6.3.07

Parte um - Atenção, tachões na pista

Por alguns instantes parecia que não daria certo. Depois que a espada de um banco desapareceu de cima de minha cabeça, resolvi tirar uma semana de folga. Como a semana de carnaval me daria um dia de folga e outro de ponto facultativo (acho engraçado esse fenômeno do “ponto facultativo”. Como agora me beneficio disso, não faço perguntas desnecessárias, como “por que simplesmente não chamar esse dia de folga?”) e eu tinha alguns dias a ver – é, não recebo hora extra – decidi botar uns trapos numa mochila e viajar. Tudo deveria começar às 6 da manhã do dia 17 de fevereiro.

Primeiro problema: os caixas eletrônicos do banco onde meu salário é depositado simplesmente se recusaram a trabalhar antes das 8 da manhã. Meus planos para conseguir um ônibus mais cedo foram pro vinagre. Segundo problema: chegando ao terminal Tietê, finalmente testemunhei o que sempre via na tevê. O caos do feriadão. Gente, muita gente. Malas, muitas malas. Ônibus lotados. Tive sorte em conseguir uma poltrona às 19 horas. Mas esse horário me ocasionou um terceiro problema: o que eu faria entre 10 horas da manhã e 19 horas? Ainda bem que sempre há o que fazer em Sampa.

Sete da noite. Sentado na janela, depois de ver minha sacola de viagem ser acomodada, ruminava pensamentos banais quando senta-se ao meu lado um entusiasmado rapaz gaúcho, indo visitar seus parentes em Terra de Areia – RS. Ele me disse que estuda no INPE, estuda física aeronáutica, ou algo parecido e adora o que faz. De uma certa forma foi bom ouvi-lo tagarelar porque o trânsito estava... bem, ele não estava. A primeira parada em Registro – SP atrasou duas horas.

A madrugada se adiantava e graças aos céus o tráfego fluiu sem maiores atropelos quando chegamos ao Paraná. Foi quando meu acompanhante resolveu mostrar suas garras. No meio da verborrágica descrição sobre sua vida tanto no campus quanto na roça em que vivia com os pais ele relatou seus casos envolvendo o PROCON e alguma empresa que o tinha lesado de uma forma ou de outra. O brilho nos olhos quando ele me contava suas vitórias deixava claro o quanto ele apreciava esses embates. E os olhos dele fulguraram quando ele ouviu um ruído estranho perto de onde estávamos sentados, as últimas poltronas do lado direito.

Na parada para abastecimento e limpeza de banheiro na garagem em Curitiba eis que o rapaz desce, lépido. Ele interpela o motorista que seria rendido. Os dois parecem discordar de algo, os gestos são firmes porém não agressivos. Depois da conversa, o novo motorista aparece. “Pessoal, vamos ter que fazer uma baldeação aqui, pois um dos passageiros reclamou do barulho estranho do ônibus. Teremos um pequeno atraso mas em breve estaremos na estrada”. 40 minutos. E a satisfação do rapaz era tanta que parecia um orgasmo.

O Paraná passou na manta da escuridão do recém nascido domingo. Como o máximo que consigo é cochilar parcos minutos numa viagem, me perdi entre os vultos de meus delírios pré-sono. Primeiro vejo uma imagem nítida sem som; depois, ao fechar os olhos, as vozes tomam forma. São roteiros surreais e divertidos, interrompidos por qualquer sacolejo mais acintoso. O céu clareou quando Santa Catarina apresentou suas paisagens, interrompendo uma história genial envolvendo uma cabra, uma mulher com a cara da Julia Roberts e a voz da Nicete Bruno e uma operação delicada de fêmur. Lembrem-se, são delírios.

