Não sei porque há, além de um certo respeito, medo em se falar de Deus. É como se ele fosse tão impiedoso quanto uma erupção vulcânica, tão cruel quanto um soldado na batalha. Os que se dizem tementes a ele esperam não a redenção, não a paz, mas o castigo, o flagelo. “Nascemos sob o signo do pecado de Adão e Eva, e por isso somos impuros”, bradam com um orgulho penitente alguns. O hedonismo é inapropriado; só alcançaremos a glória divina através da dor. Bem, só tenho uma coisa a dizer.
Tudo isso é uma tremenda bobagem.
Deus não é esse bicho-papão propagado por padres e pastores. Tampouco é responsável por mazelas e pragas. Deus adora fazer amigos e conversar com quem está disposto a ouvi-lo. Sem interpretações apocalípticas e receios. Pelo menos comigo é assim desde a década de 1980. Pois é, meus caros leitores, converso com Deus de vez em quando.
Quando ele me deu um senhor esporro por ter pensado em pular de um viaduto e o ouvi, entre surpreso, abismado e atento, começou ali uma amizade das mais sinceras. Conversamos sobre tudo, dialogamos (ou monologamos. Em alguns dias sou uma pedra; noutras, um disco rígido repleto de músicas) longamente ou nos prostramos em silêncio, sempre acompanhados de uma xícara de capuccino.
E não é qualquer capuccino! Quando ele proclama “espera, vou preparar o café”, acompanho Deus até a cozinha e me maravilho. De sua gibeira ele retira um lenço azul amarrado como trouxinha pelos ângulos retos do quadrado. Desfeita a trouxinha o conteúdo se desnuda: grãos de café vermelhos, bolinhas de gude translúcidas, mas nada frágeis. Quando meu cérebro ousa perguntar o que ele fará com grãos ainda verdes, Deus os comprime entre as palmas e segundos depois o aroma assalta as narinas. Adoro cheiro de café torrado na hora! Sem pensar digo “meu Deus!” e ele retruca , bonachão “o que foi, meu filho?”. Dou uma risada e continuo a observar.
Ele pede o leite e entrego uma caixinha longa vida. “Ou vocês valorizam as vacas ou os corpos humanos nessas embalagens. Vocês são engraçados”, comentou ele certa vez, enigmático. Um pouco de leite numa xícara grande (em Português, mug. “Será que você poderia ser mais irônico?”, perguntou Deus, quando fiz uma assertiva parecida com essa pela primeira vez. “A little bit of irony, na sua língua”. Engraçadinho...) e ele o oxigena com uma espécie de... cânula, sei lá. O fato é que se forma uma espuma areada levíssima, que emana estranhos odores. Grama molhada, caramelo e colo de mãe. Essa é a parte que mais gosto; faço questão de ficar próximo, quase grudado em Deus. Ao ver minha admiração ele diz “ora, criei as nuvens! Fazer creme de capuccino é fácil e bem mais divertido”.
O café sai preto, forte como o soco de um pugilista e se funde tão harmoniosamente à espuma do leite que é difícil acreditar que ambos estiveram separados há pouco. Deus, educadíssimo, me serve o primeiro gole. Vejo, antes de provar, o quão cremoso fica o capuccino. Na boca algo etéreo, inatingível pela retórica; só me resta dizer o comum “delícia!”. Com as xícaras fumegantes nas mãos e sentados frente a frente, é hora dele aparecer com biscoitos de nata. “Esses,meu filho”, proclama Deus, “são feitos por mim em segredo. Nem adianta perguntar como faço”. Nem precisa: basta que o biscoito desmanche na língua para que explicações sejam prescindíveis.
“Por que você acredita em mim, filho?”, perguntou o Criador, dia desses.
Hesito um instante. “Por não conseguir formular teoria melhor para a criação”.
“Interessante. Sou uma alternativa à falta de uma explicação científica, é isso?”. “Bem”, retruco, envergonhado “é mais ou menos isso”.
“Sabe, é bom conversar com um filho que não tem medo de mim. E que entende minhas piadas”.
“Uai, suas palavras são de tão difícil compreensão assim?”.
“Devem ser. Veja como interpretaram o que eu disse há mais de três mil anos! Não sei como minha idéia persistiu depois de tantos equívocos cometidos em meu nome”.
“Esse ‘não sei’ é retórico, né?”.
Deus gargalha gostosamente. “Ser onisciente tem suas desvantagens. Não posso me dar ao luxo de ser sub-reptício”.
Ora, ter medo dele, faça-me o favor!
Um comentário:
cara, você nunca pensou em ser escritor não?
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