24.9.11

Como a Geração Sexo, Drogas e Rock'n'Roll salvou Hollywood

Algumas coisas precisam do julgamento implacável do tempo para sabermos se terão importância para entendermos o mundo em que vivemos. O zeitgeist é formado por um caldo cozido em um caldeirão disforme e em fogo brando; o sabor pode ser doce, amargo, fugidio, penetrante... e será sentido desta maneira de acordo com as deidades pessoais. 
 
Publicado em 1998 pelo escritor e jornalista Peter Biskind, Como a Geração Sexo, Drogas e Rock'n'Roll Salvou Hollywood (Easy Riders, Raging Bulls: How the sex, drugs and rock'n'roll generation saved Hollywood), tinha tudo para ser apenas um livro de fofocas indecentes e picantes sobre as starlets hollywoodianas que deram um gap no cinema estadunidense entre o final dos anos 1960 e a década de 1970. Felizmente, Biskind sabia exatamente o que tinha em mãos, além de ter talento para extrair de seus entrevistados as etéreas lembranças de uma época tão chapada. 
 
Preciso confessar, contudo, que o que me atraiu para o livro a ponto de comprá-lo foi saber que a tradução é de Ana Maria Bahiana. Há tempos, quando ainda sofríamos com o escorbuto nas naus portuguesas, lia de tempos em tempos uma revista chamada SomTrês, onde fui meio que educado a ouvir mais coisas além das rádios AM. Entre um mar de críticos inteligentes porém rancorosos, destacava-se para mim as resenhas equilibradas e impecavelmente bem escritas de Ana Maria Bahiana; foi uma de minhas primeiras “grifes pessoais”, ou seja, pessoas que eu acompanharia onde quer que elas estivessem e fazendo o que quer que fizessem.

Claro que, falando de algo que me interessa muito, que é o cinema, comprar o livro e posteriormente lê-lo era questão de achar a oferta certa. Porém, o medo de que o livro fosse apenas um compêndio de carreiras de cocaína e baganas de maconha me fez ter dúvidas; afinal, não conhecia o senhor Biskind. E qual não foi a minha surpresa ao ver que o cabra manja?

Peter Biskind contou parte da história do cinema, ponto. Por isso seu livro não tornou-se datado, inconsistente e parcial. Quer dizer, não muito parcial; é inevitável que as opiniões do autor sobre os filmes essenciais e o estado da indústria cinematográfica permeiam os capítulos, mas isso é feito de maneira a não eclipsar o que realmente importa: o impacto da chamada Nova Hollywood e seus artífices no cinema combalido e enfraquecido, quase à deriva, da Velha Hollywood. E a consequente derrocada desta “nova geração” graças à inexperiência em lidar com o mais devastador pecado capital: a vaidade.

Inteligentemente, Biskind delimita a era dos pretensos auteurs estadunidenses entre dois filmes, Sem Destino (Easy Rider, 1969) e Touro Indomável (Raging Bull, 1980) e escancara todo o delírio dos personagens principais na nada modesta empreitada de mudar o mundo do entretenimento em busca da “arte”. Na verdade, o que pareceu, no frigir dos ovos, foi que a chamada Velha Hollywood recuou quando não sabia o que fazer com o som e a fúria dos anos rebeldes e polarizados (Democratas/Republicanos, negros/brancos, guerra/paz, careta/chapado – e isso é terrivelmente levado a sério pelos estadunidenses e sua moral de caixa de leite) e ao ver o que os representantes desta geração tinham a dizer e ensinar, voltaram com mais subsídios intelectuais e cooptaram os que eram comercialmente viáveis (Spielberg, Lucas, e por um tempo Friedkin, Coppola, Ashby) ao esquema high-concept – tramas e sinopses que poderiam ser resumidos em poucas linhas, vendidos em pacotes com astro, diretor e faixa etária definidos – que fez a fortuna de produtores como Jerry Bruckheimer e Joel Silver. Ou seja, a mesma Hollywood de sempre com uma visão mais “moderna”, “comercial” e “vendável”. 
 
Triste foi ver a “contagem de corpos”, literal e figurativa. A quase loucura de Francis Ford Coppola (nunca imaginei que Apocalypse Now tivesse uma história tão conturbada assim!), a paranoia de Dennis Hopper amplificada pelo álcool e drogas, as atitudes comercialmente suicidas de Robert Altman e William Friedkin, a morte de Hal Ashby. Foi a morte do diretor de Ensina-me a Viver (Harold and Maude, 1972) que encerrou o livro. Mais do que um frio filme, foi o declínio de um cineasta que determinou, pelo menos para Biskind, o verdadeiro fim de uma era que, para o bem e para o mal, foi decisiva para a indústria cinematográfica.

