pão com gergelim”. Com a mesma
cumplicidade anterior. Corta. Repete. Ele: “I'm not aware of too
many things...”. Ela: “I know what I know if you know what I
mean”. Mais cúmplices ainda, e com um sorriso cada vez mais real.
Dez
tomadas e dez citações depois - “daqui a pouco a gente ia recitar
Tenessee Williams aqui”, ela disse – fim das filmagens. “Tem
mais alguma coisa?”, ele pergunta à sua agente. Ele suspira e
questiona. “E o elenco de apoio da novela, alguma notícia?”.
“Cara, tu sabe como é. O que tem de gente que quer trabalhar na
tevê... muita concorrência! Tenta entrar em uma companhia teatral”.
Ah, sim, o status do tablado antes de ser um mundano ator de tevê.
Ainda bem que sempre haverá a sociologia.
Banho
e de volta às próprias roupas. No metrô, as expressões uniformes
de enfado e indiferença das pessoas o faz questionar se alguma
daquelas propagandas realmente mostram reações de verdade. “Que
bobagem, é essa fantasia que paga minhas contas”.
“Você
chegou cedo hoje”, diz sua companheira. “A gravação do
comercial de plano de saúde foi cancelada para outro dia. Pena, eu
fico bem de jaleco”. Ela não esboça qualquer reação à piadinha
sem graça e ele pergunta se há algo errado.
“Eu
tô grávida”.
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