3.2.07

(In)explicando o amor

Amor. Não é algo que eu conheça tão bem. O amor não é como um vizinho onde nos refugiamos quando precisamos fofocar ou pedir uma chave de fenda emprestada. O amor não é como a fome, que se contenta com qualquer prato de salada de alface ou um fumegante frango ao molho pardo. Ele pode estar ao seu lado, dando colo e carinho; pode saciar e aquecer enquanto pula sob a pele.

O amor é um estranho sem nome. Não é o pai que nos confecciona um carrinho de rolimã, a mãe que nos aguarda pacientemente no portão da escola ou o irmão com quem dividimos tapas e o saquinho de pipoca. O amor apenas faz o coração bater em descompasso, emocionado e com medo; nos afaga no umbral da porta qual vento marinho e quase nos faz maldizer a dor que a ausência de cinco minutos e uma palavra obscura causam.

Muitos dizem que preciso encontrar e conhecer o amor. Como? Ele não é uma taça de absinto até a borda, verde e altamente inebriante. Tampouco é o ar, invisível porém facilmente notado ao dilatarmos as narinas buscando tanto ar quanto aromas. Ele não é uma caneta esferográfica nem um caderno. Não se presta a ser ouvido como as sete notas musicais. O amor nos deixa atordoados, com passos inseguros e com uma ressaca só curada com mais uma overdose. Ilude a todos fingindo ser vital e, tão bem fundamentados são seus argumentos mudos, torna-se parte da circulação e das terminações nervosas. Passa para a eternidade gravada na batida frase “eu te amo” dita n vezes.

Se o amor fosse sólido como um aperto de mão, líquido como o banho revigorante, rápido como o carro de competição, seria possível ter um conhecimento, ainda que pífio, da estrutura – forma, cor, cheiro, sensação. Se pudesse conversar com o amor, sentados frente a frente, eu e ele, talvez ele se explicasse e eu pudesse me fazer entender. O grande problema é o imponderável. O amor não aperta a mão, e sim o peito; não banha, afoga; não conversa, nos insere num monólogo. Como podemos criar um campo hospitaleiro diante dessa muralha?

O amor dá medo. Ele pula em cima dos incautos sem cerimônia. Você está descendo do ônibus e no final do degrau, pam! A criatura mais linda do mundo. Você está nervoso, cuspindo cigarros e orações pagãs e pam! O bebê mais lindo do universo, seu filho ou filha. Você está num sofá, vigiando o ponteiro dos segundos, mastim impaciente e pam! A campainha ou o barulho do trinco, prenúncio do abraço. O avião ou o ônibus afasta duas pessoas e pam! Grossas gotas salgadas minam dos olhos.

Há quem desdenhe o amor, não por conhecê-lo, mas por não poder mantê-lo sob rédeas submissas. O amor não é um cãozinho adestrado, um peixinho dourado acomodado, um gato castrado. O amor não é animal, vegetal ou mineral. Ele é o orgulhoso detentor de um feudo na malha do tempo e da eternidade. O eventual desdém é simplesmente a maior prova de ignorância, no sentido puro da palavra, do que seja o amor.

Não sei o que é e nunca o conhecerei. Mas se ele não se incomodar, não farei o mínimo esforço para entender. Não criarei canções, não pintarei quadros expressionistas, não me derreterei em versos decassílabos, não dissecarei teorias, teoremas, monografias, roteiros e hipóteses. Apenas beijarei a boca de quem amo.

2.2.07

Alguns agradecimentos

Obrigado, pai. Obrigado, mãe. Além da óbvia junção de gametas que me criou, agradeço pelas lições tortas de vida. Se meu irmão não soube assimilar a ausência de vocês como fortes figuras paterna e materna, tive que ser mais tenaz do que o recomendável e isso me salvou. Devo minha vontade de viver e de superar adversidades a vocês.

Obrigado, Andréa, Kátia e Wagner, meus irmãos, por me ensinarem os mistérios desse sentimento estranho chamado “amor incondicional”.

Obrigado, vô Antônio. Não pelas poucas lembranças, pois você se foi quando eu ainda era menos do que uma criança remelenta, mas pelo cheiro de seu chapéu de palha, sua voz anasalada a falar calmamente entre goles de cachaça Capuava e pelo brilho no olhar, uma criança atrás de um bigode grisalho.

Obrigado, vó Maria. Seus dedos a empurrar angu e feijão em minha boca quando eu era bebê (meu tio vive me contando isso), seu cachimbo a soltar a fumaça acre do fumo de rolo, seus cabelos brancos presos num coque. Um corpo tão frágil ser responsável pela união de todo um núcleo familiar pelo menos até 1982 merece homenagens e agradecimentos.

