30.9.06

As colinas estão vivas

Diz-me o que ouves e te direi quem és. Esse aforismo adaptado resume a importância da música na vida. Em qualquer vida. Imagine nossos ancestrais batendo em qualquer pedra e apreciando a reverberação. Imagine a matemática a serviço das notas musicais. Imagine o primeiro chato que analisou os timbres que ouvia sob uma ótica subjetiva e publicou suas impressões para que todos apreciassem seu “bom gosto”. Música é ódio e amor.

Todos têm sua lista de favoritos. Nick Hornby encheu seu já polpudo cofrinho escrevendo um livro sobre suas 31 canções. Blogueiros de todas as partes reviraram o baú atrás de melodias e dividiram conosco, ávidos leitores, suas preferências e lembranças. Durante minhas obrigações rotineiras em meu trabalho (o período da tarde, quando guardo os prontuários das pacientes) minha Rádio Neural entra em ação e desencava algumas coisas. Minha vida se ressente da falta de uma trilha sonora, por isso meu cérebro, doravante chamado Rádio Neural (sempre quis dizer isso!) foi, é e será meu iPod. E meu disco rígido separou algumas faixas comentadas:

- Nona Sinfonia, Beethoven – mentira. Um cara como eu, que cresceu ouvindo os programas do Zé Bettio e do Eli Correa, não pode sequer fingir erudição. Só conheci música clássica na idade adulta! Vamos falar sério agora.
- “Meu mundo e nada mais”, Guilherme Arantes – tinha cinco anos e minha mãe assistia uma novela chamada “Anjo Mau”. Para variar, a trama não me apetecia – preferia o meu universo – mas sempre que um piano começava a tocar e a voz aguda anunciava: “quando eu fui ferido/ vi tudo mudar/ das verdades que eu sabia...”, me pegava gravando a letra e cantando a plenos pulmões entre a vegetação rasteira perto de casa. Mal sabia eu o quanto essa música seria importante pra mim.
- “You and I”, Kenny Rogers e Bee Gees – alguém se lembra dos folhetos com letras de músicas em Inglês e suas traduções que as escolas Fisk distribuíam? Eu reservava alguns minutos de minha ida à escola para pegá-los nos idos dos anos 1980. Essa canção açucarada tocava à exaustão nas rádios, em programas do tipo “Toque de amor”, onde um locutor com voz de travesseiro grunhia cartas de ouvintes supostamente apaixonados. E dá-lhe “Total Eclypse of the Heart”, “Making Love”, “Take my Breath Away”...
“You and I” não tinha um grande apelo sentimental pra mim; ela apenas foi a primeira música estrangeira que consegui cantar junto sem apelar pro embromation. Se bem que ao ouvir os irmãos Gibb fazendo vocalise e o senhor Rogers cantando “All the man I am, you are the reason for me, you help me understand...”, não sei bem porquê, eu olhava para um ponto fixo no horizonte e suspirava.
- “Estrada da vida”, Milionário e Zé Rico – ter um pai fã de música sertaneja deixa seqüelas em qualquer ser humano. Ser arrastado a um circo fuleiro para ver Pedro Bento e Zé da Estrada com seus ponchos, ouvir discussões febris sobre as modas de viola de Tião Carreiro e Pardinho, ter vizinhos que pensam que sabem cantar e tocar violão. Se hoje fujo como cachorro em dia de vacina das canções da lista de sucessos (ou, em Português, playlist) de rádios como a Laser FM, devo tudo isso a meu pai e sua obsessão pelo maior sucesso da dupla acima citada. Ver aquele sujeito de óculos escuros com a mão no ouvido à guisa de retorno não ajudou muito, também.
- “Por isso corro demais”, Roberto Carlos – a Jovem Guarda só tocava em programas de música antiga (em Português, flashback) quando eu era moleque. Ah, e na vitrola Sonata de meu tio também. Ele tinha vários LP’s e compactos daquela época e os tocava no último volume. Bem, quem teve uma vitrola portátil deve se lembrar os “dolorosos” decibéis que ela despejava (risinhos contidos). Nenhum dos cantores, bandas, conjuntos ou o que quer que tocasse tinha nome pra mim, apenas as músicas, porque mais do que as letras, mais do que as tais “guitarras” ou a atitude “contestadora”, o que me fez ficar fascinado foi o som do órgão Hammond.
Aquele choro em forma de instrumento musical me causa arrepios até hoje e nenhuma música, IMHO, utilizou o órgão tão bem quanto em “Por isso corro demais”. Numa época que o proclamado Rei (que mania essa de coroar reis e rainhas numa república, não?) escrevia letras verdadeiramente românticas e com conteúdo, quase poesias populares, o LP “Em Ritmo de Aventura” foi uma aula de música popular com alma, e “Por isso...” foi a magnum opus.
- “Nada tanto assim”, Kid Abelha – década de 1980, abertura, anistia, o ocaso da MPB como força musical única. Os cantores populares não souberam transformar sua vertente em estilo, graças à vergonha que tínhamos do nosso produto; eles foram tachados pejorativamente de “bregas”. Nesse vácuo, alguns cariocas e paulistas e suas guitarras cunharam o chamado Rock Brasil, um angu derivado do punk, ska, surf rock... enfim, decidiram que o era legal (ou, em Português, cool) vinha de fora e falava Inglês.
Nada disso impediu a lapidação de alguns hoje clássicos, para o bem e para o mal. Quem viveu essa época não pôde, evidentemente, contextualizar o momento histórico mas se hoje há tolerância à angústia juvenil cantada, muito disso se deve aos Paralamas, Legião Urbana, RPM, Ira, e ao Kid, que conseguiu sintetizar as dúvidas dos jovens perdidos e vítimas da moda da década (ou você acha que calças de popeline verde-limão, tênis multicoloridos e mullets são dignos de figurar na história?). “Eu sei de quase tudo um pouco, e quase tudo mal” vaticina a era do excesso de informação e da progressão continuada.

