2.11.06

As colinas estão vivas - a missão

Locução de Dirceu Rabelo: “Uma Rádio Neural linha dura, batendo de frente com uma banda de nü metal barra pesada! Hoje, na Sessão da Tarde!”.


- “Michelle”, The Beatles – como qualquer ser humano nascido no final da década de 1960 e morador do interior, só conheci os besouros do ritmo (é, ficou horrível mesmo. Quem manda transportar uma piada interna pro blog?) em programas de flashback, e ainda assim com aquelas músicas (você leva “Ob-la-di, ob-la-da” a sério?) que os bêbados estraçalham em videokês, tipo “Let it be”, “Hey Jude”, “The long and widing road” – essa é a canção rainha da embromation society, culpa do Phil Spector e seus violinos. Por muito tempo não entendi o porquê de tanta adoração por caras que tinham a ousadia de cantar “Ob-la-di, ob-la-da” até ouvir “Rubber Soul”. É estranho nunca ter ouvido nada do período chamado beatlemania em minha adolescência, mas de certa forma foi bom. Pude ouvir os ingleses atravessando a porta da histeria e metendo o pé na onda lisérgica (Sgt. Pepper’s, alguém?) fazendo uma ponte confortável para que os fãs não debandassem. É claro que o lado John Lennon sobressai, afinal, ele era o cérebro e a emoção, quase um artesão pop. As faixas “Girl” (aquela... como direi? Aquela sugadinha...), “Run for your life” e “Norwegian Wood” são exemplos clássicos. Só que sou atraído pelas pessoas que se esforçam para não serem totalmente eclipsadas. E Paul McCartney era isso: um cara que queria somente fazer músicas bonitas e assoviáveis porque sabia que daria ao mundo apenas isso. E foi fazendo “apenas isso” que ele concebeu a balada “Michelle”, uma canção de amor como todas deveriam ser, simples e arrebatadora. Como ficar indiferente a alguém que se esforça para dizer meia dúzia de palavras numa língua estrangeira para a mulher que ama?
E falando no Macca...
- “Silly love song”, Paul McCartney – Lennon cuspiu em seu passado, foi viver com Yoko Ono (cá entre nós, ele pode ter sido um pusta compositor, mas não sacava nada de mulher!) e atraiu gente adorável como agentes da CIA e Mark Chapman ao seu redor. A Paul restou apenas criar asas e tentar voar (ok, mais um trocadalho do carilho infame). Ele nunca foi levado a sério, não nos mesmos moldes do seu ex-parceiro de banda, por isso ele optou em ser pop.
Formou os Wings, levou a sua esposa Linda Eastman a tiracolo e compôs um punhado de músicas para bater o pezinho enquanto assoviamos. A minha predileta é “Silly...” por um motivo banal: foi a primeira música onde eu senti o som do baixo em meu peito. Meu Inglês é inexistente (não se iludam, apenas copio o que vejo nas letras que ocasionalmente vejo em revistas e na Internet), o que não me impediu de curtir esse libelo irônico do romântico incurável. Como ele mesmo disse, what’s wrong with that?
- “O beijo e a reza”, Skank – tenho que concordar com alguns críticos: em alguns anos específicos há uma conjugação de fatores (o alinhamento dos astros, o valor das ações da Petrobrás, o ritmo da piracema do tucunaré...) que os transformam em anos memoráveis para a música popular. 1994 é um deles. Álbuns inspirados vindos de toda parte faziam o ouvinte de rádio poperô ir ao nirvana. Dentre os CD’s, um de uma banda de mineiros que curtiam um quase-reaggae, rotulado de dancehall (sei lá o que é isso) em seu segundo trabalho. “Calango” viria a se tornar paradigma de sucesso, haja vista as bandas que copiavam descaradamente o som da banda na época. Um dos poucos discos que venderam mais de 1 milhão de cópias na era do CD (e antes da explosão do MP3) no Brasil, as 11 faixas foram quase todas executadas “nas AM e FM dos elevador”.
Comprei o disco (era uma época propícia financeiramente pra mim) e coloquei pra rodar. Estava muito divertido e dançante; súbito a quarta faixa se apresenta pra mim num sutil riff de guitarra, embalado em uma cama de baixo e bateria mesmerizante. O naipe de metais chorou alegre e em uníssono. Foi aí que a música me pegou: adoro trombones e pistões. Já estava anestesiado quando Samuel Rosa ainda se atreve a declamar uma rara poesia popular, daquelas despidas de pretensão e pompa e recheadas de lirismo. “Me dá um beijo, porque o beijo é uma reza pro marujo que se preza”. Ela agora está junta no meu pódio particular com “Por isso corro demais”. E nunca fiquei tão feliz em ter comprado um CD que valeu cada centavo.
- “A dois passos do paraíso”, Blitz – Final de 1982. O prefeito da cidade teve um arroubo reformista e decidiu urbanizar alguns espaços criando praças e trocando a tubulação de água e esgoto. Para mim e meus irmãos significava uma coisa: montes de terra pra brincar.
Numa ensolarada tarde eu e meus três irmãos resolvemos pegar mangas. Há algumas mangueiras no terreno atrás do hospital Augusto de Oliveira Camargo, antiqüíssimas, que formam uma pequena trilha e são a salvação para os amantes de uma boa manga espada – isso é, quando os mortos de fome deixam os frutos amadurecer. No meio do caminho, as cordilheiras de terra ora roxa, ora avermelhada, que escalávamos com alegria. Chegando perto das árvores, uma visão que nos deixou excitados: morros de terra ainda maiores! Por um instante esquecemos nosso primeiro objetivo e resolvemos escalar nosso Everest.
Nessa época a “escadinha” que simbolizava a ordem de nossos nascimentos era visual e nos postamos em fila indiana na ordem: eu na frente, Andréa logo atrás, depois Kátia e Wagner. Nossas sombras projetadas no chão eram quase personagens independentes. Olhando as sombras me lembrei de uma música e comecei a cantar em voz alta: “Longe de casa há mais de uma semana...”. De repente formamos, sem combinação prévia, um coral: “... tô milhas e milhas distante do meu amor...”. Andamos por todo o trecho de valetas abertas cantando, felizes, e pela primeira e única vez compartilhando de um momento em conjunto.
Há um mês, mais ou menos, estávamos todos juntos de novo por causa do aniversário de uma de minhas sobrinhas (tenho seis... olha, que coincidência!). Como sei que meus irmãos não se sentem muito confortáveis na minha presença me limitei a ficar pouco perto deles enquanto conversavam. Rádio ligado, eu com um copo descartável na mão, ouvindo tanto o burburinho quanto as músicas. Subitamente uma slide guitar soa seguida da voz de Evandro Mesquita. Andréa, Kátia e Wagner silenciam até o momento do refrão, novamente cantado por nós: “Estou a dois passos do paraíso, não sei se vou voltar...”. No final nos juntamos naturalmente. “Nossa, você se lembra daquele dia na mangueira, Sid? Nunca vou esquecer!”, disseram, de uma forma ou de outra, meus três irmãos.
É. Eu também nunca vou esquecer.

