Algumas
coisas precisam do julgamento implacável do tempo para sabermos se
terão importância para entendermos o mundo em que vivemos. O
zeitgeist é formado por um caldo cozido em um caldeirão disforme e
em fogo brando; o sabor pode ser doce, amargo, fugidio, penetrante...
e será sentido desta maneira de acordo com as deidades pessoais.
Publicado
em 1998 pelo escritor e jornalista Peter Biskind, Como a Geração
Sexo, Drogas e Rock'n'Roll Salvou Hollywood (Easy Riders, Raging
Bulls: How the sex, drugs and rock'n'roll generation saved
Hollywood), tinha tudo para ser apenas um livro de fofocas indecentes
e picantes sobre as starlets hollywoodianas que deram um gap no
cinema estadunidense entre o final dos anos 1960 e a década de 1970.
Felizmente, Biskind sabia exatamente o que tinha em mãos, além de ter talento para extrair de seus entrevistados as etéreas lembranças
de uma época tão chapada.
Preciso
confessar, contudo, que o que me atraiu para o livro a ponto de
comprá-lo foi saber que a tradução é de Ana Maria Bahiana. Há
tempos, quando ainda sofríamos com o escorbuto nas naus portuguesas,
lia de tempos em tempos uma revista chamada SomTrês, onde fui meio
que educado a ouvir mais coisas além das rádios AM. Entre um mar de
críticos inteligentes porém rancorosos, destacava-se para mim as
resenhas equilibradas e impecavelmente bem escritas de Ana Maria
Bahiana; foi uma de minhas primeiras “grifes pessoais”, ou seja,
pessoas que eu acompanharia onde quer que elas estivessem e fazendo o
que quer que fizessem.
Claro
que, falando de algo que me interessa muito, que é o cinema, comprar
o livro e posteriormente lê-lo era questão de achar a oferta certa.
Porém, o medo de que o livro fosse apenas um compêndio de carreiras
de cocaína e baganas de maconha me fez ter dúvidas; afinal, não
conhecia o senhor Biskind. E qual não foi a minha surpresa ao ver
que o cabra manja?
Peter
Biskind contou parte da história do cinema, ponto. Por isso seu
livro não tornou-se datado, inconsistente e parcial. Quer dizer, não
muito parcial; é inevitável que as opiniões do autor sobre os
filmes essenciais e o estado da indústria cinematográfica permeiam
os capítulos, mas isso é feito de maneira a não eclipsar o que
realmente importa: o impacto da chamada Nova Hollywood e seus
artífices no cinema combalido e enfraquecido, quase à deriva, da
Velha Hollywood. E a consequente derrocada desta “nova geração”
graças à inexperiência em lidar com o mais devastador pecado
capital: a vaidade.
Inteligentemente,
Biskind delimita a era dos pretensos auteurs estadunidenses entre
dois filmes, Sem Destino (Easy Rider, 1969) e Touro Indomável
(Raging Bull, 1980) e escancara todo o delírio dos personagens
principais na nada modesta empreitada de mudar o mundo do
entretenimento em busca da “arte”. Na verdade, o que pareceu, no
frigir dos ovos, foi que a chamada Velha Hollywood recuou quando não
sabia o que fazer com o som e a fúria dos anos rebeldes e
polarizados (Democratas/Republicanos, negros/brancos, guerra/paz,
careta/chapado – e isso é terrivelmente levado a sério pelos
estadunidenses e sua moral de caixa de leite) e ao ver o que os
representantes desta geração tinham a dizer e ensinar, voltaram com
mais subsídios intelectuais e cooptaram os que eram comercialmente
viáveis (Spielberg, Lucas, e por um tempo Friedkin, Coppola, Ashby)
ao esquema high-concept – tramas e sinopses que poderiam ser
resumidos em poucas linhas, vendidos em pacotes com astro, diretor e
faixa etária definidos – que fez a fortuna de produtores como
Jerry Bruckheimer e Joel Silver. Ou seja, a mesma Hollywood de sempre
com uma visão mais “moderna”, “comercial” e “vendável”.
Triste
foi ver a “contagem de corpos”, literal e figurativa. A quase
loucura de Francis Ford Coppola (nunca imaginei que Apocalypse Now
tivesse uma história tão conturbada assim!), a paranoia de Dennis
Hopper amplificada pelo álcool e drogas, as atitudes comercialmente
suicidas de Robert Altman e William Friedkin, a morte de Hal Ashby.
Foi a morte do diretor de Ensina-me a Viver (Harold and Maude, 1972)
que encerrou o livro. Mais do que um frio filme, foi o declínio de
um cineasta que determinou, pelo menos para Biskind, o verdadeiro fim
de uma era que, para o bem e para o mal, foi decisiva para a
indústria cinematográfica.
Como
a Geração Sexo, Drogas e Rock'n'Roll salvou Hollywood
Autor:
Peter Biskind
Tradução:
Ana Maria Bahiana
502
páginas
Editora
Intrínseca