“Tudo passa, tudo passará...”. Quarta, 21 de fevereiro, começo da tarde. A freeway, definida como “monótona” pelo meu anfitrião, nos guia na volta a Porto Alegre. O campo eólico de Osório continua hipnótico e todos nós observamos as hélices brancas. Pouco mais de hora e meia e estávamos no centro da cidade, depositando as malas no apartamento do Janio, espaçoso, convidativo e muito agradável. Não sei bem porquê, mas a Maria-Lavadeira atacou novamente e fui ao estranho tanque instalado na área de serviço. Era um retângulo; o apoio para as roupas é perpendicular ao chão. Enquanto lavava meus panos, me lembrei de Fernando, o amigo virtual que fiz e prometi conhecer pessoalmente. A ansiedade veio e se manteve.
Seria o segundo amigo à distância que eu conheceria ao vivo, e tão inteligente e espirituoso quanto Janio. Pior: Fernando é escritor e artista plástico; o tipo de pessoa que me assusta. O que posso dizer e pensar perto de um homem culto? Resolvi esfregar meu jeans com mais vigor e não sofrer por antecipação.
Mais tarde, durante o almoço, marcamos o ponto de encontro por telefone: a entrada do shopping da Rua da Praia. Mascava meu bife cuidadosamente enquanto Janio me tranqüilizava.É engraçado como eu me sinto bem perto desse menino. Podíamos ficar em silêncio, falar qualquer coisa e nunca conseguiria me sentir inadequado perto dele. Era como ficar perto de um irmão. Definitivamente o conheci no momento certo de minha vida; não sei se aproveitaria esse convívio virtual e real aos meus 25 anos, o período mais negro de minha biografia (sombrio o escambau, esse lance “politicamente correto” é uma tremenda babaquice).
Banho, roupas limpas e calor. Deus, como Porto Alegre é quente! Com desejos de boa sorte caminho até a rua da Praia, também conhecida como rua dos Andradas (não me pergunte, sou apenas um turista). Não deixo de ficar impressionado comigo mesmo: quatro anos se passaram e ainda me lembro como chegar até lá. E lá chegando espero. Curta espera; em menos de quinze minutos Fernando vem em minha direção, braços abertos e sorriso fácil. Os medos imbecis foram expulsos a porrada.
Fernando é 115% gaúcho. Além de nascido na capital, usa e abusa das famosas interjeições “bah” e “tchê” com a naturalidade com a qual digo “trem” e “cremdeuspai”. Seus 57 anos foram bem aproveitados e vividos, pois sua retórica é clara e seus olhos brilham ao falar. Enquanto tirávamos o pó da distância – afinal, era a primeira vez que conversaríamos ao vivo, sem a distância que o computador nos impunha – num papo superficial, já foi decidido: já que estávamos no centro, que fôssemos aos pontos turísticos do centro.
O principal empecilho era a semana em que estávamos. Durante o carnaval não há espaço para a chamada “vida cultural”, se a cultura não vier acompanhada de teleco-teco, balacobaco e ziriguidum. Ou seja, nada de Santander Cultural. Mas o MARGS (Museu de Arte do Rio Grande do Sul) não acompanha o rufar dos tamborins e exibia uma interessante mostra de fotos em preto-e-branco do francês Pierre Verger. Ele captou instantes brasileiros muito expressivos em meados do século passado: festas, pescas e rituais afro-brasileiros em diversos estados. As exposições permanentes mostravam esculturas, instalações e pinturas. O ponto negativo foi a ausência do ar condicionado, que, segundo uma das funcionárias, estava em manutenção.
Próxima parada: a igreja matriz. Linda, para ficar no comentário óbvio. Os vitrais, a abóbada, a nave. O cheiro de madeira é o cheiro do tempo. Fernando me conta uma passagem intransigente de um cardeal, que não cabe a mim dizer aqui, pelo menos por enquanto, e ilustra o porquê de certos pensamentos que ele tem. Nos confessionários, a lembrança de minha primeira comunhão e do padre Guedes.
Praças e estátuas. Ruas sinuosas e aclives (Fernando as chama de lombas). O Guaíba ao fundo, ao lado e em frente. Enquanto víamos o banco onde Mário Quintana e Carlos Drummond de Andrade discutiam a eternidade em bronze, Fernando decidiu que me hospedaria. Dois segundos de hesitação. Vasculhei os bolsos, as chaves do apartamento do Janio soaram. Aceitei.
O apartamento dele fica na zona sul (puxa, ninguém mora mais em casa térrea?). A acolhida foi calorosa e não demorei a me sentir bem. O quarto onde eu fiquei tinha ao longe a paisagem urbana que um dia teve o Guaíba no horizonte. Na janela da sala, uma sibipiruna (é uma sibipiruna mesmo, Fernando!) recebia pássaros e dava sombra. Nas paredes, os quadros a óleo, guache e outras técnicas feitas por ele, inclusive arte feita na planilha de texto Word. Na sala, livros, muitos livros... e um dicionário Aurélio! Pude confessar que a visita ao MARGS foi a primeira vez que visitei um museu. Estranho, já que o MASP fica a 100 km de minha cidade. Talvez eu seja um paulista sem convicção.
