3.11.07

A paz

De acordo com alguns dicionaristas, paz é um estado de calma e tranqüilidade, ausência de conflitos, perturbações ou agitação. Eram justamente essas sensações que eu tinha quando estava com Ingrid. Como aquele passeio que se transformou em piquenique que fizemos. Eu, ela, algumas árvores ("olha como tá lindo aquele calistemo!", bradou ela com um conhecimento de botânica inalcançável para mim). O burburinho indistinto da cidade foi a trilha sonora perfeita. O beijo. A excitação. "Não, Rafael, aqui não. Em casa. Na minha cama.". Sim, aquilo era a paz.

O zunido de uma bala me resgatou do torpor inútil. Ingrid disse que eu tinha um pezinho na lua às vezes. O outro pé voltou a comandar meus atos. O uniforme cáqui estava banhado com meu suor, o capacete pendia ora para esquerda, ora para direita. Os gritos proferidos pelo estranho ao meu lado, supostamente meu superior hierárquico, eram abafados pelos disparos que ele dava com seu M16. Estávamos encurralados em um esqueleto do que foi uma casa, levando tiros dos habitantes locais que meu governo achou por bem chamar de inimigos.

Meu fuzil estava sem balas há muito tempo. Algumas delas tiveram destino certo. O peito ou a cabeça de algum adversário. Não sou exatamente um franco-atirador, mas sou bom em apontar e atirar. E se faço o que faço é porque recebo ordens. Não preciso concordar com isso, apenas obedeço. Não gosto de matar ninguém, mas o estranho ao meu lado vive repetindo que "o inimigo não tem essa frescura. Se vir alguém com esse uniforme, mata e ainda mija em cima!". Não há tempos para dilemas morais. Matar ou morrer. Como fui treinado para sobreviver, sobrevivo.

Encosto no que restou da parede da casa abandonada. Jogo o M16 do lado, agarro a Sig-Sauer. Tenho muitos pentes mas não sei se será o suficiente. Acaricio o cano quase delicadamente. "Vocês, homens, e seus símbolos fálicos", dizia Ingrid, irritada, ao me ver de uniforme. Nunca entendi essa mania dela falar difícil. Só fui saber o que era esse tal de "fálico" quando li um dicionário, presente dela. De certa forma, concordei. "Mas meu pau é muito mais potente que um cano de AK-47!". Ela ia abrir a boca para retrucar mais uma de minhas pérolas machistas, mas sempre ria e me beijava. Me alisava. Me deixava fálico! "Aqui não. Em casa. Na minha cama.". E eu sabia, sem ver o verbete, o que era paz.

Mais um grito do estranho. Não era uma ordem inútil, contudo. Era dor. A maior delas. Senti o respingo do sangue dele ao ser atingido no braço por uma AK. Vários tiros; o antebraço pendia preso apenas por um pedaço de tríceps, os ossos, horripilantemente vermelhos, expostos ao sol lancinante. O horror durou apenas um nanossegundo; saquei a Sig, mirei, atirei. A cabeça do atirador foi para trás num chicoteio violento. Mirei, atirei. O peito do companheiro do agora falecido atirador recebeu três disparos e ele caiu como um saco de batatas de um caminhão. Mirei, atirei. O terceiro foi atingido apenas na perna, enquanto fugia de mim. O estranho gritava alucinado. Peguei a M16 dele, coloquei o homem em meu ombro e fui para os fundos da casa. Balas passavam por nós.

Nos fundos, Ingrid sorria, como sempre. O jantar foi perfeito. Ela sabia que eu iria para o fronte, apesar de seus argumentos. "Não sou eu, é a vida que escolhi. Mandam, eu obedeço.". Ingrid apenas olhou, triste. "Você sabe que vai matar pessoas e que pode ser morto...". Ela se calou depois disso. Tudo já foi dito. E ela sorriu. "Só volte para mim. Para minha vida. Para minha cama."

