4.9.11

Sobre as vergonhas engraçadinhas


Você já teve o dissabor de alguém, geralmente um parente muito próximo, ter desencavado para pessoas externas ao convívio familiar fotos comprometedoras da infância – tipo “pagando bundinha com as fraldas caindo”, “cara de choro ao ser contrariado por alguma bobagem” - ou histórias que só fazem sentido em contextos terrivelmente pessoais? Quem já teve desnudada essas passagens sabe que, por mais cuca fresca que sejamos, a vergonha é um sentimento inevitável.

Mas se antes estas passagens nada abonadoras costumavam ater-se ao círculo de amigos íntimos dos pais, o que restringia o vexame aos bares, igrejas, templos, sinagogas e praças do entorno – e é MUITA coisa para algo tão vexatório quanto um episódio que envolve alguma idiossincrasia pueril – elas tomaram de assalto qualquer pessoa no planeta que tenha acesso a Internet e assista ao YouTube.

Se o objetivo inicial era apenas perpetuar a gracinha vergonhosa de uma criança ou adolescente e mostrá-la, não sem uma nesga de crueldade, aos parentes apenas com um clique, hoje busca-se a notoriedade da web. Depois que deram cria a uma criatura chamada “vídeo viral”, a internet notabilizou-se em esculpir em pedra o adágio fanfarrão de Andy Warhol. E dá-lhe crianças discutindo sobre o sentido da vida sob os efeitos do óxido nitroso, bebês grunhindo gracinhas ininteligíveis, emulando o movimento de pernas de Beyoncé ou chorando por causa de uma formiguinha morta.

O problema que ninguém consegue visualizar, por estar aparentemente tão distante, é: e depois? O que a adorável criança fará quando crescer, ter seus próprios valores sobre o que é engraçado ou não e ter que conviver à sombra de um vídeo viral? Crianças não são psicologicamente preparadas para este tipo de exposição simplesmente por ainda não terem amadurecido – e é por isso que são CRIANÇAS. Não que eu vislumbre um futuro distópico onde adultos traumatizados por terem sua intimidade pueril devassada pelo mundo extravasam sua raiva, frustração ou qualquer reação Jungiana ou Freudiana que o valha através de atos de extrema violência.

Esse seria, acreditem, o melhor dos futuros possíveis. Porque casos assim são resolvidos rapidamente, seja pela força da lei, seja pela pena de Talião que todos condenam abertamente mas exultam a cada reportagem de um programa mundo-cão qualquer. Estas crianças vilipendiadas em seu direito divino de ter privacidade podem vir a ser formadores de opinião ou lideres carismáticos, que poerão usar sua influência e poder para devassar, tripudiar, envergonhar e lucrar com as vergonhas alheias. E tudo isso com a anuência de uma geração que se habituou a achar que privacidade é “babaquice” e que vergonha alheia é engraçado.

Talvez fosse a hora de pensarmos mais a longo prazo, sem a urgência que esta geração tanto preza. Nem todos se sentem confortáveis sendo motivo de chacota para uma audiência cada vez maior e mais voraz. E por mais que uma gracinha infantil tenha seu encanto, ele é fugaz perto dos efeitos imponderáveis do futuro que não tarda a vir.

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