5.12.08

Capítulo 1 - A espera

Um choro tímido, já no final do café, anuncia a presença de Cícero. "Caramba", pensa Homero, ainda em estado de choque, "ele ainda é um bebê!". Dona Lívia se levanta e vai na direção do lamento. Homero olha embevecido sua mãe caminhando, ainda digerindo tanto o pão quanto sua presença nesse recanto que deveria pertencer apenas às suas já esparsas memórias. "Ainda bem que fui um moleque calado; ninguém vai estranhar esse meu silêncio", mentaliza, quase se refugiando em seus pensamentos.

Cícero aparece no colo, olhos remelentos, fungando o choro que já não bradava mais. Dez meses, e aquele rosto sem os vincos precoces do cigarro e da bebida que ele tão bem copiou de seu Lucas, o olhar ainda vívido de inocência, as quase palavras ditas (algo como "mã, tadatabati") que deixaram dona Lívia preocupada quando, aos dois anos, ele se recusava a dizer algo inteligível. Termos como "fonoaudiólogo" passavam longe do vernáculo daquela família, mas ela pensou seriamente em "levar esse menino pro médico". O grande problema é que essas lembranças ainda não ocorreram...

Antes que sua mente fundisse, ele mastigou mais um naco de pão ("nossa, não era só uma lembrança boa. Isso é uma delícia mesmo!"), tomou o leite numa caneca que só viria a encontrar seu destino final em 2001, furada e abandonada e disse, timidamente:
"Mãe, pai, posso ir lá fora agora?". Mais um momento desconcertante: sua voz aguda, fiapo pueril que ele se esforçou para não estranhar mais do que já havia estranhado.
"Vai, filho. Cuidado com os estrepes e os pregos das madeiras que o seu pai deixou". A voz de dona Lívia sempre servia como a voz do seu Lucas, que raramente dizia algo que não fossem alguns resmungos sobre o trabalho, o Palmeiras ou alguma queixa genérica.
Homero foi lentamente, meio receoso com o que iria encontrar ao sair pela porta da cozinha. Era só o quintal, mas o quintal ainda de terra batida, o pé de banana, o pé de mexerica, o pé de laranja, a pequena e farta horta, o forno de barro onde o pão que acabara de comer foi assado. "Meu Deus, é a vó Antonia varrendo o quintal!", murmurou, horrorizado. Olhou para ela e para a casa contígua, onde ela e seu tio Dorival moravam.
"Omério, já tomou café? Vem comer um pedaço de angu, minino!". O chamado era o mesmo, o cheiro do pó levantado pela vassoura de mato igual, mas nem de longe era um dèjá vú. Cada vez mais aturdido, conseguiu balbuciar algo com as palavras "brincar" e "rua" e saiu correndo pela rua. "Cadê o asfalto? Cadê as casas? Quando vou acordar desse sonho maluco?".

Quando ele chegou onde deveria haver o Jardim Rondon, ele tropeçou em uma pedra e caiu pesadamente na grama, não sem antes torcer o pé. A dor foi imediata, e tudo o que ele disse foi o que ele sempre fala nesses momentos.
"Puta que o pariu!"
Ninguém ouviu seu palavrão de estimação. As casas do bairro ainda estão em construção e ainda havia grandes espaços vazios, com capim-gordura e carrapichos, pés de mamona e coqueiros-indaiá. Enquanto o pé lateja, vem a revelação lógica da situação. "Nos sonhos não há dor física, só a angústia. Então eu REALMENTE estou em 1977!".
O latejar perdeu a importância enquanto ele se sentava na grama e observava. O cérebro simplesmente não se permitiu funcionar, assentando-se na certeza de algo que parecia impossível. Não foi possível determinar o tempo desta prostração, mas quando ela acabou, Homero se levantou rapidamente, bateu o pó e as folhas secas de grama e começou a caminhar. Quando ele chegou à sibipiruna que foi arrancada em 1989 para a construção da praça Adélia Zocatela, parou, respirou fundo e começou a falar só, para se acostumar ao tom de sua voz.