1.11.06

Meu pai

“Nei, vai chamar seu pai, o almoço tá pronto”. Esse pedido feito pela minha mãe era comum na minha infância, pois nós sabíamos onde ele estava: no armazém do seu Gentil, tomando uns goles de cachaça. Calçava meus chinelos e ia levantando poeira e cantarolando.
Num desses dias, com cinco anos completos – adiantava-se o mês de setembro – me aproximei da venda, tirei os chinelos para entrar (uma das babaquices típicas desse que vos tecla) e me dirigi a ele, que lia meu pensamento e falava, com sua voz grave: “já vou”. Ato contínuo, ele se virou para um de seus companheiros de bebida e vaticinou, me abraçando (coisa incomum, já que normalmente nem a mão ele me dava): “esse é meu filho! Ele já sabe ler, gente!”. Morto de vergonha, olhando pro piso avermelhado, eu nada dizia enquanto ele punha em minhas mãos a edição do jornal O Estado de S. Paulo do dia e me disse para ler o corpo da manchete, cujo teor não me lembro.
No final da leitura houve um silêncio incrédulo, seguido de tapas doídos em minhas costas e exclamações exageradas. No final, meu pai pede um litro de vinho daqueles rosados e desafia: “quer ver como meu filhão é macho?”, enquanto tirava a rolha e despejava parte do conteúdo em um copo americano.
Meu pai pegou o copo cheio, colocou em minha mão e disse, seco: “bebe”. Com medo que ele me desse um tapa levei a borda até minha boca. Ao experimentar, uma surpresa: era doce. Dulcíssimo. O sabor da uva embebida em calda de açúcar – foi o que me pareceu – envolveu minha língua e meu palato e sorvi de um só gole. Uma exclamação geral de aprovação, seguido de mais um abraço e mais vinho despejado no copo. Eu, que só estava feliz em ter agradado meu pai, não me fiz de rogado e repeti a talagada.
Entre palavras de incentivo e risadas acabei bebendo o litro inteiro. Falei pelos cotovelos – pelo menos para meus padrões -, ria de delclarações simples e o doce da bebida me agradou, inclusive durante meu primeiro arroto público. Ao ver o fim da garrafa ele pediu ao Gentil pra marcar na caderneta e finalmente decidiu ir almoçar.
Ao dar meu primeiro passo, não consegui determinar a distância entre a sola de meu pé e o chão. Meu corpo pendeu para frente, enquanto minha cabeça latejava; súbito, o mundo começou a girar e eu tentava acompanhar o novo ritmo do mundo tropeçando em meu próprio caminhar. Minhas têmporas pulavam e tudo o que eu conseguia fazer era rir e tropeçar, enquanto meu pai, consciente da piada que ele perpetrou, ria como criança.
Chegando em casa, cai-não-cai, minha mãe observou meu estado, horrorizada. Senti que seu primeiro ímpeto foi me bater, tamanho o ódio que vi nos olhos dela. Contudo, ao ver meu estado, que já havia mudado da euforia para a letargia depressiva da dor e ouvindo as gargalhadas do pai, ela entendeu e me estendeu a mão, me levando para debaixo do chuveiro. Eu gemia “eu tô bem, mãe” enquanto ela me banhava. Eu insistia em gemer “eu tô bem, mãe” enquanto ela trocava minha roupa. Quando ela me pôs em minha cama, eu vi o teto girar. Ao fechar os olhos, o mundo todo girou. Definitivamente eu não estava bem. E meu pai ria enquanto minha mãe o repreendia. “Agora ele virou homem”, sacramentou.


