4.9.09

É só um número, não é mesmo?

No dia 27 de agosto, completei 40 anos. Datas redondas costumam ser mais visadas que outras, porém se dependesse unicamente de mim, seria apenas mais um dia, como nos anos anteriores. O grande problema é que o número quarenta também chegou a algumas "instituições" nesse ano. Resultado: se eu olhasse a televisão, lá estava o número. Em algumas camisetas, um quarenta enorme. Nos jornais. Na internet. A internet. Isso porque eu cresci ouvindo "1969 foi um ano sem graça".

Neil Armstrong dando o pequeno passo. O seu Internê, hoje uma onipresença. Cid, Sérgio, William e Fátima dando boa noite. O avô do sistema Linux. Os manos muito loucos se enlameando. E regionalmente, a autarquia de água e esgoto - nada mal para uma cidade onde, na década de 1970 e em parte da de 1980, ainda se buscava água na bica e nem fazíamos ideia do significado prático das palavras "saneamento básico". E minha tentativa de fazer essa data ser apenas uma passagem a mais na direção do fim mostrou-se ineficaz diante da força dessa força poderosa chamada "mídia".

Bem, já que não consegui esquecer que agora faço oficialmente parte dos "tiozinhos", dei tratos à bola. Resolvi ganhar presentes, e a única pessoa que poderia me fornecer esses mimos é a única que me ama incondicionalmente: eu mesmo. Reduzi tudo a um pequeno frenesi consumista, oferecido por uma grana inesperada e muito bem-vinda. Lógico que minha primeira providência foi matar no ninho qualquer revolta hippie sobre o real valor da vida, não quantificado pelo dinheiro. Isso é muito lindo em algum espaço utópico que ainda mantenho entre o apagar das luzes e o sono, mas a vida, desde que o ser humano decidiu dar valor a pedras e papéis, tornou a ambição parte de nossas vidas travestida de "empreendedorismo", "coragem", "qualidade de vida" e outros eufemismos jornalísticos.

OK, primeiro presente: a quitação de minhas dívidas. Sabia que isso consumiria boa parte de meus proventos, mas também sabia que isso me livraria, pelo menos por algum tempo, de alguns dissabores. Me deu pena ver tanto dinheiro indo embora assim, e ainda por cima pra bancos.
Depois, uma sessão de massagem. Sentir músculos retesados ficando livres de tensão, mãos firmes conduzindo seu corpo a um  nirvana carnal, quase dormir. Seu  Osvaldo, definitivamente o dinheiro mais bem gasto comigo mesmo em muito tempo.

O dicionário. Esatva passeando entre sites, quando vi um Houaiss na Saraiva. Dos habituais 250 reais, uma baita grana, caiu para 158. Ainda uma baita grana, mas eu a tinha e dessa vez não havia desculpas. Não devia satisfação a ninguém (em 1990, eu quase comprei um Aurélio, mas meu querido tio, que tantas vezes antes atravancou minha vida profissional e pessoal, disse  "aquilo era dinheiro jogado fora, pega essa grana e faz uma boa compra pra despensa!") e era um desejo acalentado há três décadas. Imprimi o boleto.
Quando a caixa chegou, não me contive. Cheirei, apalpei, li, senti a textura. E fiquei como bobo repetindo "agora eu tenho um dicionário". Agarrado a ele como se ele tivesse sido parido por mim.

Também me permiti sonhar. Me dei um dos encadernados do Sandman de Neil Gaiman. Queria o primeiro, "Prelúdios e Noturnos", mas não achei. Fiquei com "Fábulas e Reflexões", que reúne histórias que podem ser lidas sem prejuízo da coerente cronologia dos 75 números da revista. Contos majestosos, meu amigo. Ele une terror e mitologia, sonho e pesadelo  em histórias urdidas com um cinzel de palavras quase mágico. Claro que não há magia, e sim uma pesquisa profunda dos personagens abordados e das mitologias (grega, cristã, muçulmana) que faz com que Sandman ultrapasse a fronteira de ser "apenas banda desenhada" - um dia respeitam a nona arte por isso, e não a execram pelos Rob Liefelds da vida - e se transforme em Literatura, com L maiúsculo.
O bom é que não preciso esperar as areias do Oniromante para ter alguns sonhos. Até porque meu sono é pesado e ruidoso.
Ah, roupas... nem faz tanto tempo assim, eu andava em verdadeiros andrajos, por pura falta de amor-próprio. Sempre comprei roupas apenas para não andar nu e quando elas naturalmente se desgastavam eu as remendava. Minhas calças com remendos entre as pernas são tristemente famosas por onde quer que eu estivesse, porque alguém sempre reparava. Piorou quando comecei a trabalhar exclusivamente com mulheres, bichos futriqueiros - que mané detalhistas, isso é invasivo. E politicamente correto de cu é rola - que notam até a cor do cadarço dos meus sapatos.
Isso só me colocou uma determinação: comprar roupa. Muita roupa, como eu jamais tinha feito em minha vida. Ultrapassei cotas auto-impostas por medo e covardia. Sapatos, meias, calças, camisetas. Me senti uma patricinha, com a diferença que o que moveu essas compras foi a particidade e os preços, não as grifes.