Obrigado, Ana Maria, Juca, Garibaldo e Gugu. Graças ao empenho de vocês no programa “Vila Sésamo”, aprendi a ler aos quatro anos.

Obrigado, professora Sandra. Pelas suas letras pontilhadas em um caderno de caligrafia desvendei o hieróglifo das letras e descobri que era destro. E descobri que o Z é da zabumba.

Obrigado, Maria Ângela. O que seria da vida de alguém sem ter sofrido por um amor não correspondido? Obrigado por ter feito brotar em mim sentimentos doces e bonitos, que me acalentam a cada sorriso dado por quem quer que seja.

Obrigado, professora Maria Ermínia, por ter enfiado nessa cabeça caótica a fórmula de Báscara. Obrigado, professora Fátima, por me mostrar que the book is on the table. Obrigado, professora Esmeralda, por ser séria até demais quando cometíamos erros crassos de Português. Obrigado, professor Fubá, pela tirania nas aulas de Educação Física e por entender que eu só servia como goleiro nas partidas de futebol de salão. E obrigado, Professor Deoraci, por tornar minha quarta série mais colorida, literalmente. A primeira folha do caderno de desenho foi preenchida por uma paisagem pintada com lápis de cor pelo professor. Uma casinha, uma palmeira, o sol, um lago e a assinatura dele, numa harmonia lautrequiana.

Obrigado, Siegfredo Sieg, por oferecer meu primeiro emprego com carteira assinada. Não que você tenha sido o melhor patrão do mundo, mas o primeiro holerite é inesquecível.

Obrigado, irmãos Barbieri, por terem amenizado meus cinco anos perdidos como servente de pedreiro. José, João e Benedito eram três velhos palhaços que, entre argamassas, tijolos e gramas, adoravam tecer galhofas sobre minha adiposidade e elogios sobre meu aparentemente incompatível desempenho no trabalho. Perdemos o contato diário mas não a amizade.

Obrigado, Ângelo Queriquelli, por abrir meus olhos ao mundo invisível dos sem-teto. Ele dormia debaixo de uma das mangueiras atrás do hospital Augusto de Oliveira Camargo e um dia me abordou com uma sinceridade impressionante. Do primeiro real para tomar cachaça aos papos sobre a vida indaiatubana, cruel sob o ponto de vista dele, havia uma cumplicidade que muitos achavam estranha. Poucos conseguiam enxergar a elegância e os bons modos debaixo das roupas velhas e sujas, a inteligência sem parnasianismo debaixo da barba espessa que ele sempre teve o cuidado de manter aparada com o auxílio de uma velha tesoura. Quando ele morreu em 2004, só, abandonado em um banco de praça, lamentei por sua fraqueza e pedi a paz que ele tanto almejava no torpor alcoólico. E agradeci, claro.

Obrigado, RP. Seu nome será uma incógnita, por respeito. Mas obrigado pelos sentimentos fortes que você me proporcionou. Pelos suspiros também.

Obrigado, Rical Usinagem. Contratar alguém sem experiência para pilotar tornos CNC não é comum; é considerado “loucura” por alguns. Pela confiança, sou agradecido.

Obrigado, Janio José Sarmento. Você não precisava contatar um estranho que o aborda numa sala de bate-papo. Não precisava estreitar laços de amizade com um sujeito que mora a 1200 quilômetros de você. Não precisava me receber como o coração recebe sangue arterial. Não precisava ser minha consciência e meu guru. Você foi tudo isso e mais coisas que só não direi aqui porque sei que você detesta melação. Obrigado, irmão.

Obrigado, Marco Antonio Veloso, por dividir suas lágrimas comigo enquanto lia meus frustrados projetos ficcionais e por me inspirar definitivamente a criar um blog. Obrigado pelos telefonemas intermináveis nas madrugadas e pelas piadas.

Obrigado, Fernando Dibe Pinto. Recebi seu perfume com alegria e pretendo repartir. Obrigado por ver em mim uma promessa de algo melhor, por clarear alguns aspectos de minha percepção e pelos hiperbólicos elogios, além das verdades que preciso escutar. Sempre será um enorme prazer ler e ouvir você, fougère.

Obrigado, Alexandre Inagaki. Por tê-lo descoberto por acaso, graças ao texto sobre o filme “Simplesmente Amor” e por ter me dado a honra de fazer parte de seu blogroll. No bom sentido, claro.

Obrigado, Rafael Galvão. Fiquei bestificado com sua inesperada indicação. Bestificado e honrado, pois adoro seus textos – mijo nas calças de tanto rir quando você viaja n’ “As alegrias que o Google me dá”! Aceito críticas duras também, viu?