"Ok. Isso não é um sonho, não é um episódio de Além da Imaginação, não apareceu nenhuma criatura divina, demoníaca ou extraterrestre. Vamos nos ater aos fatos: eu estava em minha cama, depois de um dia cansativo de trabalho. Era 23 de agosto de 2009, tinha acabado de completar 40 anos e sofri um ataque cardíaco. Ou pelo menos acho que foi!".
"De repente... isso. Caramba, depois de um piripaque desses, eu deveria é ter morrido, ou sofrido sequelas. Isso é loucura, mas está acontecendo. Minha mãe, meu pai e minha vó, vivos! E essa é a Acaratuba antes da industrialização e da especulação imobiliária".

Uma garça aparece voando na direção do córrego Itambé; a ave que dá nome à cidade voando parece uma pintura branca no fundo absurdamente azul. "Tá, isso não é um acesso de loucura, estou aqui, sou uma criança e mantenho minhas lembranças e vivências dos quarenta anos que ainda não vivi... minha nossa, isso tá confuso demais! É paradoxo em cima de paradoxo. Vi, cheirei minha mãe morta em 1994, meu pai tava lá, fumando aquele cigarro Continental fedorento. Minhas irmãs, ainda tão crianças. Cícero, um garoto mijão! Por que diabos isso está acontecendo?"

"Acho que se eu começar a questionar isso vou formular teorias baseadas no que sei e jamais vou saber a verdade. Tipo, tava na iminência de descobrir um puta segredo cósmico e fui reiniciado sem a formatação de meu HD... nah, Matrix demais até pra mim! Até porquê a primeira providência nessa queima de arquivo seria voltar como criança mesmo e não um adulto mentalmente formado, que poderia modificar o curso de seu próprio futuro".

"Mas que futuro? Tive um passado que agora é meu novo futuro... putz, isso é que dá ler muito gibi da Marvel. Ou será que sou como o Schwarzenegger e voltei para matar alguma Sarah Connor não especificada? Claro, com minha conhecida ferocidade para matar baratas! E essas conjecturas não estão me ajudando em nada, preciso analisar a situação de maneira mais prática e sem piadinhas gratuitas".
"Possibilidades. Isso, meu futuro agora é uma imensa possibilidade. Sei o que minha família pode se tornar, por ter vivido no, hã, meu futuro alternativo (mais Marvel? Acho que vou dar um jeito de ir aos Estados Unidos e matar John Byrne, Chris Claremont, Len Wein e Jim Shooter... ah, não, sem digressões!). Ok, onde eu tava? Ah! As possibilidades. Tudo bem que cronologicamente não tenho idade nem pra ir a um banco pagar um boleto... mas posso me tornar um prodígio!".

"É, seu burro, e chamar a atenção de todo mundo. Acaratuba ainda é um fim de mundo qualquer agora mas mesmo sem internet um moleque com trejeitos e fala de adulto chamaria toda a atenção do mundo e a primeira coisa que eu faria como viajante temporal psíquico - uia, que frase legal. Tonta, mas legal - seria adiantar em 30 anos o estilo Luciana Gimenez de fazer tevê. Se vou ser responsável por mudanças, que sejam mudanças mais íntimas".

"Posso vir a aprender muito mais do que hoje sei de hoje em diante, mas não sou nehuma sumidade; não vou 'criar' a tecnologia que conheço, mas vou absorver melhor o que for criado por já a conhecer. Mas que papo doido! Não, nada de pensar nessa escala planetária. Vou me ater a mudar o que está ao meu redor. Se eu conseguir que a mãe não seja morta por aquele..."

Homero pára de falar, os olhos marejam. Agora não é mais uma lembrança fugidia que o faz chorar; é a presença física de alguém que ele pensava não ser mais possível ver. Ele não se contém mais e chora como há anos não fazia.

"Ok. É isso. Vou alterar um futuro específico. O meu. E de todos os que me rodeiam. Não vivia reclamando sobre o rumo que dei à minha vida? Minha vida deu um reboot e posso começar de novo. Essa é a chance que qualquer um gostaria de ter, pois eu vou tentar não cometer as mesmas cagadas, não ter as mesmas atitudes covardes e nem pensar muito sobre meus atos. Se eu mudar algo do futuro que me lembro, que se foda; deveriam ter retirado meu cérebro para que isso não acontecesse".

"É óbvio que vou ter cuidado com que vou dizer. Não posso bancar o vidente, nem o super inteligente. Só quero ter a chance de não ter que chegar aos 40 de novo (se eu conseguir, né?) me achando um bosta. E a minha primeira atitude vai ser tomada amanhã. É o primeiro dia de aula, né? Vou reencontrar a professora Sandra, meus colegas cujos nomes não lembro e não mostrar tanta auto-suficiência".
Ele sorri, olha a árvore majestosa e volta à ainda nova velha rotina.