E claro, mais acesso à internet. Se antes meu objetivo era voltar a ter um computador, meu lado prático me alertou: de que adianta um PC sem conexão à grande rede? Por mais que a grana que eu tinha e mãos pudesse me dar a ilusão de poder manter, digamos, um modem 3G, meus proventos normais (ou seja, meu salário baixo) puseram essa tola ambição no seu devido lugar: dentro do meu dicionário!

Depois de tudo isso, voltei ao normal e me dei meu habitual presente de todo ano - e enfim meu lado hippie pôde se manifestar livremente, pois esse presente não precisa de dinheiro.
Nove horas da manhã do dia 27 de agosto. Calço os tênis depois de ter escolhido roupas leves. Saio sem ser notado, não porque sou discreto, mas porque ninguém se importa. Abro o portão; a cidade me espera.
Em silêncio, ando pelas ruas já não tão calmas de Indaiatuba. O céu está tão azul que penso ser parte de algo sublime, porém indefinido. Sento na grama, olho o espelho d'água perto da prefeitura. Uma garça propositalmente se exibe, deixando um pequeno rastro finito na água.
No Centro, as pessoas com olhar perdido são apenas sons indefinidos de passos. A fonte da praça jorra, um sabiá se banha no jato coreografado. Paro, mas depois me vou.
Uma sombra me espera ao meio-dia. Ninguém mais me incomoda. Respiro pausadamente. A cidade sempre é minha em meu aniversário. Eu a tomo nos braços. Ouço meu próprio sussurro. "Feliz aniversário, vellhote".

40 anos. Não sou tão importante quanto o sistema Unix. Nem tão famoso quanto Armstrong. Nem psicotropicamente louco quanto a geração do poder da flor. Minhas lágrimas não abastecem ninguém. Mesmo assim tenho 40. Boa noite. Som de rotativas.


Italian Music of the 17th Century by Altri Stromenti

3.9.09

O amanhã existe

Tenho uma propensão à preguiça maior que a habitual. Desde fevereiro esse blog está abandonado. E nem é por falta de opinião ou do que dizer. Não que minhas palavras tenham algo maior ou menor, eu aprendi a não me levar a sério demais. Mas acontece o de sempre: vou a uma lan house.Acesso por duas, três horas. De repente lembro de uma música e a procuro no You Tube. Hoje, por exemplo, voltei à infância ao ouvir uma esquecida canção da Turma do Balão Mágico. Mnemonicamente, uma coisa puxou outra. E outra. E outra. Lá se foi minha vontade de batucar.

Aí me recordo de minhas tentativas em ser um contista ficcional. Era uma tentativa honesta, uma trama de ficção científica ambientada no passado, coincidentemente parecida com minha vida. Ao passar os olhos em um de meus sites prediletos, o Omelete, contudo, descubro que há uma série na BBC com uma temática parecida. Como jurar desconhecimento não adianta nada nessa era de informações velozes, abandonei a trama antes que algum sujeito olhe e me acuse. Lei de Murphy existe e insiste em ser cumprida, principalmente se você insiste em que algo dê errado.

Lendo o habitual excelente texto do Inagaki sobre procrastinação, vi o que estava fazendo. E sinceramente me envergonhei. Um escriba do quilate do japaraguaio se achando, hã, um procrastinador (como sou pobre, sou vagaba mesmo) mesmo postando no InterNey, no Yahoo!, no Tumblr, na Rolling Stone... e eu, curtindo férias (que já estão no fim, que pena. Pensem o que quiserem, mas amo ficar de bobeira nos meus trinta dias de férias. Andar à toa, sentar e vegetar numa das praças de Indaiatuba, dormir, minha nossa, dormir!) e nem usar esse tempo livre pra, por exemplo, dizer que CONSEGUI COMPRAR UM DICIONÁRIO, DEPOIS DE TRÊS DÉCADAS! Como ninguém pode me mandar embora do meu próprio blog ( eu morro e não vejo tudo mesmo...), essas letras maiúsculas representam graficamente a minha satisfação em ter, finalmente, um pai dos burros. Mais que um computador, que tive e infelizmente se foi, o dicionário era um desejo acalentado desde meus 10 anos.

Imagine um moleque remelento em uma Indaiatuba em versão menor e mais caipira. Imagine esse mesmo moleque vendo a versão completa do Aurélio na biblioteca da cidade, tomando ciência das primeiras palavras mais elaboradas em papel-bíblia. Imagine a frustração em não poder levar para casa, e pior: nem podendo comprar. Agora tenho um Houaiss. Papel-bíblia. 447 mil verbetes. E não usei nenhum deles pra postar algo aqui.

Se bem que existe a metalinguagem. Usar o objeto pra falar sobre o próprio objeto. Usei isso uma vez, e até gostei. Foi um lance ficcional bastante satisfatório. Acho que estou fazendo isso nesse exato momento. E enfim, após sete meses, algo foi postado aqui. Antes que isso me assombre de novo.

Não que eu acredite em fantasmas. Não acredito. Até o momento em que eles puxam minha sintaxe embaixo da cama.


Handshake Smiles by Arthur Yoria