9.11.09

Legião Urbana (1985)

Tudo bem, ninguém está olhando. Pode confessar. Nega a todos que o vê compenetrado, sério, focado em sua carreira; bom pai ou boa mãe, quase uma referência entre seus pares, criador de frases pensadas e ponderadas. Enfim, um cidadão respeitado pela sociedade. Mas agora somos só você e eu, não precisa se esconder, não pra mim. Pode dizer: você já foi jovem.

Sim, a juventude já correu serelepe por suas veias tão honradas, não? Era inebriante, vívida e vez por outra inadequada e inadequante. Não esconda o sorriso quase envergonhado ao relembrar que um dia você foi paradoxal. Sem as travas da maturidade, o amor que você tanto queria era ao mesmo tempo sufocante e desejado, saudoso e grudento. As lágrimas eram por todas as razões acima, os sorrisos também. E ao verbalizar isso, era com gritos de incompreensão e sussurros de culpa.
               Tire suas mãos de mim
               Eu não pertenço a você
               Não é me dominando assim
               Que você vai me entender
               (...)
               Nos perderemos entre monstros
               Da nossa própria criação
               Serão noites inteiras
               Talvez por medo da escuridão
               (...)
               Brigar pra que, se é sem querer?(...)

Você não entendia, mas queria se fazer entender. O mundo era apenas um grande campo de provas. O maior objetivo nessa época era um vago desejo de mudar o mundo. O mundo! Essa esfera cheia de pessoas tão díspares, e a força que você achava que tinha resumia-se nas frases curtas e na empáfia. Você sabia de tudo, tudo tinha uma resposta. Entusiasmo que contagiava enquanto fogo. De palha.
              Não sei o que é direito
              Só vejo preconceito
              E a sua roupa nova
              É só uma roupa nova

E as brigas, eternas como o entusiasmo em mover o mundo. Uma incerteza em ter certeza de... alguma coisa. E quando o sexo entrou na equação, o prazer imediato tornou-se O objetivo. Prazer em correr, para ter um corpo desejável. Prazer em ganhar o primeiro dinheiro, para a primeira balada (ainda chamam assim os encontros regados a música inaudível e bebidas?) e as primeiras pegações. A doçura resiste até a primeira camisinha furada. Mas isso é só um empecilho. O mundo!
              Uma menina me ensinou
              Quase tudo que eu sei
              Era quase escravidão
              Mas ela me tratava como um rei
              (...)
              Sei que ela terminou
              O que eu não comecei (...)
              Ela falou "Você tem medo"
              Aí eu disse "Quem tem medo é você"
              Falamos o que não devia
              Nunca ser dito por ninguém(...)

Em alguns momentos você tem epifanias não reconhecidas. Afinal, o mundo está mudando graças à sua intervenção. Nem sempre suas ideias são aceitas (na verdade, nenhuma de suas ideais foi adiante... mas isso era apenas questão de tempo) e a cada frustração, um tombo. E no chão, tão confortável, mais ideais criados.
              A violência é tão fascinante
              E nossas vidas são tão normais(...)

              E era como se jogassem Space Invaders
              Perdendo mais dinheiro de muitas maneiras(...)

              Parece energia, mas é só distorção
              E não sabemos se isso é problema
              Ou se é a solução (...)

Quando você se levantou, o diapasão reverbera na direção do ódio, puro, simples e primitivo. O mundo iria mudar, quer ele queira ou não. Quem era do tempo dos fanzines fazia os mais subversivos panfletos, recheados dos novos signos linguísticos, os palavrões. Você era blasfemo, irônico e anticomercial. Tomando refrigerante e cerveja de grandes corporações e comendo em fast foods.

              Depois de vinte anos na escola
              Não é difícil aprender
              Todas as manhas do seu jogo sujo(...)
              Vamos fazer nosso dever de casa
              E aí então, vocês vão ver
              Suas crianças derrubando reis
              Fazer comédia no cinema com as suas leis(...)
              Geração Coca-Cola

Súbito, o mundo deixa a órbita de seu umbigo. A namorada, ou namorado. O novo papel dos pais. O dinheiro, agora "rendimentos" ou "dividendos". Planos, bandas, sexo, sexualidade. Preconceitos. Assimilações. Individualidade. Novas famílias.

             Mudaram as estações e nada mudou(...)
             Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar
             Que tudo era pra sempre
             Sem saber que o pra sempre sempre acaba(...)

E num dia, nem sempre tão belo, você amadurece.

Artista: Legião Urbana
Disco: Legião Urbana
Ano de lançamento: 1985  

Lista de músicas aqui.              




31.10.09

Arrested Development - Zingalamaduni

Nessa vida longa e louca, descobri uma coisa engraçada: não me arrependo de minhas cagadas. Se as fiz, foram todas conscientes. Sabia  dos riscos e benefícios, os bônus e ônus. Sempre soube que os frutos de minhas decisões seriam colhidas ou jogadas fora por minha conta e risco. O que não significa que eu nunca me arrependa.

Como eu disse, quando as decisões foram ditadas pela consciência, mato no peito e chuto pro gol, embora seja um pálido reflexo de jogador de futebol (no popular, perna-de-pau). O problema é quando faço algo ditado pelo acaso, ou pela empolgação, das duas, uma: ou descubro novas fórmulas da pólvora ou crio chicotes para meu autoflagelo. Pois em meados de minha adolescência fiz algo que me arrependo profundamente: apresentei o rap ao meu irmão.

Não sou tão seminal; não posso me gabar de ter conhecido Grandmaster Flash, mas me lembro de "Basketball" do decano Kurtis Blow, "I'm a ho" do Whodini e de ter pirado por ouvir excertos de outras músicas criando outras, faladas e com DNA funk - depois é que descobri o anglicismo sampler. Quando meu irmão mais novo era apenas um projeto de menino, fiz com que ele ouvisse a Bandeirantes FM (acreditem, antes da proliferação das rádios piratas e de outras ondas concorrentes, como as ondas dos telefones celulares, ouvia-se as FM's de São Paulo, capital, claramente aqui em Indaiatuba) e que ouvisse a melhor seleção de black music disponível para ouvidos leigos até então.

