19.1.07

A ida

Cinco e dez da manhã. O celular, sem crédito, funciona como despertador e toca uma melodia sintetizada com o sugestivo nome “Zen”. Os olhos abertos de repente se acostumam com a nova escuridão e me estico; primeiro as pernas; músculos reticentes em despertar, auxiliados pelas falanges dos pés; arqueio minha coluna e puxo meus braços longe do tronco, estalando os dedos durante o processo. Me levanto, calço meus chinelos pretos e me dirijo ao primeiro interruptor disponível.

Cinco e vinte da manhã. Debaixo do chuveiro, me ensaboando, ouço os primeiros proto-ruídos do dia. Um bem-te-vi, um ônibus, uma torneira. Silêncio. Pardais, um carro, passos sonoros. Silêncio. Ainda nu e molhado tiro as penugens de minhas bochechas e queixo, chamadas carinhosamente de “barba” por alguns engraçadinhos. Às vezes uso creme de barbear, mas me acostumei à espuma do sabonete.

Cinco e meia da manhã. Dou tchau ao meu irmão, que pedala sua bicicleta em direção ao seu trabalho. Tomo um copo de água, verifico meus pertences numa sacola de compras (camiseta, suspensórios e algum item de higiene pessoal ocasional) e saio, não sem antes ver se no puxadinho onde meu tio mora as luzes estão acesas. Se estiverem, me despeço dele também.

No meio do caminho, duas figuras recorrentes: o baixinho peludo e seu saco de pães, que nunca me cumprimenta e some na primeira rua da Vila Costa e Silva, sempre usando camiseta regata e bermuda e um homem já idoso, esbelto, bigode pequeno e grisalho, ou vestindo jeans e camisa ou trajando um daqueles conjuntos de moletom,também com pãezinhos. Trocamos um bom-dia rápido e impessoal.

Cinco e quarenta. Utilizo as calçadas da CECAP, vazias até as imediações da praça Renato Vilanova. Uma viatura da guarda municipal e sonolentos moradores esperando o ônibus dividem o espaço entre o banheiro público e o ponto de ônibus. De longe vejo as luzes das geladeiras do supermercado e o velhinho que aparentemente “toma conta” do patrimônio sentado numa das cadeiras de um dos caixas, olhando para fora. Seus óculos refletem as fortes luzes do lado de fora.

Um pouco mais à frente as duas senhoras que todos os dias caminham juntas e que há pouco estavam atrás de mim me alcançam e me superam; as duas com cabelos grisalhos (a de estatura mais baixa os tem por completo), as duas usam óculos, as duas vestem calças corsário em tons cáqui e camiseta com o logotipo da SESLA (Secretaria de Esportes de Lazer). Raros comentários e passos firmes até o viaduto da rodovia SP-75. De repente, clique!

Passo em frente a uma loja recém inaugurada que tem um sensor de movimento – clique! – que aciona lâmpadas fluorescentes, iluminando a vitrine. As roupas são irreais demais para um gordo como eu e não me chamam a atenção, excetuando-se uma inscrição ou outra em Inglês numa camiseta baby-look.

Cerca de cinco e cinqüenta. A padaria que delimita o fim da CECAP (na verdade o nome oficial do bairro é Núcleo Habitacional Brigadeiro Faria Lima. Entenderam o porquê usamos mais a sigla - Central de Casas Populares?) aromatiza a calçada. Lá o quilo do pãozinho francês custa 4 reais e 50 centavos. Uma padoca que, após a reforma, ficou com ar chique, com direito a uma cafeteria, tevê de 29 polegadas, mesinhas e um canto com gôndolas cheias de produtos de mercearia. De lá saem uma mulher de rosto pouco amigável, policiais saciados de sua fome matinal, outra mulher, bonita, com roupas compatíveis à sua faixa etária – blusinhas e saias curtas, alguns homens uniformizados, uma sucessão de logotipos de empresas situadas aqui.

Cerca de seis horas. Alguns raios de sol tímidos deixam o horizonte atrás do Jardim Kyoto avermelhado e já estou na calçada da Fundituba, uma (dããã...) fundição situada em um enorme terreno entre a CECAP e o Parque das Nações. Calçada ampla, onde os pedestres são obrigados por força da velocidade a conviver com ciclistas. Cruzo com os habituais senhores e senhoras, caminhando juntos por recomendação médica e com outros uniformizados. O homem que passa assoviando canções sertanejas antigas passa como um bólido em sua bicicleta. Já reconheci “Chico Mineiro”, “Franguinho na panela”, “Baile na roça” e “Fio de cabelo”. É assustador conhecer tantas músicas que não ouço com freqüência.

Já no Parque das Nações, o sol já um pouco mais pronunciado e o horizonte, agora acima do Centro de Atividades do SESI, já fica mais azul do que vermelho. Próximo ao PAT (Posto de Atendimento ao Trabalhador) uma banca abre sua porta e seu dono ajeita as edições dos jornais do dia e algumas revistas recém-chegadas. Um anacrônico cheiro de almoço se apossa entre o meio e o final do bairro; cebola, alho, óleo de soja e caldo de carne, vindos de um restaurante especializado em marmitas. Espero ver o grande luminoso do Habib’s, em frente à rotatória da avenida Ário Barnabé. É o fim de mais uma parte do trajeto e verifico a hora. Seis, seis e cinco.

