Música
sempre foi essencial em minha caminhada. Mesmo frustrado em minhas
pretensões iniciais de cantar bem ou tocar algum instrumento – é
preciso aliar vontade ao talento – nunca deixei de ter uma trilha
sonora, real ou neural. Em meus delírios pueris e juvenis me via
parte integrante de um imenso musical; enquanto muitos achavam
absurda a ideia de ver marmanjos cantando para expressar alguma coisa
em filmes, eu sorvia “Cantando na Chuva”, “Sete Noivas para
Sete Irmãos” e “Mary Poppins” com voracidade quase religiosa.
Quando
eu escolhia minhas músicas prediletas, valendo-me dos mesmos valores
subjetivos dos críticos mas sem poder embasar minhas preferências
usando a história ou o profundo conhecimento das técnicas
envolvidas (hah), eu preferia as canções mais tristonhas, seja nas
letras ou na linha melódica. Gostava, e gosto, do desamparo, da
desesperança, da crueza e das lições implícitas nestas tristes
canções.
Quando
eu cantava a plenos pulmões “Meu mundo e nada mais” com meus
cinco anos, eu não estava ferido e amargurado como a persona da
letra; apenas achava bonito que alguém pudesse expressar tão bem
sentimentos tão tristonhos. Mas foi ao conhecer Elton John que vi
que a dor e a amargura poderiam ser munições perfeitas para a
música pop. Vou falar especificamente de uma.
Em
1973, uma novela fazia muito sucesso: “Carinhoso”, escrita por
Lauro César Muniz. Uma das músicas da trilha sonora internacional
fez um estrondoso sucesso, “Skyline Pigeon”; ela é uma daquelas
canções que fazem parte do inconsciente coletivo dos brasileiros,
como outras que fizeram parte de trilhas sonoras de folhetins na
década de 1970 (nem me faça começar). Foi através da música que
conheci o senhor Reginald Kenneth Dwight, cujo nom de plume tornou-se
sinônimo de música pop e rock de qualidade.
Nesta
época, só alguns privilegiados tinham aparelhos de som que mereciam
o nome; eu tinha uma Sonata que me tio havia me dado junto com alguns
compactos simples. Um destes privilegiados era o filho da patroa de
minha mãe à época; num sábado eu fui com minha mãe até a casa
desta mulher (enorme e linda, com apetrechos que eu só tomaria real
conhecimento do que eram na década de 1990) para ajudá-la a trazer
algumas roupas que ela havia ganhado. Enquanto ela dispunha vestidos,
calças e camisetas em sacolas, eu permaneci quieto, olhando tudo com
um misto de fascínio e curiosidade. Os odores daquela casa eram
muito diferentes dos que eu estava acostumado a sentir, e muito de
minha percepção futura de “casa de rico” vem desta memória
olfativa.
De
repente o filho da patroa passa pela porta do quarto onde estávamos
eu e a mãe com um disco nas mãos. Era uma cópia americana de
“Goodbye Yellow Brick Road”, como ele fez questão de frisar. Ele
entrou em seu próprio quarto e colocou para rodar. Além da
faixa-título, uma música em particular me chamou a atenção. Mal
sabia minha própria língua, mas a canção não-nomeada era linda.
A voz cristalina de Elton John, o piano, aquele jeito de cabaré, e o
que mais me chocou: a tristeza e pungência com que ele cantava o
refrão. Fomos embora sem saber que música era aquela; afinal, o
filho da empregada não podia dirigir a palavra a um dos membros de
tão rica família (quando soube, décadas mais tarde, que eles eram,
e são, apenas uma família de classe média, me penitenciei por ser
tão subserviente às convenções implícitas naquela época). Ela
nunca foi exatamente um hit aqui no Brasil, assim como a faixa-título
e , talvez, “Benny and the Jets”. Por isso a canção tornou-se
uma espécie de fantasma que assombrava minha memória de tempos em
tempos.
No
começo de 2011, estava eu tentando ouvir rádio (coisa que se torna
cada dia mais difícil graças à qualidade de certas rádios pop),
girando o dial aleatoriamente quando ouvi a tal canção misteriosa
de Elton John. Foi como se eu visse a pessoa amada pela primeira vez:
minha pele pipocou de arrepio, minha boca ficou seca, os olhos
lacrimejaram, o coração bateu descompassado – e não estou
exagerando. E a tristeza do refrão continuava intacta; pude ouvir a
gaivota no final da canção, dando um ar mais desesperançado ao
conjunto.
Agora
tenho a música em meu pen drive. Ela se chama “Sweet Painted
Lady”, primeira faixa do lado A do disco 2. E meus instintos
estavam certos: a letra é de uma certa forma uma ode à tristeza de
uma vida sem muitas expectativas, e que pode ser resumida no refrão:
“Sweet painted lady/ Seems it's always been the same/ Getting paid
for being laid/ Guess that's the name of the game, ooooohh”.
Sem
querer, o filho da patroa quis me cooptar ao lado comodista da Força.
Não conseguiu. Mas eu gosto de saber que ele existe para inspirar
tão belas canções.
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