Em 1995, quando ainda trabalhava em uma empresa de microfusão – uma espécie de fundição metida a besta – e ainda suportava tanto o calor quanto a densidade excessiva das peças que jateava (para explicar melhor: as peças eram fundidas em uma “árvore” feita de uma espécie de argamassa calcária que depois era retirada num grande jato de granalha de ferro que eu operava), um representante de uma livraria qualquer estava vendendo dicionários, almanaques e livros em papel pulp. Como os funcionários poderiam parcelar as compras e ter o valor das parcelas descontadas do holerite, resolvi comprar alguns livros.
Comprei um dicionário Inglês-Portugês/Português-Inglês Michaelis, uma de minhas pérolas, um certo dicionário sei-lá-o-quê da Língua Portuguesa, decepcionante, graças ao ranço fundamentalista cristão que permeia os verbetes mal explicados e excessivamente curtos e uma coleção de livros da editora Record chamada “Biblioteca Moderna”. Apesar do papel ser pulp – uma tentativa louvável de popularização dos livros morta pelo esnobismo insensato de certos setores da população (imagina, livro sem papel couchè!) – o conteúdo era digno de aplausos. Obras de Machado de Assis, Graham Greene, John Steinbeck, Jorge Amado. Porém, graças ao excesso de horas extras ao qual me submeti, meu corpo não suportou a carga e pediu arrego, inclusive intelectual.
Deixei os livros na casa de minha irmã e me esqueci deles por 11 anos. Num dia chuvoso estava relembrando a infância com minha irmã entre bolinhos e chá quando vi os livros um ao lado do outro, enfileirados cuidadosamente dentro do que deveria ser uma cristaleira. Surpreso, pedi para vê-los e ao abrir o móvel, o odor de biblioteca pública quase me fez sentar num banquinho em frente a uma grande mesa de mogno e folhear a enciclopédia em busca de informações sobre as mitocôndrias. Refeito das lembranças quase oníricas resolvo ler um deles e escolho o que eu menos conhecia: “O perfume” de Patrick Süsskind.
O antes devorador de páginas transformou-se num quase degustador. Se no passado lia três livros por semana, hoje, talvez pela idade, talvez pela ausência de lugares silenciosos – lia em lugares hoje impensáveis, como a praça ao lado do cemitério, hoje uma espécie de confraria de jogadores de peteca e skatistas amadores, ou em uma sombra gramada qualquer no parque ecológico, palco de carros com equipamentos de som mais caros que o próprio veículo – não consigo ler mais de 20 páginas por sentada, o que, no frigir dos ovos, melhora muito a compreensão do que é lido.
E foi assim, lentamente, que a trama me conquistou. O protagonista, Jean-Baptiste Grenouille, não é nada mais além de fascinante. Um homem que não se relaciona com o mundo, apenas com seus odores. Dentro dessa percepção até privilegiada, mas erroneamente exclusiva, ele almejava criar um cheiro que causasse amor incondicional a quem o cheirasse. Uma trama policial – afinal, Grenouille é um assassino em série (em Português, serial killer) – inserida em uma França cruel e fedorenta, alvo de algumas pouco sutis críticas ao status quo.
Um de meus gurus, Fernando, disse que o livro é uma metáfora sobre a manipulação. Citando Annie Lennox, quem sou eu para discordar? Vi algo mais, contudo: inadequação. O fato dele não exalar nenhum aroma próprio e precisar “criar” determinados odores para ser notado (brilhante a descrição da criação do primeiro “cheiro humano”. Fezes e queijo podre? Sensacional!) exibe sua exclusão. Grenouille se dá conta de sua genialidade e não a usa como fator de agregação e sim de conquista. Ele vê o ser humano, em última análise, apenas como matéria-prima. Paradoxalmente ele quer o aroma do amor; ele quer o amor. Mas o que ele fará com tal sentimento, já que ele é “um carrapato, encapsulado em si”? Ele consegue a manipulação suprema porém não é capaz de suportar os, digamos, efeitos colaterais.
O final do livro, e conseqüentemente do personagem, é impecável e adequado. Por mais que tenha nascido entre os seres humanos ele não consegue sentir nada humano. Tudo apenas serve a alguma coisa, como objetos. Não há temor, não há amor, não há planos, nem sequer o cheiro natural de Grenouille. O que restou foi alcançado, facilmente até, e a realização do “cheiro de amor” (desculpe-me por lembrar-lhes da famigerada banda) não serviu para nada pois ele não desenvolveu humanidade. Reduzir os sentimentos ao odor que eles exalam é patinar num imenso vazio, onde a única alternativa sensata é morrer. O amor não nos serve se não sabemos o que fazer com ele.
Há tempos não me divertia tanto com um livro. Para ser mais exato, desde 2003, quando li duas obras de fino quilate: “O homem bicentenário” de Isaac Asimov (humanidade e mortalidade dissecadas por um robô) e “O Barão de Porto Alegre”, de Fernando Dibe (redenção, morte e vida na capital gaúcha). Maldisse minha preguiça de outrora e me comprometi com o senhor Steinbeck, concupiscente como um coelho e gentil feito o diabo. Só espero que o fim do livro não me inspire outra “crítica literária” canhestra. Mas eu duvido.
Um comentário:
Boa crítica Já viu o filme? Vai gostar,penso Espera-se mais críticas E leia, leia sempre
P0r exemplo Moby Dick ,As Vinhas da Ira,Memorial do Covento ,Tornar-se Pessoa, Todo o Mundo.Tudo de bom!
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