Não poderia imaginar o quanto ele gostaria de tudo aquilo. Claro que no começo havia uma preocupação em se fazer algo com o mínimo de conteúdo, como os gringos Eric B & Rakim, Kool Moe Dee, Run DMC e mais tarde os heróis brazucas da São Bento (salve, Thaíde). Infelizmente, uma das vertentes tornou-se mais evidente do que outras pelo mesmo motivo que outras manifestações culturais, políticas e religiosas se tornaram evidentes: a polêmica. O chamado gansta rap, capítaneado no final da década de 1980 por nomes como Ice-T e N.W.A., reduziu os arranjos limpos e funkeados por um minimalismo que poderia ter sido genial em alguns momentos (não dá pra dizer que Dr. Dre seja "apenas um rapper sem noção") mas que graças à repetição ad nauseaum tornou-se chato e aos mimos ditos com a boca cheia pelos rappers. Os manos virarram niggas, as minas viraram bitches, os desafetos juntaram-se todos num uníssono motherfucker e isso, graças a uma sucessão de fatores que não cabe a mim dissecar aqui, virou a nova fonte de renda de muitos "cantores". Se hoje excrescências como 50 Cent, Flo Rida, Chamillionaire e quetais são ricos e musicalmente influentes, agradeça a quem tinha por objetivo mostrar a vida estilizadamente violenta dos guetos americanos.

Tarde demais, tentei mostrar que havia, sim, rap que poderia combinar as raízes sólidas em que foram originadas com uma mensagem menos belicosa; talvez um pouco proselitista, mas com o uso de alguns neurônios além dos que formulam xingamentos. um dos CD's que comprei para comprovar isso foi o segundo disco de estúdio do grupo Arrested Development.

O respeito começava no encarte, com todas as letras. Escritas pelo rapper Speech (nome de guerra de Todd Thomas), com eventuais colaborações, mostrava uma preocupação em mostrar o orgulho em ter a pele negra, ter raízes africanas e fazer com que isso não se tornasse discurso panfletário, embora nisso, até por causa dos temas, fracassasse fragorosamente. A sorte dos ouvintes eventuais é que ele é um produtor bastante competente. O uso de samplers econômicos e inteligentes (como nas minhas favoritas "Africa's inside me" e "Ease my mind") e scratches precisos fez o disco ser palatável a quem achava que rap só exortava a posse de armas, mulheres em trajes sumários e palavrões.

Infelizmente dois fatores foram determinantes. Se não eclipsaram totalmente o álbum, não permitiram que ele brilhasse como ele merecia:  o ano em que ele foi lançado (1994 foi um dos mais férteis anos da indústria fonográfica mundial) e a preguiça mental que não permitia que grupos como Digable Planets, A Tribe Called Quest e outros fossem assimilados pelos niggas e pelas bitches, ávidos pela grana fácil trazida pela cooptação ao mainstream do estilo bandido dos ganstas. E atrás desse trio foi meu irmão que, se ainda consegue ouvir "In the sunshine" - a preferida dele no CD - e pirar o cabeção, acha graça em grupelhos de rap que proliferam na 105 FM que acham o máximo falar dos manos do X enquanto acham que falar palavrão é ser o novo Mano Brown.

Acho que vou queimar no fogo do inferno. Ao som de Eminen. Vou tentar negociar para ver se posso pelo menos ouvir 2Pac, na fase onde ele amadurece e faz gansta rap com método e conteúdo. Tão bom que é morto por causa disso. Bem, isso e por outras tretas, né?

Arrested Development - Zingalamaduni
Gravadora: Chrysalis - EMI
Ano: 1994

Lista de músicas aqui.

23.10.09

Sultões do suingue. Ou balada de um reino em pedaços.

Há muito tempo, em uma era longínqua, houve uma entidade onipresente e poderosa, dona de vozes e sons indistintos chamada Indústria Fonográfica. Representada por gravadoras e selos, ela nos provia com música de maior ou menor qualidade e mais do que isso: criava ídolos, ditava os ritmos, conduzia carreiras (musicais e psicotrópicas) e vendia com uma eficiência tudo isso, embalado em capas vistosas e arranjos bem produzidos. Ou não, dependendo da moda em voga.

Décadas de domínio absoluto sobre o que poderia ou não ser ouvido, curtido, gostado criou gigantes poderosas e mundiais (alguém se lembra de nomes e siglas como CBS, PolyGram, A&M, Parlophone, Polydor, RCA e quetais?). Sucesso tão grandioso gerou acomodação; o único trabalho que essas empresas tinham era cooptar quem ainda insistia em ser "independente", "revolucionário" ou "visionário" para seus selos "independentes", "revolucionários" e "visionários". Quando um americano quis transformar o que era analógico em digital, a Indústria Fonográfica viu apenas os cifrões. Esse é o problema de quem é grande demais: esquecer de olhar para baixo, para os lados. E para cima.

Da "versão digital" do LP à compactação digital de uma música, poucas mas decisivas décadas. E quem se autointitulava dorminhoco (Napster) conseguiu acordar um gigante, só para solapá-lo com uma pedrada chamada MP3. Hoje ela sobrevive graças às fusões, aos astros presos por contratos pré-digitalização e à RIAA e seus bem pagos advogados. O gigante teve que diminuir de tamanho e sobreviver diminuindo suas ambições - lembra-se que era "fácil" para um disco vender mais de um milhão de cópias? Hoje não há mais espaço para fenômenos mundiais como Thriller ou locais como Mamonas Assassinas.

Enquanto isso, consumi muito vinho desse gigante. Na época de ouro, poucos mas marcantes vinis (guardo na memória - e apenas lá, pois meu pai trocou meus LP's por pinga - discos como Bring on The Night do Sting, Revenge dos Eurythmics, Roberto Carlos Canta para a Juventude e Faith do George Michael) embalaram meu saudoso system Gradiente. E nos estertores do CD, alguns rompantes ora felizes ora desastrosos (um CD do padre Marcelo Rossi, ainda bem que para presente).

