13.1.07

As colinas estão vivas e tristes

Música que me faz chorar me deixa constrangido. Mesmo que não chore mais ao ouvi-la pela sétima vez há sempre o ligeiro desconforto seguido de um pensamento contraditório: “puxa, que música bonita”. O que acontece depois, pelo menos comigo, é escutar a canção até que os tímpanos estourem. Depois as audições tornam-se menos freqüentes até rarearem, virando objeto de culto particular. Como a trilha sonora do primeiro beijo, da briga, do momento mais feliz ou triste.


A grande diferença de músicas com essas que citei e as que fazem chorar é o imponderável. Ninguém espera derramar lágrimas enquanto caminha despreocupado ou está dentro de um ônibus; no entanto é o que acontece, ainda bem que não freqüentemente. E minhas poucas músicas choronas são:


- “Ready to take a chance again”, Barry Manilow – essa eu ouvi dias depois de minha mãe ter me visitado na Cidade dos Menores, caso já contado aqui. Não bastaram minhas lágrimas após a partida, esse corno do Barry tinha que me lembrar que estava tudo ok, mas não muito bem. Diabos!
- “Kissing a fool”, George Michael – o primeiro disco de vinil que comprei foi o álbum duplo “Bring on the night” do Sting e o segundo foi “Revenge” dos Eurythmics – herdei alguns discos do Roberto Carlos de meu tio, o que me fez admirar perdidamente a Jovem Guarda. O terceiro foi a obra-prima pop “Faith” (minha humilde opinião aqui), recheada de gemas do quilate da faixa-título, “One more try” – que um fulano disse ser um libelo gay antes dele assumir, graças à interpretação do gajo cujo nome não lembro – e “Father figure”. No lado B (quem ainda se lembra dos vinis sabe do que falo) a última música foi uma flecha. O piano jazzy, a escovinha na bateria e George cantando suavemente a crônica de um abandono. Calhou de estar num momento incerto de minha vida e ao ouvir “você está longe, e quando eu poderia ser sua estrela”... bem, foram lágrimas bem derramadas no sofá.
- “Os velhinhos”, Roberto Carlos – o disco agora é “Roberto Carlos canta para a juventude”. Embora os destaques sejam as inacreditáveis canções “Brucutu” – versão esperta de “Alley Oop” feita por Erasmo Carlos – e “Eu sou fan do monoquíni”, onde ele narra as aventuras de um brotinho (essa gíria antiga é muito engraçada) de monoquíni que antes só usava biquíni e que desfilou seu corpo numa sessão de nado em uma praia - na época ele não podia contar que viu os peitinhos desnudos, que meigo! - , a última faixa do lado A, com uma candura anacrônica até para os anos 1960, é que me fez imaginar um futuro idoso e um tanto melancólico. “Amanhã estaremos velhinhos, contaremos juntinhos os segredos do amor para os nossos netinhos”. Brega pra cacete, né? Por isso chorei.
- “Despedida”, Roberto Carlos. Esse nem preciso dizer com minhas palavras o porquê; vou apenas transcrever a letra: “já está chegando a hora de ir/ venho aqui me despedir e dizer/ que em qualquer lugar por onde eu andar/ vou lembrar de você./ Só me resta, agora, dizer adeus/ e depois o meu caminho seguir;/ o meu coração aqui vou deixar/ não ligue se acaso eu chorar/ mas agora adeus...”. Tá bom pra você?
- “Seguir em frente”, Rick e Renner - ok,ok, música breganeja é um pouco demais, mas algumas escondem pequenas doses de poesia, sim. É como cantou sabiamente Lulu Santos: “as canções mais tolas, tendo seus defeitos, sabem diagnosticar o que dói no peito”. É difícil acreditar que uma dupla que compõe para a dupla Gino e Geno coisas como “eu já fui de você, eu já fui de você; meu amor, eu não esqueço que eu já fui de você” possa me fazer chorar. Porém, dentro do ônibus fretado pelo meu ex-empregador em 2003, ouvindo compulsoriamente a rádio cem por cento breganeja preferida por muitos moradores de Indaiatuba, os versos “amanhã, semana que vem ou mês que vem, quem sabe (...) eu vou encontrar um amor de verdade” foram um soco; as lágrimas vieram tão rápido que tive que engoli-las para que meus colegas não percebessem. Bem,se serve como explicação, estava em uma de minhas fases mais carentes.
- “Come on home”, Everything but the Girl – descobri os videoclipes como fonte de diversão lisérgica sem precisar de drogas. Toda beleza e podridão dos pioneiros dos vídeos musicais eram exibidos na tevê aberta e eu tomava minha overdose diária na TV Gazeta e semanal na Globo.
Numa sexta do ano de 1990, só em casa, sentado em minha poltrona predileta (ela era dobrável, com um tecido de algodão azul com flores que não sei identificar – talvez copos-de-leite), terminava de ver um clipe dos Eurythmics - “There must be an angel (playing with my heart)” – quando tudo escureceu. Uma luz fraca deixava as silhuetas de um maestro, alguns músicos com violinos e metais e uma cantora flutuando como fantasmas no tubo televisivo (minha tevê era preto-e-branco; só vi tevê em cores em 1994). De repente as cordas soam, discretas; uma lágrima cai ao mesmo tempo. Tracey Thorne canta, suave; mais lágrimas. Para resumir, durante os aproximadamente três minutos da música chorei, sem motivo aparente; não entendi a letra, não me identifiquei com a personagem da canção, não liguei nenhum sentimento reprimido ao que era cantado. Só chorei como criança. Principalmente quando ela quase implorava “venha para casa, meu bem, venha para casa”. Ouso dizer que foi o segundo melhor ataque de choro que tive.

