A escola onde faço o supletivo do ensino médio é a mesma onde voto. De dois em dois anos, desde 1994, mantive um ritual de expiação, se posso chamar assim. Não via motivo para ir ao Jardim Pau Preto com a freqüência de antes de 94, por isso aproveitava o meu dever cívico para cumprir outro dever, desta vez com minhas lembranças e medos. Saindo da escola, ia até a rua Hércules Mazzoni, esquina com a rua Padre Vicente Rizzo, a duas quadras. Lá estava ela. A casa.
Agora que meus deveres estudantis me levam ao bairro, não há como escapar. A rua está próxima demais para ser ignorada. No dia 26 de março, lua crescente e céu estrelado, desci a rua Antonio Zoppi e virei à direita na rua Hércules Mazzoni. Duas quadras. A casa.
O muro cresceu meio metro e o portão agora é maior; a casa ganhou nova pintura e perdeu parte do imenso quintal. O pé de limão vinagre foi podado mas a torre de televisão continua no mesmo lugar. E nos poucos minutos que fiquei parado na calçada, memórias.
Noite de primavera de 1977, o terreno onde hoje se localiza a praça Andréa Bonachella. Entre setembro e março o espaço era ocupado por parques de diversão e circos itinerantes. Numa sexta-feira de outubro, noite, minha mãe levou meus irmãos e eu ao parque instalado durante a semana. Foi uma farra: pusemos nossas melhores roupas e nos dirigimos,excitados, às luzes coloridas. Lá, as lâmpadas vermelhas, azuis e amarelas piscavam, o burburinho parecia brotar do chão até a lua cheia e a pipoca, a maçã do amor e o cachorro quente formavam um caramelo de odor inebriante.
Na barraca das argolas, ganhei um urso de pelúcia. Minha mãe também. Minhas irmãs rodaram no chamado chapéu mexicano, a mim faltou coragem. No carrossel, aquele cavalinho azul onde minha irmã se sentava ficava eternamente com a boca aberta, enquanto eu ficava de pé, já grande demais para me divertir como se deve. Ao longe, meu nêmesis, brilhante e assustador: a roda gigante.
Protelava até o último minuto possível a terrível viagem e sempre conseguia me safar. Ou fingia que estava sonolento ou simplesmente dizia “deixa pra próxima vez, mãe”. Dessa vez não houve quem demovesse dona Benedita da idéia de me levar ao alto da roda gigante. Ingressos na mão esquerda, minha mão esquerda na mão direita dela. E nós dois naquele banco suspenso, balançando temerariamente.
O responsável pelo brinquedo acionou uma alavanca e a roda começou a girar em sentido anti-horário. Quando o banco começou a balançar e o chão ficou longe dos meus pés, todo meu corpo começou a tremer. Sem controle e vigorosamente. Tentei inutilmente controlar os espasmos, mas eles só fizeram piorar quando a roda parou conosco no ponto mais alto dela. Meus dentes batiam violentamente uns contra os outros, quase um triturador bucal. Meu cérebro paralisado só voltou a funcionar quando senti a mão de minha mãe pousar sobre a minha, que estava retesada, e ouvi a voz dela. “Calma. Eu tô aqui”.
Ao captar a voz dela, ouvi também minha respiração. A respiração milagrosamente acalmou o tremor, que deixou meus dentes em paz.. O toque transformou-se em afago e vi o sorriso dela, aberto. Pude contemplar a cidade às escuras e suas poucas lâmpadas na época. A lua sorria num ângulo de 45 graus no quarto minguante e a brisa cantava.
Dois cachorros, ambos vira-latas, determinam a posse do território com latidos veementes. O quintal parece bem cuidado, ainda de terra batida mas bem capinado. Não que antes não o fosse. Só que agora parece que crianças brincam nele freqüentemente. Cães, uma bola, um daqueles triciclos. Crianças em um quintal são sonoras, alegres e espantam os fantasmas de agouros passados. Fantasmas que ainda rondam a casa toda vez que ouso passar naquela calçada.
Eu e meus irmãos já sentimos medo antes, mas nada que se comparasse ao que passamos naquele 10 de março de 1979. Acordamos e enquanto nos preparávamos para mais um dia minha mãe dispara, aparentemente do nada: “arrumem suas coisas. Nós vamos embora”. Não questionamos, apenas obedecemos; o que aparentemente foi rápido já tinha sido planejado há algumas semanas. Quando saímos para a rua, um táxi nos esperava com o motor ligado. Eu e meus três irmãos nos acomodamos no banco de trás do Corcel amarelo e supusemos que estivéssemos fugindo de meu pai, o que foi confirmado quando minha mãe pediu que nos mantivéssemos com a cabeça baixa enquanto passávamos por ruas próximas.
