1.11.06

Meu pai

“Nei, vai chamar seu pai, o almoço tá pronto”. Esse pedido feito pela minha mãe era comum na minha infância, pois nós sabíamos onde ele estava: no armazém do seu Gentil, tomando uns goles de cachaça. Calçava meus chinelos e ia levantando poeira e cantarolando.
Num desses dias, com cinco anos completos – adiantava-se o mês de setembro – me aproximei da venda, tirei os chinelos para entrar (uma das babaquices típicas desse que vos tecla) e me dirigi a ele, que lia meu pensamento e falava, com sua voz grave: “já vou”. Ato contínuo, ele se virou para um de seus companheiros de bebida e vaticinou, me abraçando (coisa incomum, já que normalmente nem a mão ele me dava): “esse é meu filho! Ele já sabe ler, gente!”. Morto de vergonha, olhando pro piso avermelhado, eu nada dizia enquanto ele punha em minhas mãos a edição do jornal O Estado de S. Paulo do dia e me disse para ler o corpo da manchete, cujo teor não me lembro.
No final da leitura houve um silêncio incrédulo, seguido de tapas doídos em minhas costas e exclamações exageradas. No final, meu pai pede um litro de vinho daqueles rosados e desafia: “quer ver como meu filhão é macho?”, enquanto tirava a rolha e despejava parte do conteúdo em um copo americano.
Meu pai pegou o copo cheio, colocou em minha mão e disse, seco: “bebe”. Com medo que ele me desse um tapa levei a borda até minha boca. Ao experimentar, uma surpresa: era doce. Dulcíssimo. O sabor da uva embebida em calda de açúcar – foi o que me pareceu – envolveu minha língua e meu palato e sorvi de um só gole. Uma exclamação geral de aprovação, seguido de mais um abraço e mais vinho despejado no copo. Eu, que só estava feliz em ter agradado meu pai, não me fiz de rogado e repeti a talagada.
Entre palavras de incentivo e risadas acabei bebendo o litro inteiro. Falei pelos cotovelos – pelo menos para meus padrões -, ria de delclarações simples e o doce da bebida me agradou, inclusive durante meu primeiro arroto público. Ao ver o fim da garrafa ele pediu ao Gentil pra marcar na caderneta e finalmente decidiu ir almoçar.
Ao dar meu primeiro passo, não consegui determinar a distância entre a sola de meu pé e o chão. Meu corpo pendeu para frente, enquanto minha cabeça latejava; súbito, o mundo começou a girar e eu tentava acompanhar o novo ritmo do mundo tropeçando em meu próprio caminhar. Minhas têmporas pulavam e tudo o que eu conseguia fazer era rir e tropeçar, enquanto meu pai, consciente da piada que ele perpetrou, ria como criança.
Chegando em casa, cai-não-cai, minha mãe observou meu estado, horrorizada. Senti que seu primeiro ímpeto foi me bater, tamanho o ódio que vi nos olhos dela. Contudo, ao ver meu estado, que já havia mudado da euforia para a letargia depressiva da dor e ouvindo as gargalhadas do pai, ela entendeu e me estendeu a mão, me levando para debaixo do chuveiro. Eu gemia “eu tô bem, mãe” enquanto ela me banhava. Eu insistia em gemer “eu tô bem, mãe” enquanto ela trocava minha roupa. Quando ela me pôs em minha cama, eu vi o teto girar. Ao fechar os olhos, o mundo todo girou. Definitivamente eu não estava bem. E meu pai ria enquanto minha mãe o repreendia. “Agora ele virou homem”, sacramentou.


Aprendi a jogar pião sozinho. Quando pedi ao meu pai para ensinar, ele apenas disse “não enche”. Tentei interagir com meus vizinhos, mas eles não eram tão divertidos quanto meus amigos imaginários. Um desses estranhos sem nome me ensinou as regras do jogo de bola de gude (burquinha, para nós) e de vez em quando eu me pegava entre alguns meninos e meninas com uma bolinha entre meus dedos.
Num sábado dos meus seis anos meu pai pegou sua caixa de ferramentas e começou a confeccionar algo com madeira; ele tinha um talento para carpintaria nato. Um começo de curiosidade nasceu em mim, mas logo me lembrei como eu era sempre rechaçado, por isso me contive e me ative a brincar num monte de areia com alguns bonequinhos que vinham nos doces de banana.
No dia seguinte, manhãzinha, após o café (e naquele dia havia pão caseiro!) meu pai me abordou com um sorriso e me disse: “toma, fiz pra você”. E o que ele fez foi um carretel de madeira com uma alavanca, as bordas em formato de estrela com 100 metros de linha de pipa, além de uma pipa vermelha de armação de bambu cuidadosamente trabalhada. Abestalhado, agradeci enquanto ele se afastava, indo para o armazém. Brinquei longas 4 horas, observando embevecido a dança da pipa no ar. Meus amigos imaginários foram solenemente esquecidos naquele dia.