Música que me faz chorar me constrange. Mas gosto de chorar. Como diz uma propaganda, dá um alívio...

12.1.07

Dias de molhos e massas

Gastronomia. A baixa. Não há como não me lembrar, entre salivações intensas, dos sabores de minha vida. Trabalhar entre mulheres traz essas lembranças graças à intensa troca de receitas entre elas. E não venha me classificar de machista; estou entre elas (um amigo disse, ironicamente, que sou bendito entre as mulheres, pobre de mim) e só digo o que ouço e vejo. Ok, sem digressões.

Uma de minhas colegas estava escrevendo uma receita de bolo de cenoura e veio à minha boca o sabor inesquecível dos bolos que minha mãe fazia. O pão-de-ló leve, o doce tanto do açúcar quanto da cenoura e a casca que a calda de chocolate formava – às vezes era o chocolate do padre, noutras era achocolatado mesmo – misturavam-se numa harmonia quase orgástica.

Os domingos de boa vontade eram domingos de nhoque. Minha mãe, empregada doméstica de forno e fogão, aprendeu os segredos da massa com uma de suas inúmeras patroas descendentes de italianos. Antes das massas prontas e da praticidade de hoje, ela dedicava a manhã num ritual que eu acompanhava fascinado. Primeiro, as batatas, afogadas em uma grande panela no fogo. Enquanto elas coziam, ela separava a farinha de trigo, os ovos e o óleo e os deixava à mão. Em outra panela, uma refoga com cebolas e alho moído aromatizava o ambiente, esperando a companhia da carne moída.

Com o molho borbulhando – Deus, o aroma do manjericão! – era hora de descascar e espremer as batatas, já macias. Ver as antes imponentes batatas desmancharem-se em pequenos filetes cilíndricos era, e é, hipnótico. Toda a massa formada pelos filetes era amalgamada pela farinha, pelos ovos e por um pouco de óleo de soja, numa massagem vigorosa, até formar um único bolo enfarinhado e amarelado. Nessa hora minha mãe dava um sorriso e anunciava: já está quase tudo pronto.

Chegava a hora de minha parte predileta. Molho pronto, massa devidamente misturada, era hora de colocar mais uma panela no fogo, dessa vez com água apenas. Enquanto a água aquecia, o enorme bolo era repartido em pequenas bolotas, que eram enroladas numa superfície enfarinhada para formar um grande cilindro com diâmetro de um centímetro, centímetro e meio. Habilmente dona Benedita cortava com uma faca pequenos travesseiros. Cilindros, travesseiros, cilindros, travesseiros... e quando a água fervia, minha mãe dizia: “Nei, me ajuda”. Ela colocava os travesseiros na água e depois me orientava: “quando a massa subir, tira com a escumadeira e coloca no escorredor”. Quando ela disse isso pela primeira vez, não entendi... como assim, “a massa subir”? Foi quando vi a maravilha: a lei da gravidade simplesmente deixou de existir e as trouxinhas começaram a emergir, uma a uma. Os travesseiros giravam em seu próprio eixo e flutuavam na água quente.

Momentos extraordinários culminando com um almoço delicioso. Esses domingos de nhoque eram pequenas raridades, no máximo 5 por ano. Era o que eu chamava de perfeição: fartura, satisfação e calma. Sim, comida é prazer e memória.