A avenida Ário Barnabé corta o Jardim Morada do Sol, de longe o maior bairro da cidade. Ela forma um trapézio com a base voltada pra cima; o cume é a ponte sobre o córrego Barnabé. Os postes são novos e formam uma grande serpentina iluminada no centro, junto à ciclovia também nova. Ando no lado esquerdo. Desço sem esforço o declive (pra baixo todo santo ajuda!); perto da terceira padaria (o pão está 4,50 o quilo também) os guardas noturnos trocam os turnos lentamente entre goles de café: o guarda do supermercado, os guardas de uma empresa não identificada. Junto deles há uma matilha de cães, cinco ou seis (é, sou exagerado, mesmo), esperando as sobras de comida e um pouco de carinho.

Antes do aclive começo a me transformar em uma entidade: o moço do postinho. Quando cruzo com gestantes recebo um olhar de reconhecimento seguido de um “oi” acompanhado de um sorriso. Se as mulheres são pacientes de climatério, a abordagem é diferente. O olhar é de dúvida, seguida da pergunta: “escuta, você não é o moço do postinho?”. Quando confirmo, relutante, sou bombardeado com perguntas diversas sobre dias, horários e eventuais queixas.

Subo a segunda parte da avenida e não há como deixar de comparar meus atuais 37 anos aos meus 18, 20. Uma época onde eu ainda era gordo, porém bem mais resistente às distâncias e aos acidentes geográficos. Bastava um par de chinelas velhas, uma bermuda puída e uma camiseta e lá estava eu, vendo o (pouco) movimento do centro da cidade, perambulando pela zona rural, vendo ao longe o estande de tiro da comunidade helvética ou simplesmente vendo o pôr do sol em pontos hoje impossíveis.

Há um ponto de referência espertamente colocado no alto da avenida: um Cristo de braços abertos. Duas quadras antes da estátua do filho do Senhor, segundo a liturgia cristã, dobro a rua 32, à esquerda. Começa o final da peregrinação, diante da confusa numeração do bairro. Depois de uma grande loja de materiais de construção e de dar bom dia a um velhinho que sempre encontro sentado numa pequena mureta, as ruas perpendiculares seguem uma ordem definida provavelmente entre doses de cerveja e porções de salame: primeiro a rua 26, depois a 27, 28, 29 e 30. Logo após vem a 75 (isso mesmo!), a 76, a 77, a 78, que é onde fica o posto e depois a rua... 53, a rua 79, a 80, a 81, a 82... é melhor parar por aqui.

Perto da quarta padaria (3,50 o quilo do pão) o catador de papelão e latinhas – ops, reciclador, de acordo com a cartilha politicamente correta – conduz um carrinho já lotado em silêncio e de cabeça erguida. A rua é estranhamente deserta nesse horário, seis e quinze mais ou menos; alguns moradores saem sobre duas rodas, motorizadas ou não ou a pé mas uma quietude nervosa reina. Mais três quadras e chego perto da quinta padoca (olha, 2,99 o quilo do francesinho!) e da escola estadual que divide a quadra com o posto. Retiro as chaves dos portões do bolso.

Seis e meia, um pouco mais. Se for segunda ou sexta-feira, certamente já há algumas pacientes aguardando a coleta de sangue e agendamento de prevenção. Nos outros dias há sempre uma ou duas querendo ser “a primeira”. Não deixo de me irritar internamente. Nunca vi com bons olhos essa mania de se formar filas antes do horário de abertura de qualquer instituição. Os bancos, por exemplo; se eles abrem às 10 horas, por que perder uma preciosa hora de nossas vidas sob sol ou chuva? O prazer de ser “o primeiro da fila”, talvez? Ou a culpa é da quase endeusada falta de tempo... o fato é que independente de tudo isso, a verdade é uma só: os bancos só abrirão às 10, os postos só abrirão às 7. Se não há necessidade de senhas prévias, as filas formadas horas antes são inúteis, contraproducentes até. Ih, olha o panfletário!

Abro os portões tanto da rua 78 quanto os da rua 53. Dentro do posto, depois de acender as luzes, me limpo rapidamente. Camiseta nova, suspensórios no lugar, fito o espelho. Às vezes não gosto do que vejo; olhar perdido, algo desesperançado, músculos sem expressão. Quando me vejo assim, jogo água em meu rosto e bato em minhas bochechas vigorosamente. Uma, duas, no máximo três vezes. “Isso mesmo, acorda par vida!”, penso em voz alta, junto com o mantra ensinado por Alexandre Inagaki: “a vida é boa e cheia de possibilidades”. Quando reconheço meu sorriso saio e me preparo.

Sete horas. Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo!