A infância é chamada por alguns otimistas de a era da inocência por razões várias que vão desde as constatações sem aparas da realidade que nos cerca que só um petiz pode fazer até o sorriso que uma criança dá ao subir e descer em uma gangorra. Ultimamente algumas crianças não mais agem como tais, haja vista a profusão de informação a que todos somos submetidos. É até engraçado ver crianças com sonhos de consumo adolescentes; só não é mais hilário por que em algumas situações isso não tem a menor graça.
Dia desses estava recordando o pouco que me vinha à mente sobre esse período de minha vida, imaginando se alguém entre os, digamos, 3 e 10 anos se comportaria assim. Moleque gordo, algo solitário, cuja única companhia constante era a imaginação. A tevê mostrava suas garras naquele início de década - 1970 - mas eu só tinha olhos para meus desenhos favoritos (a saber: Pica-pau, Pernalonga, Tom & Jerry e os sortidos da Hanna-Barbera) e Vila Sésamo, onde aprendi a ler aos 4 anos, junto com diversos futuros colegas de classe. Novelas? Odiava, principalmente as de época (quando minha mãe e minha avó se acotovelavam para ver A Moreninha eu fugia para a rua ou pro matagal onde hoje é a Vila Costa e Silva). Não gostava do que os outros moleques diziam e como eles agiam, por isso me refugiava em meus enredos fictícios e trilhas sonoras cantadas a plenos pulmões.
Hoje não conheço meus vizinhos (fico puto quando meus irmãos, que adquiriram o hábito de falar de tudo e de todos sem critério, começam a falar de algum senhor Fulano ou senhora Sicrano e, vendo que eu não ligo o nome à pessoa, vociferam: mas você cresceu aqui e não conhece?) e os outrora moleques hoje são estranhos que me chamam pelo nome ou pelo diminutivo familiar - Nei, pra quem não sabe. Alguns deles já morreram graças a algo que só me dei conta que existia aos meus 15 anos: as drogas.
Pode parecer estranho, mas a tal curiosidade infantil e adolescente no que diz respeito a substâncias ilícitas não me atingiu. Meu mundo era o que os jornais velhos que lia (censurados, vim saber anos mais tarde), os livros que minhas professoras me davam e os bordões dos desenhos que assistia me mostravam, e eu interpretava esse mundo limitado e pueril no transe meditativo de minha fértil imaginação.
Bem, eu já conhecia o álcool, graças aos espetáculos que meu pai dava quando bebia e ao litro de vinho licoroso que fui obrigado a beber aos cinco anos, só pra meu pai dizer que "tinha um filho macho e que já sabia ler". Hoje eu e as bebidas alcoólicas mantemos uma relação distante (bem distante, aliás. Costumo dizer que se as cervejarias dependessem de mim, estariam fritas em banha de porco). Cigarros, claro, embora eu não achasse que era uma droga, graças a glamourização (ou seria glamurização?) que as propagandas propagavam (acreditem, seres politicamente corretos, veiculavam propaganda de cigarros - principalmente Arizona, Charm e Chanceller - nos intervalos dos desenhos). Lógico que após experimentar a coisa aos 15 anos e ficar com gosto de esgoto em minha boca por dois dias, me perguntei qual a real utilidade em inalar essa porcaria.
Mas as outras drogas? Só fui conhecer a maconha aos 15, ao ver alguns daqueles estranhos que me chamavam pelo nome fumando um troço enrolado em papel de pão, exalando um odor estranhíssimo e me convidando pra "dar um tapinha". Ao dizer que não fumava, eles retrucaram: "mas esse você vai fumar e se amarrar". Como vi que todos riam sem motivo aparente de qualquer coisa, resolvi sair dali e nem sequer dar o tal tapinha.
Quando completei a maioridade, em 1987, ouvi pela primeira vez a palavra "overdose", logo quando descobri o rock'n'roll e a black music (só pra reforçar, cresci ouvindo rádio AM, Zé Bettio e música brega). Mergulhei na única fonte de informação confiável na era pré-Internet (não que a grande rede seja confiável, mas...): a biblioteca. Pelo menos deu pra ver o jeitão dos tais piscotrópicos.
Infelizmente nessa época muitos ligavam as drogas a uma atitude contestadora, uma espécie de Woodstock com atraso de décadas. Muitas pessoas usavam Aldous Huxley como desculpa, dizendo que maconha, cocaína e afins abriam as portas da percepção (que original, né?) e afirmavam que caras como eram um bando de idiotas. Maldita era yuppie!
Usavam os mais variados exemplos de como as drogas facilitavam o processo criativo: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Alan Moore, até Shakeaspeare. Não sei bem porquê ninguém mencionava que esses produtos eram ilegais, causavam prisões, mortes, danos físicos e psicológicos...
Bem, estou muito bem assim. Sou careta, minha imaginação é comum (agora dá pra entender de onde o senhor Moore tirou inspiração pra escrever algo tão torturante e voraz quanto Watchmen. Haxixe causa delírios psicóticos!) e continuo a desconhecer os tão falados pontos de tráfico de meu bairro. Mas às vezes penso: se eu tivesse sucumbido ao canto da sereia psicodélica, estaria eu preparando bananada de goiaba como o Gil?
(Republicação vinda de meu antigo e curto blog, Lentes Adiposas)
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