Como a Geração Sexo, Drogas e Rock'n'Roll salvou Hollywood
Autor: Peter Biskind
Tradução: Ana Maria Bahiana
502 páginas
Editora Intrínseca

18.9.11

O opositor






Conheci Luis Fernando Verissimo na Veja. Opa, é melhor contextualizar a frase acima, caso contrário algum incauto vai imaginar que eu e o escritor nos encontramos nos corredores da redação da revista semanal. De novo, do início.
Meados da década de 1980. Algumas professoras me presenteavam com edições antigas da revista Veja, quando o editor-chefe era o José Roberto Guzzo (leio tudo em uma revista. Tudo. Até o expediente).Mais do que o início da abertura política, fui fisgado pelas páginas iniciais, onde lia-se em grandes letras o nome “Luis Fernando Verissimo”. A primeira coisa que pensei foi “será que tem algum parentesco com o Érico?”. 
 
Depois do primeiro parágrafo, isso não importava mais. Descobri o meu segundo cronista preferido – o primeiro, mesmo depois de tanto anos, ainda é Rubem Braga – e uma referência para pesquisas. Sim, pois muito do que ele dizia era javanês aos meus olhos pouco letrados. Não foram raras as vezes em que eu me debruçava em um dicionário ou ia ao Barsa (crianças, sou pré-histórico; Wikipédia e Google sequer faziam parte do vocabulário corrente) por conta de uma palavra ou frase de uma crônica dele.

Também foi graças a Verissimo filho que odiei com toda a hemoglobina da minha corrente sanguínea durante uma década inteira o Jô Soares. Quando o hoje apresentador de talk-show o substituiu, eu me referia ao senhor Eugênio Soares usando um epíteto de três palavras: filho da puta. Mas já passou.

Passei a consumir Luis Fernando Verissimo na biblioteca, tanto nas coletâneas literárias quanto nas edições do Estado de S. Paulo. Enquanto Érico Verissmo era um sonho intelectual inatingível para uma capiau (embora eu secretamente quisesse ser um escritor tão intenso quanto ele), Luis Fernando parecia conversar comigo. O texto dele não era arrogante, tipo “minha educação formal é maior que a sua, chupa!”; se havia referências mais rebuscadas, elas faziam parte da estrutura assim como as moléculas de hidrogênio fazem parte da fórmula da água.

Após anos, ou melhor, décadas sem comprar um livro ou mesmo ler um (shame on me), estava eu no mês de Agosto numa fria e impessoal rodoviária quando vi na vitrine de uma livraria o nome dele, seguido de um título simples – O opositor – e um preço deveras convidativo. Não pensei duas vezes e comprei. Como ainda estava no meio da leitura de Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros, deixei para degustar as palavras de Verissimo depois, sem nenhum empecilho.

O que me chamou a atenção no início foi que esse livro faz parte de um projeto chamado 5 Dedos de Prosa. Embora eu ache estranha essa mania que algumas editoras tem em fazer com que um escritor aja como um operário do vernáculo, “forçando-o” a criar uma história a partir de alguma temática qualquer (foge um pouco ao meu conceito de liberdade criativa, mas sei que os tempos são outros e romantismo não paga as contas), foi muito feliz dar ao polegar, o incensado dedo opositor que tanta diferença fez na evolução do Homo sapiens, a verve e a imaginação de Verissimo.

Usando o conceito das teorias conspiratórias tão em voga desde o século XX, um pouco de história da Arte, fábulas brasileiras, religiosidade e mitologia, o livro cria um universo crível dentro um thriller de espionagem, onde a primeira coisa que se faz é a desconstrução da alucinação psicotrópica: dá-se a ilusão primeira de que o narrador sem nome está sob o efeito do chá alucinógeno servido por uma das personagens mais estranhamente incríveis criadas por ele, Serena, a “índia dinamarquesa”, pois o relato contado a ele por um sujeito eternamente embriagado, grande e estrangeiro, parece coisa de um filme do Paul Greengrass com um toque de LSD.

A maneira brilhante que Verissimo usou para usar o polegar na história faz com que a todo momento você se veja curioso para pescar as referências que ele usa, desde o versículo da segunda carta de Paulo aos Tessalonicenses à presença das Três Fúrias da mitologia romana, da epidemia étnica ao afresco de Fra Angelico. Tudo isso embalado em um suspense que faz com que o leitor queira chegar logo ao final, tarefa muito simples e prazerosa, pois é uma edição curtinha, pra se ler em uma sentada.

O opositor é uma crônica em forma de livro, onde os sabores dos sucos tomados pelo narrador sem nome – caju, açaí, seriguela, buriti, bacuri,patavá e sapiri – ilustram os atos em que a história se divide, cada sabor sendo uma alegoria do desenrolar dos acontecimentos. No final, resta apenas a água como simbolismo da purificação e da verdade. 
 
Todo esse blablablá só pra dizer que adorei o livro... preciso ser mais conciso da próxima vez.

O opositor
Autor: Luis Fernando Verissimo
Editora Objetiva
140 páginas