Agora esses CD's jazem em um canto em cima de minha cômoda, sem um tocador para eles (aconteceu, hã, um imprevisto com meu rádio com CD player. Envolveu um sobrinho, um cachorro e um dia de chuva. Não pergunte). Num belo dia da semana passada, ao pegar meu dicionário para consultar o significado da palavra "almofariz", os vi empilhados uns sobre os outros. Do nada, algumas frases cantadas foram murmuradas. "No canto da sala, no seu holograma...", "If you never say goodbye to the best things...", "We live in a beautiful world...", "Que isso é o fim de tudo, e é isso que eu vim dizer...".

Atalhos para memórias. Como cheiros, sabores, palavras ditas. "Por que não escrever sobre isso?", pensei. Afinal, nem tenho tantos discos assim... Como meu blog anda abandonado, vivendo de flashbacks editados - meu, se eu copiar e colar alguns textos de meus diários antigos, não vai prestar - acho que vou colocar em prática minha mania de tergiversar sobre o que ouço. Método, contudo; primeiro catalogarei os CD's do jeito que eu gosto. Confesso que tenho um pré-TOC: gosto de colocar coisas em ordem, nada patológico, mas digamos que quando estou no arquivo do posto de saúde, guardando os prontuários, estou no céu. Cheio de ácaros, mas longe da TPM eterna. Mas divago.

Depois de tudo catalogado bonitinho - tenho um caderno perfeito, todo maníaco por papelaria tem - vou viajar. O pó e o brilho vão me colocar lá no alto. Hã... parece que estou falando de cocaína, né? Refazendo: vou ouvir meus velhos discos e ver o que eles ainda me dizem, além dos versos.

O gigante que perdeu a altura não me olhou. Sorte minha.

17.10.09

Mais uma velharia

(Texto escrito em 02 de junho de 2004)

Refém da tevê aberta que sou, restrinjo meus conhecimentos televisivos ao que as majors querem me mostrar. Entre uma entrevista do Jô (que para mim perdeu a pouca relevância que tinha graças ao ego do menino) e um filme ora brilhante, ora tapa-buraco (ninguém merece ver pela enésima vez filme do brócoli metido a ser humano Chuck Norris ou do brucutu com alma de asno Steven Seagal - no máximo, servem como programas humorísticos involuntários) descobri que o SBT do seu Silvio preenche as madrugadas com séries bem bacanas. Nem sempre dá para assistir, já que chego entre uma e meia e 1:45 da madrugada e a programação do SBT é errática, mas já elegi minha favorita: A Sete Palmos (Six Feet Under).

Ela me cativou com o tema de abertura, uma beleza (se não me engano é do Thomas Newton Howard) aliado às imagens da abertura, plasticamente belas. Os roteiros raramente fazem concessões (afinal, é uma produção HBO, que adora chutar o pau da barraca. Quem assitiu OZ sabe do que falo), e são bem amarrados, com drama e humor negro bem adultos. Alan Ball é o cara.

O que mais me chamou a atenção foi o destaque a algo que adoramos deixar para escanteio: a morte. Ela não é tratada com a reverência ou o medo habituais, e sim como um negócio, e bem lucrativo. Sob o cinismo da família Fischer (espero ter grafado corretamente), há a consciência da inevitabilidade e a ganância que um negócio tão lucrativo traz - afinal, todos nós vamos morrer um dia e há uma cultura de respeito ao féretro. Deliciosa uma cena em que o mais velho dos irmãos (não consegui gravar o nome dele - aliás, de ninguém ainda) se entusiasma ao saber que houve um terrível acidente de ônibus e que dois dos corpos podem vir a ser "potenciais clientes". O mais novo o repreende: "contenha seu entusiasmo". Mórbido, mas hilário.

É engraçado como negamos o fato mais certo de nossas vidas de forma tão veemente. Nossa mortalidade nos assusta e por isso criamos todo um aparato religioso para nos consolar. Seja o Paraíso cristão, a reencarnação budista (ou kardecista, não sei ao certo) ou a promessa da ressurreição, muitos se refugiam na idéia de um novo começo após nossa passagem. Alheia a tudo isso, a morte apenas aguarda, sábia, o dia em que nos leva, sem direito a apelação.


Por algum tempo isso me angustiou porfundamente, e confesso que há dias que o medo do desconhecido é fortíssimo, principalmente à noite, deitado no escuro. Hoje em dia ao abrir os olhos e verificar que estou vivo, apenas murmuro "lá vamos nós de novo" e me ponho de pé, doido pra me livrar do bafo matutino.

5.10.09

Poeira e marmotas

Um hábito saudável: caminhar. Quando tudo parece modorrento, quando a voz dos parentes tornam-se chiados de estática, nada como a rua. Rever um pedaço que, por pura falta de interesse, não ia há mais de cinco anos (e olha que moro praticamente do lado): o vão livre no meio das CECAP’s.

Vão livre há cinco anos. Agora, além do posto de saúde e da escola estadual, temos algumas praças, campos de areia, uma igreja – isso mesmo, uma igreja! – construída parte em alvenaria, parte com toras de (creio eu) eucalipto, com vitrais até bonitos. Foi estranho ver um lugar desconhecido tão próximo de mim.

Reencontro um de meus colegas de meu antigo emprego. Engraçado como todos que encontrei dizem basicamente a mesma coisa – e aqui peço licença para pincelar minha origem caipira, citando uma famosa canção de Tião Carreiro e Pardinho: a coisa tá feia, a coisa tá preta/ quem não for filho de Deus, tá na unha do capeta. Depois de minha saída, uma onda de demissões assolou a empresa, e todos citam a ingerência do senhor diretor industrial. Se serve como consolo ao meu atual status operacional, pulei fora no momento exato.

Se você quiser saber como a chuva tem feito falta aqui na cidade, é só passear perto da Filtros Mann, onde há um enorme descampado e verificar a poeira que um eventual carro levanta quando passa. Ou nem isso; basta pisar e ver o pó levantar. Essa cidade precisa de um pouco de água lá de cima. Assim meu cérebro não brinca comigo, me fazendo pensar asneira.