Ah, sim. Obrigado a você. Sim, você mesmo. É, você, que está lendo esta postagem . Muito obrigado por ouvir o que tenho a dizer.

Pinça de memórias

Sou blogueiro desde 2002. Quando soube desse meio de comunicação graças a um artigo de Rosana Hermann, entusiasta de primeira hora dos diários virtuais, vi o substituto perfeito para meus cadernos infindáveis e violáveis. Desde meus 12 anos escrevo coisas. No início eram “poemas” (notem as aspas, por favor), depois “contos policiais” – resquícios de meu amor por Agatha Christie, mais especificamente por Hercule Poirot, Georges Simenon e as coletâneas de Alfred Hitchcock. Ah, Robert Bloch também! – e finalmente “crônicas”. Ler caras como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Lourenço Diaféria, Fernando Sabino (não o julguem por “Zélia, uma paixão”, por favor) e Luis Fernando Veríssimo me fizeram pensar que era fácil escrever como eles. Pra utilizar uma expressão utilizada por um amigo, capaz!

Vi o blog como a forma de expressão ideal, sem passar pelo crivo de um editor ou de leitores sub-reptícios (ih, por que o floreio? Um bando de bisbilhoteiro mesmo!). Entre 2002 e 2003 mantive um diário confessional (sem link, é verdadeiro demais e certas verdades só podem ser ditas a algumas pessoas) que me permitiu ter uma rede de poucos e bons amigos (em Português, networking) que mantenho até hoje. Entre hiatos causados tanto pela falta de tempo quanto pela falta de dinheiro e a falta de um computador à grande rede sempre houve, em maior ou menor número, algo escrito por mim e lido pelos poucos e bons amigos.

De uns anos pra cá, contudo, alguns cérebros privilegiados foram seduzidos pela liberdade que o blog oferece. Jornalistas, ensaístas, escritores, atores... e o que era apenas “curtição” transformou-se em “quinto poder”. Muitos ganham a vida, literalmente, blogando; outros usam os blogs como meio de veiculação de notícias; blogs são quase trincheiras de batalha pela liberdade em alguns países não tão democráticos (embora o caso da famosa modelo com o Você Tubo tenha feito nosso vívido país regredir a níveis medievais jurídica e democraticamente falando). Enquanto isso, meu blog descreve apenas... minhas coisas. O que me fez pensar qual é a utilidade de meu diário.

Dia desses estava pensando nisso e comecei a me lembrar de momentos vergonhosos de minha vida, ridiculamente comuns e quase todos com o mesmo roteiro. O início é sempre em uma calçada qualquer.
(Estranho esfuziante) – Sidnei!!!!
(Eu, estupefato, porém com um sorriso no rosto) – Oi, tudo bem?
(O estranho, animado) – Nossa, há quanto tempo! Você não mudou nada, hein?
(Eu, assustado, mas ainda sorrindo) – Pois é, rapaz. E você, como vai?
(O estranho, cada vez mais falante) – Bem, tô bem. Estou trabalhando na (...) desde que eu saí da (insira uma empresa onde trabalhei até 1996), rapaz. E você, hein? Ainda fortão, gordão, que nem quando você fazia (insira uma atividade braçal qualquer)! Tem visto Fulano de Tal?
(Eu, prestes a ganhar um Oscar de melhor ator) – Não, faz teeeempo! Na verdade, perdi contato com a maioria do pessoal da (empresa).
(O estranho, à guisa de despedida) – Falou, Sidnei, deixa eu ir. Bom te ver, rapaz, não suma!

Quando esse diálogo finda, fico parado longos segundos me perguntando: quem cazzo é esse cara? O estranho sabe meu nome e sabe onde trabalhei e minha memória não liga o rosto dele a nenhum evento. Por muito tempo achei que o problema fosse apenas falta de sinapses, algo puramente físico. Na verdade o problema é outro.

Um dos personagens de John Steinbeck em “A Rua das Ilusões Perdidas” tem sua mente descrita como “um museu repleto de peças não-catalogadas”. Minha infância autista, repleta de amigos imaginários e minha adolescência ensimesmada criaram uma barreira onde não havia nomes e rostos, fatos relevantes e possibilidades mnemônicas. Hoje tenho um amontoado de fantasmas que resolveu me assombrar, me chamando pelo nome e detalhando algumas peculiaridades.

Esse blog, mesmo inconscientemente, tem o firme propósito de catalogar minhas lembranças e transformá-las em algo memorável. De certa forma é um objetivo nobre. Pessoal, mas nobre. A escolha do nome do blog tem a ver com isso, mesmo que antes isso não estivesse claro. Quem sabe, num futuro quiçá conectado em minha casa, eu não me torne alguém com algo a dizer além de minhas próprias coisas?