O relacionamento de meus pais era, para ser educado, bastante tumultuado. O alcoolismo de meu pai e a insatisfação de minha mãe, traduzida, soube depois, nos casos extraconjugais que ela manteve, deixavam o ambiente familiar tenso. A gota d’água foi a briga em uma festa de aniversário que culminou numa cena digna da era da pedra lascada: o pai arrastando a mãe pelos cabelos no meio da noite. Depois desse fato ela começou a arquitetar a fuga.
E o táxi era apenas a primeira parte. Ele nos levou até os portões do clube de campo da associação 9 de Julho, onde outro carro nos aguardava. Uma mulher, com um perfume adocicado e pronunciado pediu para que nos sentássemos, como sempre, no banco de trás. Estava assustado; só vi o rosto inexpressivo de meus irmãos e a poeira formada pelos pneus na estrada velha Campinas – Indaiatuba.
Poucos minutos depois o carro deixou a mim e minhas roupas num lugar chamado Cidade dos Menores de Campinas. Só eu e a mãe saímos. Ela foi em direção a um homem velho e corpulento dizer algumas palavras em voz baixa. Depois de longos minutos ela veio a mim e disse: “olha, Nei, você vai ficar aqui, tá? Se comporte direitinho, obedeça ao seu Agenor e não se preocupe. Logo eu venho te ver.”. Ela me deu um abraço tímido e me deixou perto daquele estranho. Moleque besta que era, não tive coragem de perguntar como me comportar direito diante daquele povo esquisito, com nomes e comportamentos alienígenas.
A garagem continua a mesma. Ela faz parte do terreno onde a casa se localiza e mantém a mesma tinta, talvez tenha as mesmas pichações. Quase consigo ouvir a proto-banda do filho da patroa de minha mãe tentando tocar “Sunday, bloody Sunday”, geralmente com resultados desastrosos. Os sábados à tarde tinham música de qualidade duvidosa e temperos bem dosados. As lembranças nem sempre têm sabor de fel.
Aquela segunda, 19 de abril de 1994, começou estranha. Meu tio, após a carraspana que dura uma semana (outro dia explico isso), resolveu voltar ao trabalho. Eu tinha uma entrevista de emprego, nada muito promissor mas era a primeira em meses. Súbito, o homem que morava com minha mãe aparece no portão de casa e diz que ela estava em Itu. Visivelmente alterado, ele queria que meu tio o acompanhasse. Como ele não conseguiu seu intento, saiu rápida e nervosamente. A princípio não demos bola; afinal, tínhamos nossos compromissos e não era a primeira vez que ele aparecia imerso em palavras sem nexo.
Foi à tarde que percebemos que algo não estava bem. Quando ligamos para a casa onde ela trabalhava – em um orelhão, não tínhamos telefone – o telefone tocava, tocava e ninguém atendia. Como se fizéssemos parte de um dantesco vaudeville, minha irmã Andréa apareceu e disse que o sujeito que morava com minha mãe passou rapidamente na casa dela e disse que minha mãe tinha viajado com a patroa dela para São Paulo. As estórias discrepantes nos deixaram em pânico. Rumamos a pé até a casa. Eram cerca de 16 horas.
A rua Padre Vicente Rizzo começa do lado direito da igreja matriz, olhando-a de frente. Eu, Andréa e meus sobrinhos descemos, primeiro com passos vigorosos mas ainda lentos. Quando vimos ao longe policiais correndo e uma pequena multidão se aglomerando, começamos a correr. Ouvimos um estampido quando estávamos quase no portão e vimos o sujeito que morava com minha mãe ser carregado por três policiais, ensangüentado. Fui contido por mais três policiais ao tomar ciência, mesmo sem ver, do que tinha acontecido.
Minha mãe estava estirada no chão da sala, sobre o tapete. Seu pescoço foi cortado de orelha a orelha por um facão e deixou seu sangue se esvair. Não vi a cena ao vivo, mas o jornal local exibiu a foto do local do crime em preto-e-branco. Lembro de mim espantando os transeuntes e curiosos como um cão raivoso, com os olhos ardendo de tanto chorar. Lembro-me do vazio e do ódio.
E toda vez que ouso ficar parcos dois minutos na frente da casa, a memória exibe um filme de três horas, mais extras. Não é algo que eu faça com freqüência; essas lembranças são caudalosas demais até mesmo para mim, que me acho forte. Dois minutos são suficientes. Mas minha mãe merece bem mais do que lágrimas e desconforto. Merece uma música; a música que sempre toca em meu cérebro nesses momentos.
“Ressucita-me, para que a partir de hoje (...) a família se transforme.”
“E o pai, seja pelo menos o Universo. E a mãe, seja no mínimo, a Terra. A Terra.”
A Terra.
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