14.11.06

Pobres moços...

Dividia uma mesa de metal em frente a um quiosque com um colega numa tarde de sábado, onde degustávamos um lanche prensado, especialidade indaiatubana – digo isso pois nas poucas cidades que visitei havia tudo, menos lanches prensados. Entre uma dentada e um gole de tubaína (que me perdoem os amantes da Coca Cola, mas não há nada melhor para acompanhar uma bomba calórica como um x-salada do que uma tubaína – a casa recomenda a garrafa de 600 ml) submetíamos vários assuntos ao nosso impiedoso olhar leigo. No meio do festival hortifruti, a inevitável discussão musical. Somos ambos leigos que apenas gostamos ou não do que ouvimos, mas resolvemos achar que estávamos discutindo a pauta de fechamento da Ilustrada, tudo por causa de Lupicínio Rodrigues.

Ao elogiar as letras contundentes e, em minha opinião, lindas do bardo gaúcho (tudo bem, ele era gremista. O cara era tão bom que compôs um dos hinos de time de futebol mais bonitos do Brasil. O do Grêmio... ui!), principalmente “Nunca”, meu colega rebateu: “ah, mas ele é adorador de Satã!”. Armei minha cara “mas hein?” e perguntei de onde ele tinha tirado essa sandice. “De uma música dele, uai. A tal de ‘Esses Moços’”.

Eu deveria estar acostumado com o obscurantismo alheio; afinal, são anos convivendo com pessoas cujos horizontes não ultrapassam o mar de cerveja e suor. Se eu ouvisse algo semelhante em uma hipotética discussão religiosa eu simplesmente me calaria (não é covardia, é apenas ausência de paciência. Não vou colocar pontos de vista discordantes para quem não sabe ouvir um “não” de vez em quando). No entanto ele simplesmente reduziu um dos artífices (putz, sempre quis dizer ou escrever “artífices”!) da dor-de-cotovelo elegante a um estereótipo religioso por causa do verso “saibam que deixam o céu por ser escuro, e vão ao inferno à procura de luz”. Resolvi bancar o, hã, advogado do diabo.

Visivelmente contrariado, rebati com minha retórica de beco mais ou menos como vou escrever agora:

Só porquê alguém usa a palavra “inferno” em uma frase não significa que ele seja satanista. E mesmo que ele fosse, acredito que todos tenham o direito à livre expressão de crença religiosa; se por causa dessa crença ele cometer um crime, que sejam aplicadas as penas da lei em vigor. Creio que Lupicínio usou os arquétipos do céu e inferno como metáforas para o conhecimento adquirido durante a vida. O “céu escuro” é o reino das certezas que temos, um lugar tranqüilo onde andamos sem necessidade de guias. Os moços, impacientes e imaturos, não aceitam a calma, pois acham que podem mudar o mundo (atire o primeiro piercing quem não era assim) e procuram, atônitos como mariposas, abismos luminosos. O “inferno”. Ou seja, é apenas a síntese do amadurecimento humano.

O parágrafo acima é um resumo; creio que até babei entre uma frase e outra, tamanha minha convicção. Terminando o monólogo, aguardava uma réplica apaixonada, um contra-argumento que nos fizesse varar o sábado num longo sarau sobre a vida, a morte e o papel das batatas fritas nesse processo todo, mas como todo ser obscurantista que vê suas frágeis idéias sobre o mundo desabar ante um punhado de areia, ele foi previsivelmente (e irritantemente) anticlimático, dizendo: “é... que bom que ele também fez aquela “Nervos de Aço” também, né?”.

Não me restou alternativa. O assunto teve que morrer depois desse adeus risível. Tomei mais uma tubaína – ele mudou pra cerveja – e nos despedimos entre sorrisos e promessas. No caminho de volta pra casa percebi que gastei minha pobre retórica com um sujeito que se recusava a aceitar que Gino e Geno estavam cantando um sonoro palavrão na melodia “Bebo pa carai” (sic) argumentando que “no Mato Grosso tem uma pinga com esse nome, eu juro!”.

Um dia eu aprendo. Juro que aprendo.