Façamos o seguinte: assim que eu lembrar de mais, eu escrevo algumas abobrinhas. As colinas estão vivas com o som da música!

29.9.06

Glicerol e ácidos graxos, parte dois

A raiva já passou. Em meu antigo e curto blog fiz um “manifesto” sobre a cultura da magreza que grassa a sociedade. Foi escrito com raiva e não me dou bem com ela, sabe? Costumo perder o controle. Bem, vamos começar do zero.

Sou um cara obeso desde que me conheço. Uma criança gordinha (nunca dei a entender, mas odiava quando me chamavam de “fofinho”. Hoje, dependendo de quem diga, eu curto. Vai entender...), meio desligada e feliz. Não era do tipo glutão, nunca fui. A dieta de minha família era frugal: chá ou café de manhã, pão três ou quatro vezes por semana, arroz, feijão, alguma verdura, carne de frango caipira ou um embutido barato ou um bife. Doces eram raros, graças ao preço proibitivo tanto do açúcar quanto dos doces naquela época (pelo menos para nossos padrões), o que não impedia minha avó de preparar o mais delicioso doce de abóbora do universo.

O estilo de vida – termo utilizado em larga escala hoje, geralmente como muleta sintática – da família Trindade era o habitual dos seres periféricos: trabalho pesado e distâncias percorridas a pé. Como eu não sabia andar de bicicleta, caminhava pela cidade alucinadamente. Pedi aos meus pais para me matricular numa escola no centro da cidade, o que me garantia uma hora de caminhada por dia.

Não gostava muito de esportes. Tentei ser goleiro de futebol de salão nas aulas de Educação Física. Apesar de meu esforço não consegui ser contaminado pelo vírus ludopédico. As corridas em volta da escola (em Português, Cooper. E não me venham com aquela piadinha do Cooper feito!) eram uma caceteação sem fim. Não tanto pela corrida em si, mas pelas frases de apoio de meus colegas, mimos do quilate de “olha o toucinho correndo!”, “balança a banha, gordo!”.

Meus empregos foram braçais até 2005. Muito esforço físico e suor desprendidos em troca de meu salário. A frase bíblica do pão em troca da transpiração foi literalmente vivida por meus colegas e por mim. Ou seja, sou a antítese do estereótipo do gordo sedentário. Não sou sedentário. Mas sou gordo.

Não serei estúpido para negar os malefícios da obesidade. Há doenças demais ligadas a ela para que isso seja ignorado. O que me incomoda é o uso estético da “boa forma”. Os gordos foram alojados em guetos engraçadinhos ou fisicamente incapazes; a eles (ou a nós) são reservados os procedimentos cirúrgicos invasivos, as dietas de 1200 calorias e os coquetéis de benzodiazepínicos.

O que me incomoda é a simplificação. Falar que “obesidade é doença” é renegar a multiplicidade humana apenas porque alguns acham a gordura feia. Quem tiver problemas de saúde com o excesso de gordura tem que tratar. Quem for gordo e quiser emagrecer, que apele para os exercícios, dietas e diazepams da vida. Analisem antes de rotular.

Agora com licença. Se somos o que comemos, hoje eu serei uma pizza quatro queijos regada com suco de caju!

28.9.06

Esse coqueiro que dá manga...

A infância é chamada por alguns otimistas de a era da inocência por razões várias que vão desde as constatações sem aparas da realidade que nos cerca que só um petiz pode fazer até o sorriso que uma criança dá ao subir e descer em uma gangorra. Ultimamente algumas crianças não mais agem como tais, haja vista a profusão de informação a que todos somos submetidos. É até engraçado ver crianças com sonhos de consumo adolescentes; só não é mais hilário por que em algumas situações isso não tem a menor graça.

