Foi a semana das “primeiras vezes”. Na noite de domingo, 18 de fevereiro, estava dentro do carro do Álvaro, ouvindo o som dos pneus sob as pedras – Janio disse que eram fragmentos de basalto – e olhando freneticamente as casas de madeira. Numa delas o portão se abre e entramos. É uma viagem pela história; 50 anos, firme e saudosa dos filhos que brincaram, dos cafés da manhã tardios e dos preparativos para a praia.
A casa fica na cidade de Imbé-RS, que já fez parte de Tramandaí antes da emancipação. Na entrada da cidade há uma imagem estilizada de um boto, que, segundo Janio me disse, guiam os pescadores aos cardumes de sardinha. Desenhei uma imagem mental pífia, nocauteada pela visão de homens com água até a cintura com varas, tarrafas e um instrumento estranho nas mãos pescando no rio Tramandaí. Mas voltemos a casa.
Rapidamente fui acomodado em um quarto. A mochila foi depositada no chão e minha voz nos ouvidos dos meus dois anfitriões. É agradável conversar com pessoas inteligentes e bem humoradas e isso fez com que o cansaço da viagem fosse simplesmente esquecido. Fui convidado a fazer uma pequena caminhada por Tramandaí na noite quente, porém agradável. Atravessamos a ponte sobre o rio, ainda com pescadores. Pela arquitetura do entorno da ponte, tudo foi pensado para a acomodação dos pescadores; passagens ao lado da ponte, mirantes na beira do rio. As curvas sinuosas das redes jogadas com precisão pelos pescadores dançam até caírem em harmonia no espelho d’água.
No que me pareceu a principal avenida de Tramandaí, a multidão fervia. Fantasias, música alta e animação. O tal carnaval. Desviando de transeuntes e de jatos de espuma comprimida de foliões muito empolgados, observávamos, eu e Janio, todo aquele frêmito com olhos quase antropológicos. Ele conseguia diferenciar os sotaques gaúcho e catarinense com uma facilidade que só o hábito explica, além de iluminar alguns aspectos obscuros aos olhos de um paulista caipira dos “usos e costumes” daquele lugar.
Na volta, alta madrugada, um boa-noite e os preparativos para desmaiar. Me dirijo ao quarto que por três dias será meu. Pela primeira vez tive um quarto “inviolável”, com uma porta que o separa das áreas comuns. Meus quartos ou eram comunitários (já dormi com irmãos, tios, avós, primos e primas... mas cada um em sua cama, catre ou colchonete, seres maldosos!) ou era parte do caminho entre cômodos, como hoje. Quando fechei a porta, respirei fundo essa sensação de privacidade inédita. E dormi um de meus sonos mais profundos e revigorantes.
Ao abrir os olhos, não me senti estranho. Eu, bicho do mato, antes tão envergonhado em ficar perto de qualquer pessoa, estava à vontade naquela madrugada. Madrugada, sim; acordar às 6:45 em pleno gozo de minha folga é acordar com as galinhas, embora não houvesse nenhum galináceo por perto. Meus anfitriões dormiam o sono dos justos e caminhei calmamente pela casa, observando os detalhes que fazem de uma edificação um lar, ainda que provisório. A luminária colorida, as janelas que se abriam graças à habilidade do dono – pequenos macetes comuns. Ou você vai mentir para mim, dizendo que não dá três tapinhas para destravar algo ou coisa parecida em sua casa? – e o ceder do piso de madeira perto de uma mesinha; me sentia como Godzilla tremendo Tóquio a cada passada. Na cozinha, lembranças de uma época distante em reproduções de cartazes de cinema e propagandas. De repente baixa em mim a Maria-Lavadeira e decido ir ao tanque – imaginando que haja um tanque no quintal.
Flores vermelhas e um céu meio azul, meio cinza me recepcionam. O ar está leve, o silêncio é acolhedor. Minhas roupas sujas me esperam. Quando o sabão e a água formam a espuma, minha garganta dá voz à minha Rádio Neural. Me senti tão à vontade que me esqueci onde estava. Sorte que meus anfitriões são muito pacientes e amigos.
Por falar neles, eles sim estavam com o espírito da folga: acordaram depois das 9, muito relaxados e iniciaram a liturgia da manhã: aquecer o leite, arrumar a mesa com um jogo americano amarelo, xícaras, facas e colheres, dispor os acepipes matinais. Aqueles movimentos me fascinaram; pela primeira vez eu fazia parte de um ritual “comercial de margarina”.