"Tchau, filho. Se comporta, não faz bagunça e estuda".
Dona Lívia acena e deixa Homero defronte ao portão da Escola Estadual de Primeiro Grau Antonia Wessel de Lima. "Que coisa, agora vou ter que voltar a usar a sigla E.E.P.G! Pelo menos escapei do construtivismo", pensa, com um leve sorriso nos lábios ao se dirigir à sala de aula. Dessa vez com calma, observando, cheirando, ouvindo. Enquanto seus pares organizavam a algazarra em pequenos e barulhentos grupos, ele preferiu sentar-se na quarta carteira da segunda fileira da janela para a porta. "Isso faço questão de manter como antes", murmurou, solene.

Toca o sinal. Uma por uma, as outras crianças entram; mal se dão conta da presença de Homero, enquanto ele faz um portfólio mental de rostos e tons de voz. "Dessa vez não vou deixar ninguém me surpreender no futuro, dizendo meu nome enquanto eu sequer sabia quem era o fiadaputa!". Um jovial e quase cantado "bom dia" foi dito ainda à porta, enquanto dona Sandra entra e dispõe os livros e pastas na mesa dela. Ele até tenta prestar atenção no que ela diz, mas seus pensamentos são mais vorazes. Visualizando a sala, reconhece Mariana, a loirinha que o acompanhava até sua casa, falando pelos cotovelos, que já o olha com um misto de curiosidade e fascinação. "Vou cortar as asinhas dela antes que elas cresçam", ordenou a si mesmo mentalmente.

Tudo foi rápido demais. Alguns nomes para se juntar aos rostos e vozes (Joaquim, Ricardo, Ana, Cristina, as inúmeras Marias Aparecidas e os incontáveis Josés), o recreio ("certo, certo, não ria, você É uma criança e pode dizer isso!") com um pãozinho recheado com carne moída e um kisuco de sabor incerto - "acho que é abacaxi, mas tem um toque de morango, que esquisito!" - as primeiras letras ditas à exaustão. "Nossa, aprender as vogais é tão complicado assim?".

Das sete da manhã até às 10, religiosamente. O sinal toca de novo e Homero percebe que precisa prestar mais atenção a essas passagens de tempo. "Tudo bem, ainda tenho 179 dias de aula para me adaptar...". Seus pensamentos foram interrompidos por Mariana.
"Oi."
"Oi", responde Homero.
"Vamos embora? Voce é o menino que mora perto da dona Idelice, né?"
"Sou sim, meu nome é Homero, e o seu?"
"Mariana. Você gostou da aula? A professora é bacana, né? Ela me ensinou como desenhar o U, você quer ver como? É assim, ó..."
"Legal...". Ela queria se afastar da escola junto com ele, mas Homero simplesmente ficou parado.
"Você não vem?"
"Não. Vou esperar minha mãe."
"Ah, mas a gente mora pertinho. Vamo!"
"Não, obrigado. Ela disse que vinha. Vou ficar aqui e esperar. Até amanhã".
Aparentemente contrariada, Mariana não respondeu. Foi pisando duro até sumir na esquina. Homero simplesmente ficou.
Pouco tempo depois, na mesma esquina, dona Lívia veio. Usando uma calça jeans e uma blusa vinho, andando elegante e calma. Homero não pôde conter o embevecimento e o largo sorriso. Quase foi na direção dela, mas foi contido pelo seu "não" mental.
"Oi, filho, demorei?"
"Não, mãe. Tava aqui te esperando".
"Eu sei. Dá aqui seu material. Gostou da escola?"
"Muito! Nunva vi tanta criança junta. E a professora é legal. Você sabe como desenha o U?"
Não, ele não seria mais esperto e independente. Seria apenas um filho esperando a mãe no fim do dia de aula. "E isso é só o começo", pensou enquanto ouvia o cardápio do almoço.

Um comentário:

Anônimo disse...

Posso perceber claramente seu humor sarcástico em cada linha e nem poderia deixar de ser. Você é assim (ainda bem!). As tiradas com o Universo Marvel e a referência a Exterminador do Futuro foram demais. Vou esperar a sequência desta história pueril, mas sentimental.
P.S: Deixe de ser modesto. Seu talento para a prosa é inegável.