Aprendi a jogar pião sozinho. Quando pedi ao meu pai para ensinar, ele apenas disse “não enche”. Tentei interagir com meus vizinhos, mas eles não eram tão divertidos quanto meus amigos imaginários. Um desses estranhos sem nome me ensinou as regras do jogo de bola de gude (burquinha, para nós) e de vez em quando eu me pegava entre alguns meninos e meninas com uma bolinha entre meus dedos.
Num sábado dos meus seis anos meu pai pegou sua caixa de ferramentas e começou a confeccionar algo com madeira; ele tinha um talento para carpintaria nato. Um começo de curiosidade nasceu em mim, mas logo me lembrei como eu era sempre rechaçado, por isso me contive e me ative a brincar num monte de areia com alguns bonequinhos que vinham nos doces de banana.
No dia seguinte, manhãzinha, após o café (e naquele dia havia pão caseiro!) meu pai me abordou com um sorriso e me disse: “toma, fiz pra você”. E o que ele fez foi um carretel de madeira com uma alavanca, as bordas em formato de estrela com 100 metros de linha de pipa, além de uma pipa vermelha de armação de bambu cuidadosamente trabalhada. Abestalhado, agradeci enquanto ele se afastava, indo para o armazém. Brinquei longas 4 horas, observando embevecido a dança da pipa no ar. Meus amigos imaginários foram solenemente esquecidos naquele dia.


No dia 31 de maio de 1990 eu, meus irmãos e meu tio estávamos em uma sala indefinida, sentados em um retângulo de concreto, dentro do hospital Augusto de Oliveira Camargo. Na nossa frente um corpo envolto em bandagens. Um funcionário chegou e pediu que nos aproximássemos. Perto, ele retirou as bandagens que encobriam o rosto. Era meu pai, sereno como se estivesse dormindo, mas com o rosto sem cor.
O choro veio sem convite. Entre lágrimas me lembrei da última semana de vida dele. Uma rotina triste e vergonhosa: o vício da bebida acabou com o homem forte que ele tinha sido, fazendo dele um ser que se arrastava pelo chão após duas doses de cachaça. Ninguém falava nada acintosamente, só os risinhos denunciavam o que meus vizinhos pensavam enquanto eu ou um de meus irmãos o ajudava a voltar pra casa.
Por mais triste que o momento tenha sido, não consegui deixar de pensar: “a morte foi piedosa; os amigos de pinga, não”.


Segundo domingo de setembro. Passeio pela feira, pesquisando preços e observando o movimento quando um senhor judiado pelo tempo me fita firme, como se forçando o córtex cerebral em busca de uma lembrança. Retribuo o olhar esperando a abordagem, que não tarda:
“Escuta, você não é o filho do Zé Trindade?”, pergunta o homem. Não pude conter o sorriso, surpreso, e confirmei. “Caramba, você não mudou nada! E o seu pai, como está?”, retruca, entusiasmado. Ao dizer que há 16 anos ele morreu quem se surpreende é ele, desfiando as memórias. “Seu pai era fortão, trabalhador pra caramba! Que pedreiro bom ele era! A gente trabalhou junto com o Móca!”. E os sinais de exclamação não estão aí à toa.

Tenho quase 40 anos, vida própria, personalidade, ainda que fragmentada, gostos cultivados durante décadas de experiência; ainda assim, ainda sou e serei o filho do Zé Trindade.