Como se não bastasse, experimentei (e gostei muito!) uma iguaria cuja fama a precedia, porém não existe acima do Trópico de Capricórnio: a cuca. Estava aqui tentando descrevê-la ao meu paladar paulista, fazendo alguma analogia e o melhor que consegui fazer é comparar a massa a um pão-de-ló mais pra pão do que pra ló (não me pergunte o que isso significa, por favor), coberta com uma... farofa de açúcar, ou algo assim e recheada com delícias calóricas. Abacaxi, coco e mu-mu. Aí você, que não é gaúcho, me pergunta: o que cazzo é mu-mu? Pois essa definição de doce de leite sofre da mesma contaminação que nos faz chamar lâmina de barbear de Gillette e esponja de lã de aço de Bom Bril, entendeu? Achei uma graça.
O tempo não queria colaborar com meu primeiro encontro com o mar, mas meus amigos são gaúchos e não desistem nunca. Após o café, lá fomos nós. Primeiro comprar algo decente para usar na orla, claro. Não que eu fosse usar sunga. Eu e essa peça do vestuário sofremos de incompatibilidade estética. Mas enfim...
O mar. A primeira vez veio cinza, com marolas contínuas e inquietas. O horizonte líquido era infinito, não era possível que nosso planeta tivesse o nome inadequado de Terra. O som lambe os ouvidos e acalma. Quando vi a água deslizar sobre a areia fina, a Rádio Neural me lembrou de uma canção interpretada por Ney Matogrosso: “o mar passa saborosamente a língua na areia...”. O mar é tudo o que os poetas e cronistas disseram; aliado a isso, a companhia de meu querido amigo dividindo o som das ondinhas e de nossas vozes. Chuva? Tempo “feio”? Momentos como esse transcendem picuinhas climáticas.
Andamos até onde o rio Tramandaí deságua no oceano Atlântico. A “última parte” do rio é rasa, pescadores ficam dentro dele com água até a cintura, no máximo. Um desfile de redes sendo abertas e senhores jogando uma estranha rede em formato cônico amarrada em um grosso bambu. Abordo um deles, que me explica que está “brincando de coca”. Essa tal coca é jogada inúmeras vezes e captura sardinhas (foi o único peixe que vi sendo pescado) numa quantidade pequena, o que justifica o título de brincadeira dado àquele formato de pescaria.
Pena que a chuva não nos permitiu ser mais livres. Porém minha felicidade estava a poucos palmos de distância. Numa rede, para ser mais exato. Nunca tinha me deitado em uma, por um medo besta de cair. Não me sentia confortável deixando meus pés no ar, sem que me apóiem. O dono da casa me ensinou a deitar em uma e na manhã do segundo dia em Tramandaí (tá bom, seus chatos, Imbé!) pus em prática as lições. Sentar, se soltar, deitar. O frio na barriga foi diretamente proporcional ao prazer de balançar sobre o piso. Tudo embalado por uma música do Leoni que conheci graças ao Inagaki, “Melhor pra mim”. Maldita Rádio Neural! Mais uma pra lista de músicas que me fizeram chorar!
Nos três dias de minha estada, senti algo que não consegui verbalizar ou exprimir. Na caminhada que fizemos, no descascar e fritar das cebolas para o molho do macarrão (Janio é um baita cozinheiro!), quando almoçamos ao som da “Primavera” das Quatro Estações de Vivaldi, quando assistimos “Durval Discos”, quando pacientemente meus anfitriões me ensinaram a jogar lambe-lambe, ao falarmos bobagens necessárias ao nosso bem estar, nas louças lavadas e secas, nas confissões. Eu, que gosto de precisar com retórica mais ou menos apurada tudo o que sinto, mesmo impreciso e superficial, não conseguia falar que espécie de felicidade era aquela que estava sentindo. Achei que fosse o mar e seu feitiço. Ou a morte da saudade que sentia de meus amigos.
Era algo mais. Algo novo. Mas eu estava feliz demais para analisar.
(Um adendo: quase chamo essa segunda parte de “Eu vou fazer um leilão”, graças ao ohrwurm que infectou Janio.)
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