22.9.06

Tu sei un attimo senza fine

Sentado numa banqueta, o homem olha a festa ao seu redor. Os convidados e seus filhos chegando, os amigos o cumprimentando, apesar do aniversariante não ser ele. Ao longe, duas amigas o observam enquanto sobem as escadas que dão acesso à laje e notam seu semblante calmo. De repente ele se recosta numa árvore e fecha os olhos candidamente.

A mulher dele pede ao filho mais velho que acenda a churrasqueira e depois pegue o bolo na geladeira enquanto vai chamar seu companheiro adormecido. Ela não deixa de notar o rosto calmo de quem está dormindo. Ao tocá-lo, ele pende em direção ao chão, sem reação. Ele está morto.


Essa história foi contada por uma de minhas colegas, enquanto os clichês recorrentes eram ditos (“pra morrer basta estar vivo”, “Deus sabe o que faz”, essas coisas). Dentre as coisas faladas, uma citação de uma neta do finado ficou gravada: “Deus é ruim”.

A vida é algo tão palpável que a perspectiva de algo tão misterioso quanto inevitável quanto a morte é, no mínimo, angustiante. Nós, que temos a percepção da perda, raramente nos conformamos com um fim tão definitivo e criamos oásis de conforto material ou espiritual ou chafurdamos no mar da autopiedade e das psicoses.

Há uma teoria de boteco (e se não for, perdoem-me; é que eu a ouvi em um. A propósito, eu não bebo nada alcoólico, só faço contatos sociais tardios entre um refrigerante e um amendoim) que proclama: os assassinos em série (ou, em bom Português, serial killers) querem com suas atrocidades saciar a morte com sangue que não seja o deles. Ou seja, tratam a morte como uma entidade que precisa de sacrifícios.

De outro lado, estão os que chamamos de “normais”; os que criam deuses, teorias criacionistas ou evolucionistas, crêem nos paraísos pós-morte, em carmas cíclicos e na reencarnação. Seja qual for a crença, todos usam como modelos o mundo que conhecemos para que a idéia do fim definitivo seja palatável às mentes comuns.

Não vou negar a angústia que a falta permanente de uma pessoa causa. Perdi minha mãe de uma forma brutal e estúpida e só eu sei o que me corroeu. Porém após a letargia veio em mim uma curiosa epifania: ela não foi o único ser humano que morreu naquele dia. O que senti foi sentido, com maior ou menor intensidade, por outras pessoas. A morte não fez isso para castigar. Morremos porque temos um “prazo de garantia”.

De castigo divino a vilã de filme de terror adolescente (a série Premonição), poucos foram os que viram a morte como o que ela realmente é: parte da tapeçaria da vida. Para entregar de vez minha cultura popular, me lembro de uma minissérie em quadrinhos de Neil Gaiman: “Morte: o Grande Momento da Vida”. Nela, o escritor inglês, com o auxílio luxuoso de Chris Bachalo pré-fama, narra o acordo que uma mulher fez com a Morte para poupar a vida de seu filho. Gaiman disse que criou a Morte que ele gostaria de encontrar no final.

Quero crer que num momento de extrema lucidez ele vislumbrou o que somos e o que a morte realmente significa. Ela não é uma força de punição divina; não é castigo; ela é o fim necessário ao ciclo eterno e se ela nos causa desconforto, para dizer o mínimo, é porque filosofamos. José Saramago disse numa entrevista: “filosofamos porque morremos”.

Os animais não têm plena consciência do que é a morte, apenas aguardam o fim entre gemidos e estertores. Os elefantes se afastam da manada; gatos e cachorros se escondem em algum canto para gemer em paz; moscas deixam de voar e aguardam. Nós, em nossa ingenuidade, criamos o “céu dos animais”, invejosos que somos. Como eles ousam não sofrer com a perda da vida?

Não é minha intenção dar a última palavra sobre isso. Sei o quanto sou poroso ao que aprendo. Só parei para escrever sobre isso após o relato de minha colega e as mortes de meu amigo Jair e do irmão de meu amigo Adelino. A partida deles foi de certa forma esperada, haja vista o estilo de vida deles (pra ficarmos no popular: eram dois bebuns), mas nem por isso menos chocantes. Há a estranheza pela ausência inicial, depois as lembranças até o esquecimento.

A imortalidade é uma utopia sem sentido. Somos átomos que escrevem, procriam e gravam seus nomes esperando uma eternidade virtual. Pobres de nós, que morremos e sofremos pela certeza da vinda da Boa Senhora. Pobres de nós, que não vivemos cada suspiro, cada raio de sol. Pobres de nós, que não vivemos em paz para que morramos em paz.


O título é um trecho da canção "Senza Fine", interpretada por Gino Paoli.

P.S. : as postagens sem links são um oferecimento de minha irmã. Quando houver links, será um oferecimento de meu cybercafé predileto.