Um hábito saudável: caminhar. Quando tudo parece modorrento, quando a voz dos parentes tornam-se chiados de estática, nada como a rua. Rever um pedaço que, por pura falta de interesse, não ia há mais de cinco anos (e olha que moro praticamente do lado): o vão livre no meio das CECAP’s.
Vão livre há cinco anos. Agora, além do posto de saúde e da escola estadual, temos algumas praças, campos de areia, uma igreja – isso mesmo, uma igreja! – construída parte em alvenaria, parte com toras de (creio eu) eucalipto, com vitrais até bonitos. Foi estranho ver um lugar desconhecido tão próximo de mim.
Reencontro um de meus colegas de meu antigo emprego. Engraçado como todos que encontrei dizem basicamente a mesma coisa – e aqui peço licença para pincelar minha origem caipira, citando uma famosa canção de Tião Carreiro e Pardinho: a coisa tá feia, a coisa tá preta/ quem não for filho de Deus, tá na unha do capeta. Depois de minha saída, uma onda de demissões assolou a empresa, e todos citam a ingerência do senhor diretor industrial. Se serve como consolo ao meu atual status operacional, pulei fora no momento exato.
Se você quiser saber como a chuva tem feito falta aqui na cidade, é só passear perto da Filtros Mann, onde há um enorme descampado e verificar a poeira que um eventual carro levanta quando passa. Ou nem isso; basta pisar e ver o pó levantar. Essa cidade precisa de um pouco de água lá de cima. Assim meu cérebro não brinca comigo, me fazendo pensar asneira.
Já pararam para pensar quanta história há num punhado de poeira? Não se trata apenas partículas de terra e areia; temos de coisas tão aparentemente bucólicas, como pólen e cascas de árvore quanto restos mortais diversos: ácaros, ossos decompostos, pêlos e pele. Talvez ao espanarmos o pó, além dos habituais elogios a nossa higiene, estejamos brincando com memórias de passos dados, amores consumados, lágrimas amargas ou de alívio. As nuvens de poeira parecem clamar "lembrem-se de nós". Pena que elas sujem tanto!
Será que o pó que somos obrigados a respirar nos causa o famoso dejá vù? Sim, faz sentido. Quem sabe ao aspirar, também não sejamos impregnados de fragmentos de lembranças de quem já se foi? Pássaros que migram de verão em verão, homens e mulheres que ao partirem para o sono eterno lembram de momentos felizes em um determinado lugar.
Nota mental: nunca mais comer cogumelos que nascem em estrume de vaca!
(Texto escrito em 26/09/2003)
Foram vários os motivos, mas há muito não dedico meu tempo para assistir um filme da Sessão da Tarde. Quando eu trabalhava, ou eram as horas extras ou meu sono vespertino. Agora que estou ocioso não o fazia por desinteresse; preferia minhas caminhadas pela cidade ou o vazio de minha planilha de texto no PC. Hoje, contudo, choveu, esfriou e a Globo me deu um baita presente. Um filme que por razões que não consigo verbalizar adoro de paixão: Feitiço do tempo (no original, Groundhog day).
No filme, um meteorologista de tevê arrogante e presunçoso, interpretado com a competência habitual por Bill Murray, é escalado pela quarta vez para cobrir o Dia da Marmota numa cidadezinha perto de Pittsburgh. É uma daquelas idiotices de americano: no dia 2 de fevereiro uns gajos esperam que uma marmota olhe para sua própria sombra e vaticine, ou não, o fim da temporada de nevascas. Com ele vão o indefectível cameraman(esqueci o nome do ator) e uma produtora novata, vivida por Andie MacDowell – adoro essa guria.
O tal repórter tripudia os festejos e não vê a hora de sair daquela "cidade de caipiras" mas a nevasca que, segundo sua previsão, só chegaria no dia seguinte, assola a tarde e os impede de continuar a volta a Pittsburgh. Não tendo saída, resolvem pernoitar na cidade da marmota.
Só que ele descobre, graças a uma misteriosa série de "coincidências", que ele está preso não só na cidade, mas no dia 2 de fevereiro. Isso mesmo: o dia repete-se indefinidamente e ele não sabe a princípio como agir. No começo ele tenta se aproveitar da ausência de conseqüências de seus atos no futuro, já que o futuro não chegava. Mas ele descobre a paixão, a inevitabilidade, e a capacidade que temos em jogar fora oportunidades que a vida nos oferece.
Minha rotina sempre me fez lembrar desse filme com carinho. Não seria essa rotina um Dia da Marmota eterno também? Sabe, de certa forma sabemos o que vai nos acontecer, haja vista que, com as exceções de praxe (pois a vida é dinâmica apesar de nossa mesmice – e por favor, não interpretem isso como um manifesto antimonotonia ou algo assim; a vida dos seres humanos normais é sempre mais do mesmo, não adianta quantos bungee jumps façamos), da alvorada ao crepúsculo fazemos basicamente a mesma coisa.
O que diferencia um dia do outro é o que apreendemos. Podemos nos afundar numa vida regada a emoções baratas (como o Murray no início do filme) ou tentar fazer algo para nos aprimorar, nem que seja tratar melhor os seres humanos ao nosso redor (não cheguemos ao extremo do personagem do filme, que aprendeu tocar piano, esculpir gelo, francês e poesia francesa e mecânica no dia interminável, mas que pelo menos saibamos aprender). Um dia como outro qualquer sempre tem algo escondido debaixo da sombra das árvores.
Hoje aprendi mais uma coisa. É muito bom ter amigos que realmente acrescentem conhecimento e amor em nossa vida, como com o y, que me presenteou com uma descoberta intelectual de valor inestimável (os artigos da guria – desculpem-me, esqueci o nome dela – na revista TPM).
É muito bom sorrir sob a chuva.
(Texto escrito em 17/09/2003. Edições autorizadas pelo autor. Um dia explico o porquê de tantas edições)
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