Fuscas
sempre disparam alguns gatilhos em minha memória. Num dos famosos
casos de falta de pauta de um programa zapeado ao acaso,foi ao ar
uma propaganda de 1965, eu acho, do Fusca, ressaltando que ele era “o
único carro brasileiro com refrigeração a água”. Graças à
referência líquida, dois casos que envolveram eu, meu pai e um
Fusca vieram à tona do nada, me fazendo rir como um bocó, sozinho,
no sofá da sala.
Eu
tinha seis anos. Meu pai, à época um funcionário público que
trabalhava no matadouro municipal, conseguiu, sabe-se lá como, a
permissão para usar um dos carros da frota da secretaria ao qual ele
era subordinado (não me pergunte qual, pois os nomes mudaram muito
de 1976 para cá). Um Fusca branco. Feliz e pimpão, meu pai e mais
dois amigos saíram do expediente já dirigindo a caranga numa sexta
feira com o tanque cheio e algumas ideias na cabeça.
Chegando
em casa, meu pai e seus asseclas começaram a se mover num frenesi
coletador: pegaram varas de pescar, aquelas de bambu mesmo, uma
sacola de lona cheia de tralha indefinida de pesca, um lampião a
querosene, herança de meu avô, mais os sanduíches que minha mãe
foi quase que obrigada a fazer com os pães que meu pai comprou. Eu,
ao longe meio que via a movimentação, meio que brincava com meus
“hominhos de doce de banana” (se você nunca os teve é porque
não é tão velho quanto eu) no monte de areia. E tudo terminaria
ali para mim se não fosse a surpreendente frase do pai no final da
arrumação: “Nei, vem com nóis. Cê vai pescar com o pai”.
Surpreso,
olhei inquisidor na direção da mãe, que murmurou um indeciso
“vai”. Me levantei, fui tomar banho (ordem do pai, e com uma
recomendação singela: “vê se não banca o lerdo debaixo do
chuveiro!”), coloquei um short, uma camiseta e meu par de chinelos
e entrei no banco de trás do Fusca, junto com um dos amigos do pai,
um sujeito cujo nome não me lembro mas cheirava à banha que minha
vó usava para guardar as carnes de porco que ela tanto gostava de
fazer. Não sei porquê, mas ao invés de sentir asco, senti fome.
Na
viagem, tentava olhar para a paisagem através do vidro, tentativa
frustrada pela escuridão da tarde que já se adiantava. Me contentei
com os vultos de casas, árvores e a visão das luzes longínquas
acesas nas ruas. Ao chegarmos ao destino, notei que não havia nada
que se parecesse com alguns curso de água corrente; apenas um
apinhado de casas térreas construídas ao largo de uma extensa rua
de terra batida. A voz do meu pai, como um trovão, cortou o breve
silêncio após ter desligado o carro (minha nossa, como aquele Fusca
era barulhento! Fazia algo tipo
rrrruuuuummmm-pocpocpoc-rrrruuuuuummmm... ).
“Nei, tem pão e suco aqui na sacola, Fica aqui dentro”. Não entendi nada: se o objetivo daquela pequena viagem era uma pescaria, por que diabos eu tinha que ficar trancado ali dentro? Ato contínuo, apareceram uns vultos femininos indistintos que pegaram meu pai e sus amigos pela mão, não sem antes olharem o interior do carro; uma delas falou com uma voz infantilizada incongruente: “olha só que menininho bonitinho!”, soltando uma risada e levando os três adultos para dentro de uma daquelas casas. Fiquei sem ação, tanto pela atitude estranha do meu pai quanto pelo suposto elogio que aquela mulher disparou.
“Nei, tem pão e suco aqui na sacola, Fica aqui dentro”. Não entendi nada: se o objetivo daquela pequena viagem era uma pescaria, por que diabos eu tinha que ficar trancado ali dentro? Ato contínuo, apareceram uns vultos femininos indistintos que pegaram meu pai e sus amigos pela mão, não sem antes olharem o interior do carro; uma delas falou com uma voz infantilizada incongruente: “olha só que menininho bonitinho!”, soltando uma risada e levando os três adultos para dentro de uma daquelas casas. Fiquei sem ação, tanto pela atitude estranha do meu pai quanto pelo suposto elogio que aquela mulher disparou.
Sem
ter muito o que fazer, comi alguns dos sanduíches (mortadela com
aquela linguiça fininha, não sei até hoje o nome daquela
variedade), me deitei no banco e adormeci profundamente. Quando
acordei já estava em casa, ouvindo minha mãe possessa, falando
coisas desconexas entre um xingamento e outro. À época, não
entendi o porquê daquela reação tão extremada. Só depois de
alguns anos e dono de informações mais privilegiadas é que pude
entender o significado de algumas daquelas palavras sem nexo:
Itatinga. Luz vermelha. Mulheres da vida. Meu pai realmente foi
pescar naquele dia.
Ele
pegou muitas piranhas.
Três
anos depois, o pai ficou incumbido de levar um Fusca azul para uma
pessoa não especificada. Esse Fusca estava em uma oficina mecânica
perto de casa e esse amigo sem nome pediu ao pai para levar o carro
até o bar do Vando, onde eles se encontrariam e se confraternizariam
bebendo cachaça e comendo aqueles jesus-me-chama entre uma partida
de bocha e outra.
Eu
estava quieto em meu canto, eu juro. De repente ele me chama. “Nei!
Vem, vou te levar pra passear de carro!”. O pior era a falta de
opção; assim como no Brasil desta época, “democracia” era
apenas uma palavra no dicionário. Fui. O Fusca azul até estava com
bom motor, mas os bancos... o da frente tinha uma mola que insistia
em cutucar minha nádega direita. No meio do caminho entre minha casa
e o bar do Vando havia mais dois bares. O pai parou nos dois. Bebeu
nos dois. E a cada enroscada da embreagem eu temia pela minha vida
(tá, parece meio melodramático, mas experimente não cagar nas
calças ao ver a distância entre você e uma pata-de-vaca diminuir
consideravelmente até que o motorista se lembre que lugar de carro é
no asfalto!). Antes do destino final (o bar, não o Elísio!), ele
parou bruscamente ao virar na rua Cerqueira César. Ainda sou capaz
de sentir o gosto do vidro Blindex quando paro pra lembrar do dia.
Bati fortemente o rosto no para-brisa, quase desloquei a coluna. E
ele parou para dar uma mijada!
Quando
ele desceu, eu imediatamente pulei para o bando de trás e lá
fiquei, me lembrando daquele outro Fusca. Ao invés de uma mulher
exaltando minha fofura, apareceu o pai no vidro. “O que cê tá
fazendo aí, Nei?”. “Vou sentar aqui agora, pai”. “volta pra
frente AGORA!”. Bati o recorde mundial de salto em bando de Fusca.
E quando enfim chegamos ao maldto bar, quase imitei o papa ao descer
do carro.
Depois
ainda perguntam porque eu não faço questão de aprender a
dirigir...
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