25.2.07

As colinas estão mortas

Meu irmão caçula e eu, sempre que engatamos uma conversa, parecemos membros de uma mesa redonda de futebol, só que nossos assuntos não são apenas de natureza ludopédica (torcemos por times rivais – eu, Palmeiras; ele, Corinthians – e quando falamos disso somos diplomáticos). De quadrinhos e filmes a política e meio ambiente, pouca coisa escapa de nossos comentários surreais e nada espertos, mas sempre divertidos.

Num sábado de dezembro estávamos ouvindo Marvin Gaye. Tenho uma coletânea bacana e é um prazer ouvir gemas soul nas noites solitárias ou naquelas em que há uma agradável companhia. A sexta faixa do CD é a nossa preferida: “Let’s get it on”, a música de transa por excelência, e quando estávamos praticando a nobre arte do embromation ele diz: “sei que não tem nada a ver, mas essa é a música que eu gostaria que tocasse no meu funeral”.

Esse é um assunto recorrente entre meus irmãos e eu. Fomos a poucos funerais (não sou do tipo que se “diverte” vendo caixões e seus respectivos defuntos) e a dor é infelizmente recorrente. O que falta às vezes é uma trilha sonora para ilustrar em forma de canção o que o féretro (essa palavra dá um ar tão aristocrático a um cadáver, né?) foi enquanto respirou. Em meu enterro não haverá choro e ranger de dentes; haverá alguns pés a acompanhar a batida e vozes em uníssono, cabeças pendendo para a esquerda e para a direita. Será que permitem DJ’s em velórios?

Se permitirem no meu, a lista de músicas (em Português, playlist) será um misto brega-pop que ouvi e ouço deliberada ou acidentalmente. A primeira música foi a mais difícil de escolher, por não poder ser muito alegre nem muito lúgubre. A escolha recaiu sobre a óbvia, porém bela, “In my life”, dos Beatles. O que posso fazer se Lennon e McCartney resumiram em algumas estrofes algumas universalidades?

Logo depois, “A lua e eu”, na voz de Cassiano. Uma antevisão do futuro no início da canção: “mais um ano se passou, e nem sequer ouvir falar meu nome...”. Para emendar, “Romaria” de Renato Teixeira, cantada, obviamente, por Elis Regina. Sonho e pó. Isso só para que ninguém se esqueça, pelo menos por enquanto, que estão num velório. Depois, claro, algumas lembranças mais leves e até dançantes.

Primeiro um toque de ironia: “What have I done to deserve this?” dos Pet Shop Boys. Os primeiros pezinhos iriam bater. Depois, “Um pro outro”, Lulu Santos. A gente tinha mesmo tanta razão pra seguir. Com os ânimos um pouco mais leves a próxima música seria “XV anos (Vivendo e não aprendendo)” do Ira, seguida de “Young at heart” por Francis Albert Sinatra e “Na estrada” por Marisa Monte. Nesse momento, espero, serei deixado só enquanto pequenos círculos de pessoas são formados, uns discutindo a efemeridade da vida, outros lembrando fatos corriqueiros, alguns fofocando, se reencontrando. A única diferença entre um velório tradicional e o meu, no futuro, será o som ambiente.

Nesse momento tocaria algumas coisinhas calmas, tipo composições do Burt Bacharat cantadas por Dionne Warwick ou, pra ser mais legal (cool, em Português. Se bem que soa tão cacófato!), Belle & Sebastian. No meio da seleção lounge (talvez no meio de “I say a little prayer” ou “Hoping, praying, wishing”) os vivos iriam “beber o morto”. A garrafa de café seria atacada numa ordem reverente. É a hora de “Feel”, do Robbie Williams. Ouvi numa rádio que essa música foi a campeã de execução em elegias na Inglaterra. Faz sentido: “eu quero contatar os vivos”.

Como tenho um lado transgressor bem pequeno, não chutaria o balde a ponto de organizar uma rave, mas é claro que rolaria um drum’n’bass! Nada muito pesado, apenas um pouco de Everything but the Girl, fase “Temperamental”. Depois de muitos pescoços exercitados, a hora do adeus. E só pra continuar com a voz da Tracey Thorne, minha eterna favorita, “Come on home”.

No curto caminho, enquanto eu sou convocado a voltar pra casa – ora, todo dia é como o Natal; frio e sem nada para fazer – alguns poderão chorar, mas muitos sequer exibirão expressão digna de nota. O DJ, esperto como ele só, emenda “Goodbye” do Air Supply. Não é preciso ser chique numa hora dessas.

O fim. Todos se afastam lentamente num silêncio quase meditativo. Quando a distância for segura, a última canção. “Time after time”. Desde quando foi lançada, ela me pareceu apropriada para uma despedida. O clipe ajudou a imprimir isso, também.

Será o meu fim, mas não O fim. No dia seguinte, um novo recomeço. O sol ou a chuva. Os passos ou as rodas. As covinhas ou o sal. E ao raiar da aurora (não é à toa que esse fenômeno transmutou-se em nome de mulher. Bela palavra!) uma música poderia pulsar com a vida, como sangue.

Talvez esta.

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