2.9.06

Loucura, loucura, loucura!

Não leio nada de importante há uns cinco anos. Para quem não saía da biblioteca municipal sem um livro, me tornei um velho leniente com minhas "obrigações literárias". Certo, nunca passei a fronteira intelectual dos best-sellers da minha época, mas que eu vivia com um livro nas mãos sempre que possível, vivia. Agora a situação é outra.

Não tenho mais meu cantinho de leitura, ou seja, qualquer lugar de minha casa ou da cidade silencioso o suficiente para concentração. Em casa meus sobrinhos comandam a fuzarca; os adolescentes berram e ouvem rap e pancadão, as crianças brincam felizes. Fora dos muros do meu lar os neo-vendedores de pamonha e a poluição sonora dos carros, pessoas e coisas não deixam espaço para que possamos contemplar sequer a beleza do dia, que dirá um livro.

Ontem, contudo, ao chegar em casa depois da chuva, minha irmã desencava dois livros que tinha esquecido que tinha: "O Perfume", de Patrick Süsskind e " A Rua das Ilusões Perdidas", de John Steinbeck. Estava me lembrando disso durante minha caminhada quando parei numa banca para comprar uma revista qualquer e vi um display com livros de bolso da L&PM. Ao invés de comprar a tal revista, comprei "Elogio da Loucura" de Erasmo de Rotterdam.

É minha versão de "de suco de uva para crack, sem escalas". Desejem-me sorte!

31.8.06

Amigo é coisa pra se guardar em uma cela acolchoada

Amigo é uma palavra cujo significado eu desconhecia até meus vinte e cinco anos. Não, criaturas maldosas, eu não preciso de um dicionário; o significado que eu não sabia não era o gramatical e sim o pessoal e “prático”, digamos assim. Mas vamos por partes, como diria Jack, o estripador.

Me descrevi tanto para o Janio quanto para o Marco como um quase autista na minha infância, adolescência e parte de minha idade adulta. Entre meus 5 e 12 anos, meu mundo particular me bastava. O mal de aprender a ler cedo demais – ah, os programas infantis de outrora! – é não ter com quem conversar sobre o pouco que eu lia, seja sobre as mal compreendidas páginas dos jornais (qualé, eu mal tinha saído das fraldas!) ou as palavras em Inglês que apareciam no desenho do Pica-Pau. Não me restava alternativa, pelo menos sob a ótica infantil, senão criar meu universo.

Esse mundo imaginário, muito mais pretensioso do que ter um simples amigo imaginário, tinha trilha sonora, tramas estapafúrdias que eu considerava geniais, heróis e vilões retirados das novelas, seriados e livros de Agatha Chrisite, J. M. Simmel e Luis Fernando Veríssimo. Numa Indaiatuba que hoje só existe nas lembranças de quem têm mais de 25 anos meus pés sentiam as folhas de indaiá, a terra fértil, meus olhos viam os bigodes de Hercule Poirot, os vestidos vitorianos de Miss Marple, o preto-e-branco acinzentado dos desenhos do Pernalonga e meus ouvidos captavam minha voz narrando o trabalho das saúvas e dialogando com os personagens que citei.

Imaginem o choque quando tive que me relacionar com pessoas do mundo real em meu primeiro dia de aula! Ainda bem que havia as palavras amigas, que adquiriram significado e os números. Não sabia o nome de nenhum de meus colegas de classe, porém sabia o que era um camelo e uma zabumba. E que havia soma e subtração. Era um mundo tão maravilhoso quanto o meu, exceto pela s vezes em que alguns estranhos me chamavam pelo nome.

Na adolescência meus hormônios deram poucos sinais de revolta. Meu mundo foi reforçado com a inclusão do Homem-Aranha, Super-Homem, Batman e Wolverine. Os estranhos até tinham nome, mas não ressonância. Tentei ter desejos consumistas tão caros na era yuppie, pedindo meu primeiro par de tênis “de marca”. Quando vi que a única diferença entre a tal marca famosa e o que eu usava desde sempre era apenas o preço voltei aos meus roteiros, dessa vez para histórias em quadrinhos. Eu me achava o Machado de Assis das HQ’s até ler Alan Moore. Intelectualmente foi meu primeiro desvio rumo ao chão da vida.

Já com meus 25 anos descobri que nenhum homem é uma ilha, para meu pesar. Trabalhar em equipe, saber o nome dos estranhos e tratá-los pelo nome. Ou apelido. A maturidade mostrou (escancarou, na verdade) os 720 graus do mundo tridimensional e cruel, mas ainda assim belo. Sobraram resquícios, evidentemente: andar e pensar em voz alta, me perder em meus delírios enquanto converso com alguém.