Dia desses estava recordando o pouco que me vinha à mente sobre esse período de minha vida, imaginando se alguém entre os, digamos, 3 e 10 anos se comportaria assim. Moleque gordo, algo solitário, cuja única companhia constante era a imaginação. A tevê mostrava suas garras naquele início de década - 1970 - mas eu só tinha olhos para meus desenhos favoritos (a saber: Pica-pau, Pernalonga, Tom & Jerry e os sortidos da Hanna-Barbera) e Vila Sésamo, onde aprendi a ler aos 4 anos, junto com diversos futuros colegas de classe. Novelas? Odiava, principalmente as de época (quando minha mãe e minha avó se acotovelavam para ver A Moreninha eu fugia para a rua ou pro matagal onde hoje é a Vila Costa e Silva). Não gostava do que os outros moleques diziam e como eles agiam, por isso me refugiava em meus enredos fictícios e trilhas sonoras cantadas a plenos pulmões.

Hoje não conheço meus vizinhos (fico puto quando meus irmãos, que adquiriram o hábito de falar de tudo e de todos sem critério, começam a falar de algum senhor Fulano ou senhora Sicrano e, vendo que eu não ligo o nome à pessoa, vociferam: mas você cresceu aqui e não conhece?) e os outrora moleques hoje são estranhos que me chamam pelo nome ou pelo diminutivo familiar - Nei, pra quem não sabe. Alguns deles já morreram graças a algo que só me dei conta que existia aos meus 15 anos: as drogas.

Pode parecer estranho, mas a tal curiosidade infantil e adolescente no que diz respeito a substâncias ilícitas não me atingiu. Meu mundo era o que os jornais velhos que lia (censurados, vim saber anos mais tarde), os livros que minhas professoras me davam e os bordões dos desenhos que assistia me mostravam, e eu interpretava esse mundo limitado e pueril no transe meditativo de minha fértil imaginação.

Bem, eu já conhecia o álcool, graças aos espetáculos que meu pai dava quando bebia e ao litro de vinho licoroso que fui obrigado a beber aos cinco anos, só pra meu pai dizer que "tinha um filho macho e que já sabia ler". Hoje eu e as bebidas alcoólicas mantemos uma relação distante (bem distante, aliás. Costumo dizer que se as cervejarias dependessem de mim, estariam fritas em banha de porco). Cigarros, claro, embora eu não achasse que era uma droga, graças a glamourização (ou seria glamurização?) que as propagandas propagavam (acreditem, seres politicamente corretos, veiculavam propaganda de cigarros - principalmente Arizona, Charm e Chanceller - nos intervalos dos desenhos). Lógico que após experimentar a coisa aos 15 anos e ficar com gosto de esgoto em minha boca por dois dias, me perguntei qual a real utilidade em inalar essa porcaria.

Mas as outras drogas? Só fui conhecer a maconha aos 15, ao ver alguns daqueles estranhos que me chamavam pelo nome fumando um troço enrolado em papel de pão, exalando um odor estranhíssimo e me convidando pra "dar um tapinha". Ao dizer que não fumava, eles retrucaram: "mas esse você vai fumar e se amarrar". Como vi que todos riam sem motivo aparente de qualquer coisa, resolvi sair dali e nem sequer dar o tal tapinha.

Quando completei a maioridade, em 1987, ouvi pela primeira vez a palavra "overdose", logo quando descobri o rock'n'roll e a black music (só pra reforçar, cresci ouvindo rádio AM, Zé Bettio e música brega). Mergulhei na única fonte de informação confiável na era pré-Internet (não que a grande rede seja confiável, mas...): a biblioteca. Pelo menos deu pra ver o jeitão dos tais piscotrópicos.

Infelizmente nessa época muitos ligavam as drogas a uma atitude contestadora, uma espécie de Woodstock com atraso de décadas. Muitas pessoas usavam Aldous Huxley como desculpa, dizendo que maconha, cocaína e afins abriam as portas da percepção (que original, né?) e afirmavam que caras como eram um bando de idiotas. Maldita era yuppie!

Usavam os mais variados exemplos de como as drogas facilitavam o processo criativo: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Alan Moore, até Shakeaspeare. Não sei bem porquê ninguém mencionava que esses produtos eram ilegais, causavam prisões, mortes, danos físicos e psicológicos...

Bem, estou muito bem assim. Sou careta, minha imaginação é comum (agora dá pra entender de onde o senhor Moore tirou inspiração pra escrever algo tão torturante e voraz quanto Watchmen. Haxixe causa delírios psicóticos!) e continuo a desconhecer os tão falados pontos de tráfico de meu bairro. Mas às vezes penso: se eu tivesse sucumbido ao canto da sereia psicodélica, estaria eu preparando bananada de goiaba como o Gil?

(Republicação vinda de meu antigo e curto blog, Lentes Adiposas)