Não havia cama. Deitei o estranho no piso de terra batida e tentei estancar a hemorragia sem levar um tiro. Tarefa difícil. Ele ainda se acha no comando e ordena algo sobre ir embora. Abortar. Comunicar. O rádio foi acionado. "Granadas!", ele gritou. Só tinhamos duas. O pino de ambas foi retirado. "Dá pra levantar?", pergunto. Ele responde com ação. Somos cachorros de guerra bem treinados. Os tiros se aproximam, quem os desfere também. Solto as granadas, ouço um sibilo. Granadas não sibilam. "Foguete!!!!!"
Meu corpo é arremessado para longe ao mesmo tempo que sinto dor e dormência. Acho que morri.

Ingrid, me beijando, pegando minha mão e me jogando no lago. Água fria, perfeita para despertar. "Queria ter um filho seu", ela dispara à queima-roupa, eficiente como uma Glock. "So se você casar comigo", revidei com minha M16. "Ah, é? Pois então caso". O lago quase nos abençoou. As montanhas quase foram os pastores celebrantes.
Eu quase morri.

Não morri. Outro estranho, com farda de gala, me presenteia com uma medalha. Meu país orgulhoso, heroísmo, blablabla. Não ouvia muito bem. A dor da perna esquera que não existia mais era pequena e eloqüente. Muitos se impressionavam por não usar muleta, apenas uma simples bengala. Não há surpresa; fui treinado para sobreviver até sem fígado. Ou sem pinto. Sim, a guerra me capou. "Não posso mais te dar um filho", disse a Ingrid, que chorava de raiva. "Apaixone-se de novo. Viva e dê a outro homem a paz que eu tive". O tapa que ela me deu foi como o morteiro que me aleijou.

A medalha pesa um bocado no peito. O estranho a quem designaram a tarefa de avaliar minhas condições emocionais e psicológicas sussurra palavras proparoxítonas bonitas em meu ouvido. "Só gostaria de mais um beijo de Ingrid", disse eu.

Ela não veio. A paz deve ter morrido. Ou então se esqueceu de mim quando escolhi ser um cachorro bem treinado. Tento fazer com que a paz se lembre de mim atrás do balcão dessa locadora.

"Não, não gosto de filmes de guerra. Mas essa comédia romântica da Meg Ryan é bem gostosa". A paz está no olhar de Meg Ryan. No sorriso de Jennifer Love-Hewitt. Na voz de Ingrid ao me convidar para seu casamento. "Você vem, não?"

Não, não vou. Hoje tem filme novo da Lindsay Lohan no cinema.

2.11.07

O referido é verdade e dou fé

Se eu acreditasse em teorias conspiratórias, diria que alguém, desde setembro, está tentado impedir minhas postagens. Ao tentar me logar em um cybercafé, a página do Blogger simplesmente se recusava a abrir. Mas agora que consegui, me vem à mente a mesma inquietação: vou escrever o quê?


De uns tempos pra cá, algumas coisas têm conseguido a proeza de me irritar profundamente. Assuntos religiosos, por exemplo. No posto de saúde onde trabalho há seguidoras de várias vertentes cristãs neo-evangélicas. Nada demais se não fosse o forte ranço fundamentalista que impera em alguns diálogos. Nada do que é feito tem o dedo de quem fez; se não for o belzebu e suas artimanhas é Deus escrevendo certo por linhas tortas. O homem, sempre fugindo da responsabilidade sobre sua própria vida, adora citar de cor versículos e dogmas sem parar para pensar em seu papel na trama da vida.
O que acho engraçado nisso tudo é que nenhuma dessas pessoas pensava nas sagradas escrituras ou assemelhados na flor da idade, quando o corpo era viçoso, a libido estava ativa e os excessos eram cometidos. A velhice sempre traz arrependimento para quem achava que viver era ficar bêbado e trepar até o último orgasmo. Tenho impressão que Deus existe apenas para os arrependidos.


Os católicos pensam que Deus é burro; os evangélicos, que Deus é surdo.