Amigos? Só os cultivei após descobrir depois de alguns percalços o que sou, como me comporto, do que gosto, do que não gosto, porque faço o que faço, onde pretendo chegar. Talvez graças ao meu passado autista (ou, em bom Português, background), aprendi a conviver com as manias das pessoas e gostar delas assim mesmo.

Dentre meus amigos, um deles nunca vi pessoalmente, outro mora tão longe que se não fosse a Internet jamais saberíamos da existência um do outro. Há as mulheres... é impressionante como consigo ser amigo delas. Antes eu era um jacu, pronto para me esconder ao ver uma mulher vindo em minha direção. Existem pessoas que não são mais estranhas e intrusas.

E em alguma gaveta empoeirada meu universo aguarda quieto que eu o visite enquanto durmo. Eles às vezes me convidam pra tomar chá ou capuccino. Recuso polidamente à luz do dia. Pelo menos enquanto não sinto o aroma dos biscoitos.

28.8.06

Seja civilizado com um barulho desses!

Dentre meus hábitos, um dos mais prosaicos é sair de um supermercado com algo pra comer na rua. Desde que os supermercados tornaram-se presentes em minha vida, mais ou menos quando eu tinha 12 ou 13 anos, eu degusto algum repasto processado por uma empresa alimentícia.

(Um pequeno apêndice: até meus 12 anos minha família fazia compras em armazéns. Para os que não se lembram ou não sabem do que estou falando, era mais ou menos assim: fazíamos uma lista de compras mensal em casa, detalhada com nome e quantidade, e nos dirigíamos ao armazém - ou o do seu Gentil, a menos de 200 metros de casa, ou o do seu Oscar, uns 800 metros mais longe. Chegando lá entregávamos a lista ao atendente, que era o proprietário ou um de seus familiares, que os pegava e os dispunha em cima do balcão. Os sacos de arroz de Capivari, o feijão a granel colocado num saco de papel cinza, o açúcar cristal, o café moído na hora - aquele aroma era extraordinário! - e o que mais me fascinava: o óleo a granel que vinha em tambores de 200 litros, bombeado por um apetrecho sensacional, movido a manivela; ele puxava exatamente um litro em um receptáculo no giro da manivela no sentido horário e o despejava no garrafão de vinho vazio - era o que usávamos para acondicionar o óleo - no sentido anti-horário.)

Nas sacolas, entre as compras "sérias", havia sempre um pacote de biscoito ou bolacha, ou iogurte para beber (ou "bebida láctea a base de iogurte"... puxa, essas regras da Anvisa não têm poesia!) ou uma barra de chocolate, uma bebida gaseificada ou não, ou até uma fruta rara em casa, como pêra ou uva. O prazer era imenso: se eu não tinha muitas sacolas, o produto era consumido durante a caminhada; se as sacolas se multiplicavam em minhas mãos eu procurava uma praça aconchegante e me sentava, mastigando e observando os transeuntes.

Desejo satisfeito e um problema que deveria ser menor aparece: onde eu vou jogar os restos de meu consumo - latas, embalagens, talos, sementes? No lixo, responderia alguem que ouvisse pergunta tão banal. Mas o que seria uma banalidade transforma-se num transtorno aqui em Indaiatuba.

Pelo que sei, produzimos uma média de 500 gramas de lixo por dia. Não falarei aqui dos aterros sanitários à beira do colapso ou de reciclagem, e sim compartilhar uma verdade ridícula: não há latas de lixo o suficiente aqui.

Se eu fosse como muitos de meus patrícios eu solenemete ignoraria a higiene e jogaria tudo o que não me serve mais em qualquer canto, seja numa calçada, uma boca-de-lobo ou terreno baldio. Só que aprendi a não sujar mais do que o necessário, pois sei o trabalho que dá limpar. Infelizmente aqui em Indaiatuba achar uma lata de lixo fora dos pontos estratégicos (praças centrais, os centros de compras, prédios públicos) é impossível.

Tome como exemplo a avenida Francisco de Paula Leite. Ela atravessa a zona sul inteira e só há dois lugares onde podemos depositar o lixo ocasional: em frente ao CAT do SESI e perto de um boteco, que deixou um tambor de 200 litros amarrado a uma árvore. Se você chupar uma bala, tomar um refrigerante ou comprar uma revista que venha embalada num daqueles filmes plásticos tem ou que esperar até chegar a um desses pontos ou guardar o trambolho e jogar no lixo de sua casa.

Num dos inúmeros quadros que Regina Casé e seu marido Estevão Ciavatta criaram pro Fantástico, ela criticou a falta de higiene e de civilidade dos que jogam lixo na rua, dentre outras coisas. Também me lembro de um senhor que trabalha na empresa de coleta aqui na cidade dizendo que a culpa da falta de lixeiras era do próprio povo, que as vandaliza. Ou seja, enquanto há esse tradicional jogo do empurra, quem quer apenas cumprir sua obrigação fica com uma garrafa PET na mão e alguns imprompérios na cabeça.