Já pararam para pensar quanta história há num punhado de poeira? Não se trata apenas partículas de terra e areia; temos de coisas tão aparentemente bucólicas, como pólen e cascas de árvore quanto restos mortais diversos: ácaros, ossos decompostos, pêlos e pele. Talvez ao espanarmos o pó, além dos habituais elogios a nossa higiene, estejamos brincando com memórias de passos dados, amores consumados, lágrimas amargas ou de alívio. As nuvens de poeira parecem clamar "lembrem-se de nós". Pena que elas sujem tanto!

Será que o pó que somos obrigados a respirar nos causa o famoso dejá vù? Sim, faz sentido. Quem sabe ao aspirar, também não sejamos impregnados de fragmentos de lembranças de quem já se foi? Pássaros que migram de verão em verão, homens e mulheres que ao partirem para o sono eterno lembram de momentos felizes em um determinado lugar.

Nota mental: nunca mais comer cogumelos que nascem em estrume de vaca!

(Texto escrito em 26/09/2003)


Foram vários os motivos, mas há muito não dedico meu tempo para assistir um filme da Sessão da Tarde. Quando eu trabalhava, ou eram as horas extras ou meu sono vespertino. Agora que estou ocioso não o fazia por desinteresse; preferia minhas caminhadas pela cidade ou o vazio de minha planilha de texto no PC. Hoje, contudo, choveu, esfriou e a Globo me deu um baita presente. Um filme que por razões que não consigo verbalizar adoro de paixão: Feitiço do tempo (no original, Groundhog day).


No filme, um meteorologista de tevê arrogante e presunçoso, interpretado com a competência habitual por Bill Murray, é escalado pela quarta vez para cobrir o Dia da Marmota numa cidadezinha perto de Pittsburgh. É uma daquelas idiotices de americano: no dia 2 de fevereiro uns gajos esperam que uma marmota olhe para sua própria sombra e vaticine, ou não, o fim da temporada de nevascas. Com ele vão o indefectível cameraman(esqueci o nome do ator) e uma produtora novata, vivida por Andie MacDowell – adoro essa guria.

O tal repórter tripudia os festejos e não vê a hora de sair daquela "cidade de caipiras" mas a nevasca que, segundo sua previsão, só chegaria no dia seguinte, assola a tarde e os impede de continuar a volta a Pittsburgh. Não tendo saída, resolvem pernoitar na cidade da marmota.

Só que ele descobre, graças a uma misteriosa série de "coincidências", que ele está preso não só na cidade, mas no dia 2 de fevereiro. Isso mesmo: o dia repete-se indefinidamente e ele não sabe a princípio como agir. No começo ele tenta se aproveitar da ausência de conseqüências de seus atos no futuro, já que o futuro não chegava. Mas ele descobre a paixão, a inevitabilidade, e a capacidade que temos em jogar fora oportunidades que a vida nos oferece.

Minha rotina sempre me fez lembrar desse filme com carinho. Não seria essa rotina um Dia da Marmota eterno também? Sabe, de certa forma sabemos o que vai nos acontecer, haja vista que, com as exceções de praxe (pois a vida é dinâmica apesar de nossa mesmice – e por favor, não interpretem isso como um manifesto antimonotonia ou algo assim; a vida dos seres humanos normais é sempre mais do mesmo, não adianta quantos bungee jumps façamos), da alvorada ao crepúsculo fazemos basicamente a mesma coisa.

O que diferencia um dia do outro é o que apreendemos. Podemos nos afundar numa vida regada a emoções baratas (como o Murray no início do filme) ou tentar fazer algo para nos aprimorar, nem que seja tratar melhor os seres humanos ao nosso redor (não cheguemos ao extremo do personagem do filme, que aprendeu tocar piano, esculpir gelo, francês e poesia francesa e mecânica no dia interminável, mas que pelo menos saibamos aprender). Um dia como outro qualquer sempre tem algo escondido debaixo da sombra das árvores.

Hoje aprendi mais uma coisa. É muito bom ter amigos que realmente acrescentem conhecimento e amor em nossa vida, como com o y, que me presenteou com uma descoberta intelectual de valor inestimável (os artigos da guria – desculpem-me, esqueci o nome dela – na revista TPM).
É muito bom sorrir sob a chuva.

(Texto escrito em 17/09/2003. Edições autorizadas pelo autor. Um dia explico o porquê de tantas edições)

2.10.09

Gavetas esquecidas

Está decidido: quando eu crescer, quero ser personagem do Manoel Carlos. O coroa até coloca uns conflitos e dramas na trama, porém o que sobressai é o savoir faire eterno dos personagens. São moradores do Leblon, Copacabana, Leme, que caminham pela praia de manhã e tomam cafés da manhã nababescos. Praticam esportes, freqüentam academias e festas, estão sempre tomando vinho, uísque. Moram em hotéis, desfilam pela noite, planejam viagens para o exterior. E as empregadas? Bah, se minha mãe estivesse viva rolaria no chão de tanto rir com as incongruências.

Não é à toa que novelas tem tamanha aceitação entre o povo desprovido de esperança. Essa sim, é a catarse do povão; ver uma violência que ele sabe que será punida, torcer pelo bonitão ou pela gostosona, chorar pela morte comovente, discutir com a profundidade de uma poça d’água temas polêmicos. Ratinho, com aquele programinha, fazia coisa semelhante, até que o grotesco tomou ares fantasiosos demais e foi abandonado. Para que ver "atores" simulando porrada quando é mais divertido ver as raquetadas do fulano?

Televisão serve apenas para uma coisa, pelo menos para mim: me lamentar por não conseguir ter opções mais interessantes.
(Trecho de um texto de 25 de setembro de 2003)



Muitas coisas me intimidam. Isso é saudável, pois não me acomodo em minhas parcas vitórias e nunca deixo de tentar aprender o que a vida me ensina. A vida é uma professora até cruel, mas justíssima; nos dá todo o espectro caleidoscópico para que possamos ter a chance de viver pra valer (sim, citando a tal musiquinha. Não esperem críticas da razão pura de mim). A intimidação sempre teve um papel pejorativo em minha jornada por isso a superestimava. Devagar com o andor, dizem os sábios.