Indaiatuba esteve seca como o deserto em setembro e outubro. Não chovia, o calor deixava todos alvoroçados e houve uma séria ameaça de racionamento. Ainda assim, muitos armavam-se de mangueiras e desperdiçavam, lépidos, água tratada em calçadas e carros. Para corroborar a atitude de jerico, jogavam os dejetos nas bocas-de-lobo, entupindo-as. Claro que todos se conscientizaram depois da ameaça do SAAE, o responsável pelo tratamento da água e esgoto da cidade, de multar quem fosse pego desperdiçando água.
Quando, na última semana de outubro, a chuva caiu mansa e contínua, durante o dia inteiro, me detive sob ela por alguns instantes na calçada em frente a uma fundição. Senti gota por gota um alívio. O mormaço do asfalto já estava sob controle e meus óculos contavam os milímetros da precipitação. Andei calmamente pisando nas poças cantando uma canção. Não, não aquela. Esta.


Eu, que não acreditava em prêmios. Eu, que sempre achei que loterias eram formas lícitas de jogatina e de arrecadação de dinheiro sobre o sonho - o velho axioma "sonhar não custa nada" não é verdadeiro. Custa, sim; de um a cinco reais. Eu, que não arriscava coisa alguma por achar que "sorte" é uma palavra bonita, um eufemismo para "me dei bem mas você não precisa saber quem matei pra que isso acontecesse". Eu, o mais improvável dos mortais, ganhei um concurso. O catrão de mil reais da promoção da Kuat. Devidamente gastos, já deixando os urubus avisados.
Quando será que a Mega-Sena acumulará de novo?


Gostaria muito de poder viajar no final de ano. Rever pessoas e lugares. Fugir, por pouco tempo, dos sambas feitos por mauricinhos, dos forrós feitos por bondes imitadores de cantores sertanejos, do choro de crianças e gritos de adolescentes. Manter distância das pacientes impacientes. Ver o mínimo possível de mulher por pelo menos uma semana - não é misoginia, é saco cheio mesmo. Dormir e acordar sem precisar pedir licença. Descobrir o que há de novo, me cobrir com meus desejos antigos.
Gostaria de algumas coisas bem simples. Muito. Mas nada de promessas.


Sete anos, quase oito. Me dirijo ao banheiro para tomar banho, distante como sempre, em meu mundo paralelo. Chuveiro aberto, ouço a voz alcoolizada de meu pai chegando do bar mas aquele era apenas mais um som. Decido cantar a plenos pulmões uma música da Rita Lee que eu adorava, e ainda adoro. No meio dos acordes "afinadíssimos" que minha garganta soltava, a voz alterada do meu pai, em mais um embate verbal inútil com minha mãe. Alheio a isso, pulava feito um retardado debaixo d'água.
Como se tivéssemos ensaiado, eu cantava o início do verso "papai, eu não fumo, papai, eu não bebo..." e o pai, no mesmo ritmo (não é piada), gritou "PÁRA, NEI!!!". Estanquei os movimentos, apavorado e acabei o banho naquele momento. Estava criada a maior das piadas internas da família Trindade. Toda vez que minhas irmãs se lembram do episódio, elas cantam: "papai, me empresta o carro, papai eu não fumo, papai eu não bebo, PÁRA, NEI!". Ai, ai...


O título dessa postagem era um dos prováveis títulos desse blog. Como sei que muitos não sacariam o tom irônico que eu gostaria que tivesse, descartei. Asim como "Memórias num velho computador", retirada de uma canção de Ritchie, que provavelmente daria um tom sisudo demais a um blog tão errático. Pelo mesmo motivo foi descartado "Quem precisa de utopia?", trecho de música do mesmo Ritchie. E não, não sou apaixonado pelo gajo.


Não achei nenhuma das músicas acima. Mas encontrei o lado B do compacto "Aline", do Christophe, uma daquelas músicas que adoro sem saber exatamente porquê. Senhoras e senhores, "Les marionettes"!