27.8.06

O trabalho, o homem e a dignidade.

Trabalhar, para quem nasceu em uma família pobre (nada daquele retrato de "famintos, esfarrapados e coitadinhos". Apenas o pobre que nunca teve carro e demorou pra comprar a primeira tevê a cores, certo?) nunca foi uma opção rentável. Ou você tinha um emprego ou não pagava as contas e sequer comia. Por isso sempre vi os empregos que tive apenas como fonte de subsistência; desde meu primeiro emprego, atendendo fregueses numa rotisserie até minha ocupação em uma usinagem de peças automotivas nunca vi aquilo como fonte de prazer pessoal, como alguns exemplos endeusados pelas mídias não se cansam de mostrar.

Nunca vi o trabalho que tinha com bons olhos. Depois de três meses em todos os meus empregos, as garras corporativas mostraram-se afiadas e mortais. E olha que sequer saí do chão de fábrica... desde o coleguinha que ensinava a rotina de trabalho de maneira errada só pra ver o novato ser queimado logo no primeiro mês (isso era mais acintoso quando o novato em questão dava claras mostras de competência) até ser vítima da famigerada Rádio Peão com o único intuito de desmoralizá-lo, nesse poucos porém eduactivos anos como auxiliar de produção vi o que uma empresa poderia me dar: somente meu salário.

Depois de alguns anos essa simplificação me causava uma angústia inexplicável à primeira vista; eu tinha um emprego, esse emprego me pagava em dia e mesmo assim a sensação de falta, ou pior, de perda aflorava. Foi preciso a maturidade para dar a resposta:estagnação.

Se eu começava na empresa como auxilar de produção, eu invariavelmente como... auxiliar de produção. Se eu tivesse a iniciativa de continuar meus estudos, logo me mostravam que isso "era uma tremenda bobagem", pois eu já era bom no que fazia. Como nunca fui conhecido por meu espírito empreendedor (pra ficarmos no popular: eu era um babaca mesmo), aceitava sem questionar, mesmo que a angústia que essa decisão (ou melhor, a falta de decisão) me causava.

A estagnação trouxe um efeito colateral que potencializava a inquietude: a falta de desafio. Não havia estímulo para ser pró-ativo, para termos idéias, para exercermos nosso lado criador. Isso me lembra um episódio envolvendo Alfred Hitchcock: quando Kim Novak, se não me falha a memória, durante as filmagens de Um Corpo que Cai questionou ao diretor: Alfred, qual a minha motivação nessa cena? , ele respondeu, à guisa de ironia: o seu salário.

Há muitas pessoas que consideram o dinheiro a coisa mais importante da vida. Bem, é importante, mas dentro da medida (um dia falo melhor sobre isso. Prometo que não será uma apologia à casa no campo e ao amor verdadeiro, tampouco uma ode à força da grana que ergue e destrói coisas belas - nossa, vocês reconheceram a citação de Caetano Veloso, é?). Quando sua vida resume-se a acordar com o despertador-entrar no ônibus-picar cartão-apertar botão-carregar coisas-comer algo rapidamente-voltar e fazer a mesma coisa até a tarde, sem que no intervalo haja uma nova descoberta intelectual, um desafio - e poderia ser simplesmente mudar de setor por uma semana - , você pode despertar de repente e ver que décadas se passaram e você continua ouvindo as mesmas músicas, gostando dos mesmos filmes, atado ao mesmo piso sem saber mais apertar o play de um DVD.

Quem chegou até aqui deve estar se perguntado: por que esse cara está falando isso? Bem, porque estou em um novo emprego há exatos quatro meses e pela primeira vez, estou gostando do que faço. Mas gostando mesmo !

Há dois anos eu estava desmpregado há quase sete meses e estava atirando em todas as direções. Um dos tiros que dei foi participar, com dinhero emprestado, de um concurso público. Muitos me diziam que eu estava jogando dinheiro fora, pois a maracutaia rolava solta, havia muitos cargos comissionados ocupados por apadrinhados de fulano, et cetera. Bem, pra resumir: não sou afilhado de ninguém, nunca tive costas quentes e passei em 26º lugar. E no dia 27 de abril de 2006 fui convocado a ocupar meu cargo de auxiliar adminstrativo na secretaria da saúde.

Meu salário não é dos melhores, mas há a inequívoca vantagem da estabilidade e algo que nunca tive em meus empregos anteriores: desafio. Lidar com o público e suas idiossincasias - ser xingado às vezes - , aprender o que dizer e o que fazer quando certas patologias aparecem, e saber que ser mulher não é moleza (eu trabalho num ambulatório especializado em saúde da mulher. Imagine o baque em mim, que sequer sabia o que era papanicolau!).

Pouco a pouco sei como é gostar do que faço. Quem foi que disse que de onde menos se espera é de onde não sai nada mesmo?