O tédio dos meus dias, por exemplo. Como mantenho um blog, espero sempre um acontecimento minimamente emblemático ou um pensamento mais profundo sobre um chocolate que como para que possa escrever. Isso, fora elogios exagerados ao modo que escrevo, tendem a me intimidar, o que é uma tremenda bobagem.

Essa intimidação pressupõe uma obrigação. Não sou obrigado a postar algo no formato x ou y, posto por puro prazer. Já disse isso várias vezes: gosto de escrever, isso nunca será um sacrifício ou uma obrigação e nenhuma palavra poderá mudar isso. Fico muito feliz em ver que consigo ser compreendido porém se meu imenso prazer em brincar com as frases não vier primeiro, meu blog perderá a razão de ser.

Quando trabalho, o faço pela obrigação de ter dinheiro. Me relaciono com quem não gosto por educação e por não gostar de conflitos desnecessários e desgastantes. Ouço a música "que o povo gosta" compulsoriamente. As únicas coisas que faço por puro prazer tem que proporcionar prazer. Conversar com o y, com o ByM, trocar figurinhas no sistema de comentários dos blogs do Marcelo e do Emerson, ouvir o senhor R. Escrever. Escrever.

(Trecho de um texto escrito em 24 de setembro de 2003. Editado com permissão do autor, ou seja, eu mesmo)

1.10.09

O sino que ela toca?

Antes de Xuxa aparecer com mais um fiasco (quem, em sã consciência, ainda dá um programa infantil para aquela mulher egocêntrica?), havia a sessão de desenhos apresentados por seis meninas, um em cada dia da semana, chamada TV Globinho. Havia poucos desenhos realmente bons (e antes que algum incauto me chame de vagabundo, gostaria de lembrar que meu horário de trabalho é das 14:45 à meia noite e meia), mas um deles me atraía por provocar lembranças férteis de meus anos infantis e ingênuos: o Pica-Pau (Woody Woodpecker).


Depois de anos no SBT, por motivos que permanecem um mistério para mim, a Vênus Platinada adquiriu os direitos de transmissão do cartoon, incluída aí a terrível fase "Pé-de-Pano", apelido que eu e meu irmão demos aos desenhos feitos na década de 1960, creio eu. Mas isso não importou, pelo menos até a exibição de um episódio em particular.

O desenho se chama O maluco na praia (Nut in the beach), creio eu. Era mais um daqueles festivais nonsense com a participação do meu personagem secundário favorito, o Leôncio (Wally Walrus). Confesso que tinha uma quedinha por ele (ei, o pessoal do e-zine ZeroZen acha que a Smurfette "dá um caldo", por isso não me recriminem).

O episódio seguia seu curso, quando de repente, numa cena, há um brusco corte. Como o desenho é beeem anitgo, pensei ser uma falha normal. Porém, mais adiante, mais um corte brusco, dessa vez de uma parte que se alojou em minha memória graças à canção que o Pica-Pau entoava.

Eu não entendi de imediato, mas ao me lembrar da canção, tudo fez sentido. Ele canta uma trovinha popular americana, que é mais ou menos assim:

My bonnie lies over the ocean
My bonnie lies over the sea
My bonnie lies over the ocean
Oh, bring back my bonnie for me

A única explicação possível para tamanho disparate: alguém da alta cúpula da Globo simplesmente mandou editar essa parte por causa da semelhança fonética entre bonnie e Boni, o ex-todo-poderoso da emissora. Como no final a canção pede pra trazer de volta my bonnie, algum novo chefão rancoroso e ciumento deve ter sentido os cornos doerem.

Não é ridículo até que ponto um ego sem controle pode arruinar uma boa lembrança? Nem na emissora concorrente, onde, de certa forma, farioa mais sentido essa "censura", houve essa supressão. Pensando bem, é perfeitamente compreensível a insistência em trazer de volta a "Rainha dos baixinhos"...



Há duas coisas que adoro nos novos televisores: as teclas SAP e Closed Caption. Elas permitem que eu assista diversos filmes com som original e com legendas (meu Inglês não serve nem pra falar Big Mac), com um atrativo extra: um invlountário humor vindo das descrições dos sons que acompanham a cena. Tudo bem, o CC é um recurso para quem tem problemas auditivos, mas é o máximo quando leio "fundo musical triste", "música agitada", "zunidos macabros"...

Houve um dia singular, contudo. Esatava assistindo um episódio da série 24 Horas e chegou a hora do comercial. Nada demais, era a hora do xixi, do copo d'água. Ao voltar, estava passando um comercial da cerveja Kaiser, quando eles tentavam enganar o público, dizendo que a bebida estava com "novo sabor". Cerveja com novo sabor? Qual? Garapa com groselha? Francamente... Mas enfim. Era um daqueles típicos comercias "bebida que cai no copo como uma onda" com um BGM que alguns publicitários denominariam "vibrante". Já tinha visto esse comercial antes e não estava muito atento, quando de repente, no final, quando alguém sussurrava antes do obrigatório "Aprecie com moderação", o closed caption entra em ação, escrevendo o que o fulano suussurrava:

Love is just the bell that she rings...

Meu queixo caiu. Murmurei um "hã?" estupefato. Por que alguém teria o trabalho de utilizar o CC num comercial, e numa frase em Inglês totalmente fora do contexto? O produto anunciado era cerveja, não amor ou sinos.

Seria uma evocação demoníaca? Um trabalho de hipnose coletiva? Bem, se for, não deu certo. Continuo tomando cerveja apenas duas vezes por ano e a Nova Schin disputa o terceiro lugar com a Antarctica com chutes no saco e dedo no olho.

E, definitivamente, o amor é muito mais barulhento que um sino.

(Texto escrito em 21 de maio de 2005)

23.9.09

Vinte e três

Da luta que foi ter meu Atari à luta que é sobreviver com a merreca que a prefeitura me paga, se foram 23 anos. No início desse tempo eu estava descobrindo o que era rock, por que diabos eu tinha que saber quem era Mem de Sá e o que eram capitanias hereditárias. Eu era apenas um sujeito interiorano alienado, querendo o supracitado videogame e um par de tênis "de marca", qualquer uma que não fosse Motoca, Montreal, Kichute ou Conga.

Nesses 23 anos, eu tive uma terapia de choque musical. Das duplas sertanejas que ouvia e dos cantores populares com quem fazia coro debaixo do chuveiro (Minha interpretação de "Eu vou tirar você desse lugar" merece destaque), passei para a chamada Black Music que ouvia na maior novidade desde a caneta Pilot, a rádio FM, mais especificamente a Bandeirantes - antes de reduzir seu nome e seus neurônios. Ou o chamado "rock", que nada mais era que a versão pop das guitarras. Pra se ter ideia, eu conheci os Beatles não com seus hinos iê-iê-iê ou suas psicodelias, mas com os delírios bregas "Ob-la-di, ob-la-da" e "Lady Madonna". E debaixo do chuveiro comecei a treinar embromation com a versão de Sting para "Eu vou tirar...", chamada "Roxanne".

Foi durante essas duas décadas que deixei a vida medíocre que minha família apresentou a mim tomar conta por pura inação. Tive chance de cursar o SENAI, quando isso ainda era algo abonador. Meu tio não me apoiou e não tive vontade de lutar com meus próprios recusros. Quando as dificuldades em continuar estudando se tornaram muros, ao invés de escalá-los preferi dizer que era muito difícil transpô-los. Mas nem tudo foi tão ruim: conheci Shakeaspeare, pelo menos algumas frases. Li Drummond, mas não me peça pra recitar. Aprendi a ser só sem que isso me deixasse amargo. Desenvolvi um bom nível de tolerância às adversidades, porém por muito tempo não soube lutar contra elas, pelo menos não com as armas certas.

Quando enfim tive discernimento, já era tarde. Não cursei faculdade nenhuma, passei de emprego em emprego sem galgar postos mais altos. Meus sonhos de consumo eram maiores que minhas aspirações pessoais, a morte para quem almeja ter mais que um futuro promissor. Agora sei que gosto de música com levada rocker, guitarras funk, piano jazzy e vocais diáfanos (caraca, pareço um daqueles críticos da Bizz!). Desenvolvi um senso de humor inoportuno e sem graça. Descobri que gosto de sorvete de pistache e isso dá um trabalho do cão, pois a maioria gosta ou de morango ou de chocolate, ou uma mistura dos dois. Aprendi algumas palavras em inglês, outras em espanhol e muitas na minha própria língua. Tornei público meus preconceitos e aceitei cada um deles como os filhos que jamais terei.

23 anos depois, volto a ver a vida sob um retrospecto um pouco mais claro. Cínico, nada inteligente, um bocado arguto em alguns momentos. Com o espaço de praxe para os arrependimentos e as brechas para novos acertos e erros. Poderia ser um desrespeitado professor de Português, por exemplo. Um frustrado jornalista. Um feliz dicionarista. Uma celebridade efêmera de algum programa mundo-cão.

Sou apenas um blogueiro ocasional, que por enquanto também é funcionário público, com nada além de um canudo do ensino médio conseguido em uma eliminação de matérias após uma frustrante temporada em um EJA (Educação para Jovens e Adultos), que tinha versões falastronas, bêbadas, sexistas, conformistas e incapazes de querer algo mais que "uma boa nota" de mim mesmo. Tenho um arremedo de família, pouco respeito dos meus pares, alguns carnês não pagos e uma alegria insana e não justificada toda vez que me levanto cedo para ir ao trabalho.

Respiro meus desejos e espero os próximos 23 anos, já velho demais para exigir algo mais do que um Atari e um par de chinelos.

(Só escrevi isso porque toda vez que leio uma postagem do Rafael Galvão, me sinto o maior troço de merda do Universo. Meus sinceros respeitos por você ser tão brilhante em suas opiniões, principalmente às que divergem das minhas, e por ser o que eu poderia ter sido se eu não fosse tão... eu.) 


17.9.09

Sem medo não há vida

Morbidez, de acordo com o dicionário, é qualidade do que é enfermo, doente. Não sei se minha nova idade tem algo a ver com isso, mas de uns tempos pra cá tenho pensado muito na morte.

Calma. Antes que pensem que vieram a mim impulsos suicidas inconvenientes - vamos direto ao ponto: suicídio é burrice. Por que adiantar algo que inevitavelmente vai nos acontecer, quer nós queiramos ou não? - , apenas estou me dando conta dessa loucura efêmera e viciante que é a vida. E me dou conta disso vendo a morte de perto.

Primeiro, a morte da inocência. O mundo era vívido, cheio de bonecos em sépia, culpa da televisão preto-e-branco e desejos pueris por um amigo imaginário, uma goma de mascar de hortelã e tampas de lata de cera usadas como "discos voadores" (nem sabia que o neologismo frisbee existia). Eis que um dia descobre-se a vida com seus desejos sexuais, sonhos de consumo mais complexos e frasese com duplo sentido insuspeitos. Jogamos o punhado de terra na vala e vemos o esquife descer, chamando isso de maturidade.

Aí os projetos e ilusões morrem a cada currículo não lido, a cada nota ruim na escola, a cada frase preconceituosa. Mais um esquife, e o que resta, além do caule de uma gérbera, é um cadinho de sentimentos que pode se tornar cinismo, revolta, permissividade, passividade...

Para quem ainda consegue sobreviver e ser uma pessoa dita "normal", com lembranças e algumas ambições, vê a Morte, aquela com M maiúsculo (desde que vi a criação de Neil Gaiman, ela agora é para mim a garota gótica com o Ankh pendurado). Eu vejo a Morte quando alguma figura pública deixa o plano físico e se torna imagens de arquivo.

Dia desses, estava conversando com minha irmã e disse "o dia que eu ouvir que o Cid Moreira morrer ,algo em mim vai morrer até que meu dia chegue". Elegi o apresentador e locutor por associação de ideias (estávamos assistindo ao Jornal Nacional), mas ela me falava do estranhamento em falar do Michael Jackson como mais uma personalidade morta.

Não digo que a morte dele não tenha me causado espécie; o que diluiu o impacto dela foi o circo de horrores midiático que a elegia e o posterior funeral se transformaram. Porém me lembrei de mortes que me fizeram sentir mais perto daquela angústia inexplicável. Como a morte do Peter Ustinov. Do Peter Sellers. Do Ulysses Guimarães. Da Lillian Lemmertz. Da Dina Sfat. Aquele tipo de personalidade que aparentemente não te causa nenhum frisson quando está lá, cantando, atuando, pedindo votos ou o que quer que seja, mas quando se vai, solta-se um "nossa, fulano morreu", como se eles fossem, por intervenção de suas exposições quase onipresentes, destnados à imortalidade.

No dia 15 de setembro, mais um desses personagens "onipresentes" morreu. Talvez a culpa dessa presença fossem as reprises quase mensais de Ghost. Ou a adoração de minha irmã pelo filme Dirty Dancing - ela sempre se arrepia ao ver o número de dança final com Jennifer Grey.Ou minha implicância com a overdose de canstrice de Caçadores de Emoção (fala sério, Keanu Reeves, agente do FBI surfista? Gary Busey?). O fato é que Patrick Swayze era um porto seguro. Alguém que sempre estaria lá para que eu pudesse destilar meu cinismo ou fazer um comentário nada abalizado sobre qualquer coisa.

Não sei o que me deu. Ao me deitar naquela noite, até Hercule Poirot, ficção pura, visitou meus pensamentos. E Agatha Christie. David Niven. Renato Russo. Rubem Braga. Vi aquela representação do Gaiman. E dormi um sono pesado, sem sonhos depois do meu peito ser apertado por um calhamaço de inúteis angústias.

O engraçado é que a vida continuou no dia seguinte.

4.9.09

É só um número, não é mesmo?

No dia 27 de agosto, completei 40 anos. Datas redondas costumam ser mais visadas que outras, porém se dependesse unicamente de mim, seria apenas mais um dia, como nos anos anteriores. O grande problema é que o número quarenta também chegou a algumas "instituições" nesse ano. Resultado: se eu olhasse a televisão, lá estava o número. Em algumas camisetas, um quarenta enorme. Nos jornais. Na internet. A internet. Isso porque eu cresci ouvindo "1969 foi um ano sem graça".

Neil Armstrong dando o pequeno passo. O seu Internê, hoje uma onipresença. Cid, Sérgio, William e Fátima dando boa noite. O avô do sistema Linux. Os manos muito loucos se enlameando. E regionalmente, a autarquia de água e esgoto - nada mal para uma cidade onde, na década de 1970 e em parte da de 1980, ainda se buscava água na bica e nem fazíamos ideia do significado prático das palavras "saneamento básico". E minha tentativa de fazer essa data ser apenas uma passagem a mais na direção do fim mostrou-se ineficaz diante da força dessa força poderosa chamada "mídia".

Bem, já que não consegui esquecer que agora faço oficialmente parte dos "tiozinhos", dei tratos à bola. Resolvi ganhar presentes, e a única pessoa que poderia me fornecer esses mimos é a única que me ama incondicionalmente: eu mesmo. Reduzi tudo a um pequeno frenesi consumista, oferecido por uma grana inesperada e muito bem-vinda. Lógico que minha primeira providência foi matar no ninho qualquer revolta hippie sobre o real valor da vida, não quantificado pelo dinheiro. Isso é muito lindo em algum espaço utópico que ainda mantenho entre o apagar das luzes e o sono, mas a vida, desde que o ser humano decidiu dar valor a pedras e papéis, tornou a ambição parte de nossas vidas travestida de "empreendedorismo", "coragem", "qualidade de vida" e outros eufemismos jornalísticos.

OK, primeiro presente: a quitação de minhas dívidas. Sabia que isso consumiria boa parte de meus proventos, mas também sabia que isso me livraria, pelo menos por algum tempo, de alguns dissabores. Me deu pena ver tanto dinheiro indo embora assim, e ainda por cima pra bancos.
Depois, uma sessão de massagem. Sentir músculos retesados ficando livres de tensão, mãos firmes conduzindo seu corpo a um  nirvana carnal, quase dormir. Seu  Osvaldo, definitivamente o dinheiro mais bem gasto comigo mesmo em muito tempo.

O dicionário. Esatva passeando entre sites, quando vi um Houaiss na Saraiva. Dos habituais 250 reais, uma baita grana, caiu para 158. Ainda uma baita grana, mas eu a tinha e dessa vez não havia desculpas. Não devia satisfação a ninguém (em 1990, eu quase comprei um Aurélio, mas meu querido tio, que tantas vezes antes atravancou minha vida profissional e pessoal, disse  "aquilo era dinheiro jogado fora, pega essa grana e faz uma boa compra pra despensa!") e era um desejo acalentado há três décadas. Imprimi o boleto.
Quando a caixa chegou, não me contive. Cheirei, apalpei, li, senti a textura. E fiquei como bobo repetindo "agora eu tenho um dicionário". Agarrado a ele como se ele tivesse sido parido por mim.

Também me permiti sonhar. Me dei um dos encadernados do Sandman de Neil Gaiman. Queria o primeiro, "Prelúdios e Noturnos", mas não achei. Fiquei com "Fábulas e Reflexões", que reúne histórias que podem ser lidas sem prejuízo da coerente cronologia dos 75 números da revista. Contos majestosos, meu amigo. Ele une terror e mitologia, sonho e pesadelo  em histórias urdidas com um cinzel de palavras quase mágico. Claro que não há magia, e sim uma pesquisa profunda dos personagens abordados e das mitologias (grega, cristã, muçulmana) que faz com que Sandman ultrapasse a fronteira de ser "apenas banda desenhada" - um dia respeitam a nona arte por isso, e não a execram pelos Rob Liefelds da vida - e se transforme em Literatura, com L maiúsculo.
O bom é que não preciso esperar as areias do Oniromante para ter alguns sonhos. Até porque meu sono é pesado e ruidoso.
Ah, roupas... nem faz tanto tempo assim, eu andava em verdadeiros andrajos, por pura falta de amor-próprio. Sempre comprei roupas apenas para não andar nu e quando elas naturalmente se desgastavam eu as remendava. Minhas calças com remendos entre as pernas são tristemente famosas por onde quer que eu estivesse, porque alguém sempre reparava. Piorou quando comecei a trabalhar exclusivamente com mulheres, bichos futriqueiros - que mané detalhistas, isso é invasivo. E politicamente correto de cu é rola - que notam até a cor do cadarço dos meus sapatos.
Isso só me colocou uma determinação: comprar roupa. Muita roupa, como eu jamais tinha feito em minha vida. Ultrapassei cotas auto-impostas por medo e covardia. Sapatos, meias, calças, camisetas. Me senti uma patricinha, com a diferença que o que moveu essas compras foi a particidade e os preços, não as grifes.

E claro, mais acesso à internet. Se antes meu objetivo era voltar a ter um computador, meu lado prático me alertou: de que adianta um PC sem conexão à grande rede? Por mais que a grana que eu tinha e mãos pudesse me dar a ilusão de poder manter, digamos, um modem 3G, meus proventos normais (ou seja, meu salário baixo) puseram essa tola ambição no seu devido lugar: dentro do meu dicionário!

Depois de tudo isso, voltei ao normal e me dei meu habitual presente de todo ano - e enfim meu lado hippie pôde se manifestar livremente, pois esse presente não precisa de dinheiro.
Nove horas da manhã do dia 27 de agosto. Calço os tênis depois de ter escolhido roupas leves. Saio sem ser notado, não porque sou discreto, mas porque ninguém se importa. Abro o portão; a cidade me espera.
Em silêncio, ando pelas ruas já não tão calmas de Indaiatuba. O céu está tão azul que penso ser parte de algo sublime, porém indefinido. Sento na grama, olho o espelho d'água perto da prefeitura. Uma garça propositalmente se exibe, deixando um pequeno rastro finito na água.
No Centro, as pessoas com olhar perdido são apenas sons indefinidos de passos. A fonte da praça jorra, um sabiá se banha no jato coreografado. Paro, mas depois me vou.
Uma sombra me espera ao meio-dia. Ninguém mais me incomoda. Respiro pausadamente. A cidade sempre é minha em meu aniversário. Eu a tomo nos braços. Ouço meu próprio sussurro. "Feliz aniversário, vellhote".

40 anos. Não sou tão importante quanto o sistema Unix. Nem tão famoso quanto Armstrong. Nem psicotropicamente louco quanto a geração do poder da flor. Minhas lágrimas não abastecem ninguém. Mesmo assim tenho 40. Boa noite. Som de rotativas.


Italian Music of the 17th Century by Altri Stromenti

3.9.09

O amanhã existe

Tenho uma propensão à preguiça maior que a habitual. Desde fevereiro esse blog está abandonado. E nem é por falta de opinião ou do que dizer. Não que minhas palavras tenham algo maior ou menor, eu aprendi a não me levar a sério demais. Mas acontece o de sempre: vou a uma lan house.Acesso por duas, três horas. De repente lembro de uma música e a procuro no You Tube. Hoje, por exemplo, voltei à infância ao ouvir uma esquecida canção da Turma do Balão Mágico. Mnemonicamente, uma coisa puxou outra. E outra. E outra. Lá se foi minha vontade de batucar.

Aí me recordo de minhas tentativas em ser um contista ficcional. Era uma tentativa honesta, uma trama de ficção científica ambientada no passado, coincidentemente parecida com minha vida. Ao passar os olhos em um de meus sites prediletos, o Omelete, contudo, descubro que há uma série na BBC com uma temática parecida. Como jurar desconhecimento não adianta nada nessa era de informações velozes, abandonei a trama antes que algum sujeito olhe e me acuse. Lei de Murphy existe e insiste em ser cumprida, principalmente se você insiste em que algo dê errado.

Lendo o habitual excelente texto do Inagaki sobre procrastinação, vi o que estava fazendo. E sinceramente me envergonhei. Um escriba do quilate do japaraguaio se achando, hã, um procrastinador (como sou pobre, sou vagaba mesmo) mesmo postando no InterNey, no Yahoo!, no Tumblr, na Rolling Stone... e eu, curtindo férias (que já estão no fim, que pena. Pensem o que quiserem, mas amo ficar de bobeira nos meus trinta dias de férias. Andar à toa, sentar e vegetar numa das praças de Indaiatuba, dormir, minha nossa, dormir!) e nem usar esse tempo livre pra, por exemplo, dizer que CONSEGUI COMPRAR UM DICIONÁRIO, DEPOIS DE TRÊS DÉCADAS! Como ninguém pode me mandar embora do meu próprio blog ( eu morro e não vejo tudo mesmo...), essas letras maiúsculas representam graficamente a minha satisfação em ter, finalmente, um pai dos burros. Mais que um computador, que tive e infelizmente se foi, o dicionário era um desejo acalentado desde meus 10 anos.

Imagine um moleque remelento em uma Indaiatuba em versão menor e mais caipira. Imagine esse mesmo moleque vendo a versão completa do Aurélio na biblioteca da cidade, tomando ciência das primeiras palavras mais elaboradas em papel-bíblia. Imagine a frustração em não poder levar para casa, e pior: nem podendo comprar. Agora tenho um Houaiss. Papel-bíblia. 447 mil verbetes. E não usei nenhum deles pra postar algo aqui.

Se bem que existe a metalinguagem. Usar o objeto pra falar sobre o próprio objeto. Usei isso uma vez, e até gostei. Foi um lance ficcional bastante satisfatório. Acho que estou fazendo isso nesse exato momento. E enfim, após sete meses, algo foi postado aqui. Antes que isso me assombre de novo.

Não que eu acredite em fantasmas. Não acredito. Até o momento em que eles puxam minha sintaxe embaixo da cama.


Handshake Smiles by Arthur Yoria

2.1.09

Coldplay Fix You - Legendado Português

É o que vou fazer em 2009. Me acompanha?

Madeleine Peyroux - Dance me to the end of love

De Leonard Cohen, com carinho, na voz de dona Peyroux. Feliz 2009.