No dia 31 de maio de 1990 eu, meus irmãos e meu tio estávamos em uma sala indefinida, sentados em um retângulo de concreto, dentro do hospital Augusto de Oliveira Camargo. Na nossa frente um corpo envolto em bandagens. Um funcionário chegou e pediu que nos aproximássemos. Perto, ele retirou as bandagens que encobriam o rosto. Era meu pai, sereno como se estivesse dormindo, mas com o rosto sem cor.
O choro veio sem convite. Entre lágrimas me lembrei da última semana de vida dele. Uma rotina triste e vergonhosa: o vício da bebida acabou com o homem forte que ele tinha sido, fazendo dele um ser que se arrastava pelo chão após duas doses de cachaça. Ninguém falava nada acintosamente, só os risinhos denunciavam o que meus vizinhos pensavam enquanto eu ou um de meus irmãos o ajudava a voltar pra casa.
Por mais triste que o momento tenha sido, não consegui deixar de pensar: “a morte foi piedosa; os amigos de pinga, não”.


Segundo domingo de setembro. Passeio pela feira, pesquisando preços e observando o movimento quando um senhor judiado pelo tempo me fita firme, como se forçando o córtex cerebral em busca de uma lembrança. Retribuo o olhar esperando a abordagem, que não tarda:
“Escuta, você não é o filho do Zé Trindade?”, pergunta o homem. Não pude conter o sorriso, surpreso, e confirmei. “Caramba, você não mudou nada! E o seu pai, como está?”, retruca, entusiasmado. Ao dizer que há 16 anos ele morreu quem se surpreende é ele, desfiando as memórias. “Seu pai era fortão, trabalhador pra caramba! Que pedreiro bom ele era! A gente trabalhou junto com o Móca!”. E os sinais de exclamação não estão aí à toa.

Tenho quase 40 anos, vida própria, personalidade, ainda que fragmentada, gostos cultivados durante décadas de experiência; ainda assim, ainda sou e serei o filho do Zé Trindade.

11 comentários:

Anônimo disse...

Cuando muere alguien que nos suena, muere una parte de nosotros... De Unamuno. Que quatro horas maravilhosas!

Anônimo disse...

Que post mais legal, cara ! Gostei mesmo ! Parabéns pelo blog.

Achei seu blog através do Rafael Galvão "http://rafael.galvao.org/"


Abraços ...

Wanderley Garcia disse...

Que coisa, seu pai se foi no mesmo dia em que minha primeira irmã se casou. Nesse dia meu sobrinho já estava a caminho e é um presentão para a família.

O ciclo da vida nos une e nos separa.

Julio Cesar Corrêa disse...

Parabéns pela coragem em se expor e pela coragem em se expor e pela forma literária como o fez.
Muito bonito e comovente
gd ab

Pinheirinho disse...

cara ..
não costuma me melar com nada não .. e quando gosto do cara, demoro a dizer assim, pq as pessoas acham (e eu tbm) viadagem ...
mas meu ..
q lindo isso
sinceridade
algo pra se guardar no coração, como norte
parabéns
ja está na lista de meus preferidos, pois ler bons escritos não tem preço
ah .. e foi o rafael (ja citado aí) quem te indicou
ele tbm deve ter gostado
como a gente gosta dele lá ..
grande abraço

anouska disse...

também me emocionei. e também vim parar aqui pelo rafael galvão. queria dizer algo especial sobre o teu texto - ele bem merece - mas nada me vem além do prosaico: bonito, muito bonito mesmo. e tocante. me instigou a ler os outros. abraços.

Anônimo disse...

Lindo! Belíssimo texto! Fique com meus comovidos aplausos!

Escrevi sobre meu velho aqui: http://patriafc.blogspot.com/2006/10/educao-do-pai-ou-o-gosto-pelas-coisas.html

Ficarei feliz com sua visita e considere-se linkado.

Abraço!

Anônimo disse...

lindo, lindo.

Anônimo disse...

Sei o que é um pai que bebia. Mas nunca soube o que é um pai durão. O meu era mole feito manteiga. E tenho (mesmo tendo ele morrido) por ele o maior amor. A pinga, o rabo de galo, o conhaque vagabundo foram coisas que acabaram com a vida dele mas não lhe estragaram o caráter.
Que coisa boa lembrar, né?
Um abração.

Anônimo disse...

Maravilhoso!... e isso nao expressa tudo...

Joao Reis disse...

40 anos, vida própria, personalidade e escreve bem pra caralho !

volto depois pra ler mais.