A rotina dos quatro dias restantes de minha semana foi quente (nas palavras de Fernando, “bah, mas que calor, tchê!”) e repleta de passeios a bairros e shoppings. Almoçamos sós ou acompanhados dos amigos dele, absolutamente simpáticos. Caminhamos pelo calçadão que margeia o estuário Guaíba, que tem o descalabro de ser mais tranqüilo do que o do parque ecológico de Indaiatuba. Visitamos a Livraria Cultura, onde quase me esqueço que sou um sujeito honesto e tive ganas de sair correndo com um Aurélio e as edições encadernadas de Sandman debaixo do braço. Dividimos o vício por café em cafeterias muito aconchegantes. Tomamos chuva. Falamos sobre tudo. Tudo.
Deixei uma de minhas “primeiras vezes” para Porto Alegre de propósito. Fomos eu e meu novo anfitrião a uma churrascaria degustar um espeto corrido – o rodízio para os cidadãos acima do Trópico de Capricórnio – e não me arrependi por ter deixado para fazer isso quase aos quarenta anos. Numa palavra: sen-sa-cio-nal! O carnívoro em mim ficou plenamente satisfeito. Só restou uma dúvida: como sou uma nulidade no que se refere a conhecimento de corte de carne – se você me disser que determinado corte é picanha, alcatra ou coxão mole, acredito – fiquei sem saber que corte de carne os gaúchos chamam de vazio...
Mas isso é uma digressão. Falava da rotina. E mais uma vez me senti dentro de um comercial de margarina. No café, retirar a fruteira e o cinzeiro em forma de camelo da mesa – Fernando deixou de fumar há cinco anos, muito bem! - e colocar a toalha; aquecer o leite, dispor pão, margarina, requeijão, café solúvel e talheres sobre a toalha; conversar sobre arte, quadrinhos, vida, morte, religião, Jack Kerouac, Manoel Carlos e o que desse na telha enquanto comíamos. No fim, retirar a mesa, enquanto a hierarquia da limpeza é determinada: ele lavava, eu enxugava; ele guardava os alimentos, eu, a louça e os talheres. E conversávamos. Sobre filhos e netos, pais e avós, amores e decepções, orgulho e esperança. Tudo. Tudo.
Um pequeno ato escancarou a alma de meu anfitrião e mais novo querido amigo. Estávamos durante a letargia após o almoço, quietos, ouvindo a Guaíba FM quando um piano introdutório o deixou em estado de alerta. Quando Elis Regina começou a cantar, ele simplesmente e apaixonadamente acompanhou nota por nota o curso da canção: “É com esse que eu vou sambar até cair no chão,/ é com esse que eu vou desabafar na multidão...”. Como não ser amigo de um homem que é fã de Elis e de Cássia Eller, um dos objetos de nossas conversas?
“Tudo passa, tudo passará...”. O sábado, dia 24, chegou; o dia de comprar as passagens de volta. Hora das despedidas; no apartamento do Janio, dois presentes: um livro e um abraço. Como um bocó, desando a chorar de saudade. Foi um choro tão genuíno que me assustou. Por conta disso pedi um favor para o Fernando: uma hora antes de minha partida, durante os preparativos, que ele tocasse o CD “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”. Foi salvador: entre “Eu sou terrível” e “Quando” eliminei as lágrimas, entrei no carro e fomos para a rodoviária.
No caminho, reiteramos a amizade com palavras corretas. Poucos silêncios, e a noite seguia calma. Porto Alegre na penumbra também é atraente, entrecortada pelos faróis dos carros e silhuetas de prédios e estátuas. Perto do estádio Beira-Rio, não pude deixar de notar como a luz deixa a construção linda.
Despedidas são tristes e promissoras ao mesmo tempo. Deixei para trás as lembranças de uma semana inigualável, um abraço paternal e o compromisso da volta. O aceno de mãos na janela e o sorriso que trocamos quase anularam o efeito Roberto Carlos. Quase. O motor do ônibus e a tagarelice dos passageiros dos bancos da frente fizeram a Rádio Neural selecionar “Encontros e despedidas” na voz de Maria Rita. “Coisa que gosto é poder partir sem ter planos, / melhor ainda é poder voltar quando quero...”.
Chuva na pista em Santa Catarina. Os restos do que foi um Vectra no acostamento. Araucárias. Hortênsias. A duplicação da pista. Não me permiti ver o tempo nem os estados passarem. Só senti que estava em São Paulo quando na última parada ouvi a Educadora FM de Campinas nos alto-falantes.
Terminal Tietê. Na ida tinha testemunhado o caos humano causado pelo feriado. Na volta, o caos causado pela chuva. Tudo aquilo que eu via no conforto de meu sofá em imagens aéreas pude testemunhar ao vivo, ainda que a uma distância segura: os pontos de alagamento, o trânsito parado. Como eu disse, a semana das “primeiras vezes”.
Dei às nuvens o prazo de hora e meia. Tempo suficiente para namorar revistas (comprá-las, nunca mais), comer um saudabilíssimo Jesus-me-chama chique e tomar um capuccino. Quando tudo aparentemente se acalmou, finalmente pedi: “uma para Indaiatuba, janela, por favor”.
Já era noite quando finalmente dei as caras em casa. Enquanto desfazia a mochila e me preparava para mais um dia no posto de saúde, tive uma epifania. Ao me ver de volta à “minha” rotina indaiatubana, descobri enfim que sentimento aparentemente inexplicável era aquele que me assolou em Tramandaí e em Porto Alegre com meus amigos. Aquela alegria por algo, aquele calor humano, aquele chorar de bobo alegre.
Pela primeira vez me senti fazendo parte de uma família.
Um comentário:
Lindo texto, meu caro. Lindíssimo.
VP
pirao.wordpress.com
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