Araucárias. Hortênsias. Copos-de-leite. Paredões rochosos. Videiras. Macieiras. Milharais. Plantações de soja (taí, qual é o coletivo de soja?). Curvas sinuosas à esquerda e à direita. Abóboras. Tachões na pista. Bois e vacas. Casas de madeira. Mata nativa. Ainda bem que a paisagem é multicolorida e bela; de uma hora para outra me senti como num circular municipal. Canoinhas, Itapema, Lages, Vacaria, Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Novo Hamburgo, São Leopoldo... não sei se é a ordem correta, mas vi a rodoviária de todas essas cidades. E em Caxias do Sul – RS, o belicoso rapaz resolve descer. Dois bancos só pra mim, ueba!

A freeway acolhe o quase final de minha agradável peregrinação. Quando vi os trevos de acesso me renovei e o cansaço simplesmente desapareceu. Quase 22 horas de viagem recompensadas pelo sol, ainda que envolto pelas nuvens, indo descansar no Guaíba. A Rádio Neural... opa, me esqueço que alguns leitores desconhecem algumas de minhas manias expostas em meu antigo blog. Desde minha adolescência pontuo minha vida com músicas que meu cérebro toca, como uma estação radiofônica. Seja em minha língua, seja em embromation, tudo tem trilha sonora e geralmente música pop de melhor ou pior qualidade, dependendo do que sou obrigado a ouvir. É o que chamo desde 2002 de Rádio Neural. Depois da explicação, voltemos.

A Rádio Neural tocou até a chegada à estação rodoviária apenas um trecho minúsculo de “Metal contra as nuvens”, do quinto disco da Legião Urbana. Era um mantra, uma celebração da efemeridade da felicidade que me atingiria como um raio. “Tudo passa, tudo passará...”. Os prédios ao longe ficaram enormes e o ônibus finalmente estacionou. Quase imito o gesto papal de beijar o chão, mas meu senso de ridículo me impede. Droga.

“Tudo passa, tudo passará...”. Dou a mim mesmo dez minutos de alforria veicular. Sento num daqueles bancos estranhos, mochila de roupas entre as pernas e vasculho os arredores. Localizo as bilheterias de passagens intermunicipais, respiro fundo e peço uma poltrona para Tramandaí. Olho o movimento quase frenético mas já com um pezinho no freio da rodoviária enquanto estico minhas pernas perto do terminal. Alguns vendedores de bebida, discretos demais (provavelmente há uma proibição sendo descumprida) e os meus futuros parceiros de viagem num silêncio reverente. De repente Marisa Monte me avisa que Janio está ligando (o toque de celular dedicado aos meus amigos é “Vilarejo”) que me alerta: tenho mais uma hora e quarenta e cinco minutos de estrada. “Tudo passa, tudo passará...”.

19 horas. O ônibus da Unesul – provavelmente a viação Bonavita de Porto Alegre – chega e me acomodo. E lá me vou pela freeway novamente, desta vez sem paradas. Não há curvas, só uma imensa planície ladeada por arroios, hortênsias e vegetação. No horizonte, o sol sangra e me chama a atenção para uma linda paisagem feita pelo homem: um campo eólico, girando pacientemente suas hélices em busca de energia. Aqueles monumentos brancos e elegantes pediam passagem ao ar gentilmente, tecendo hipnoses. Talvez seja banal aos habitantes, já que os meus colegas passageiros sequer olhavam pela janela, entretidos com seus iPods, celulares e revistas de fofocas. Restou monopolizar a beleza daquele encanto. “Tudo passa, tudo passará...”.

Antes de chegar à rodoviária de Tramandaí, vejo um nome familiar: Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo. Isso sim é ironia: moro em frente a uma dessas igrejas e a primeira coisa que vejo na cidade que vai me mostrar o mar pela primeira vez é a igreja O Brasil para Cristo...

Rodoviárias são iguais em qualquer lugar, só muda o sotaque. Caminho rápido enquanto digito minha chegada em meu celular. Busco uma farmácia, onde compro um sal de fruta e uma lanchonete, ou lancheria, onde compro um copo d’água. Com meus bofes devidamente amansados me sento e aguardo. Penso em minhas pernas espremidas no último banco do ônibus, no documentário do History Channel que o rapaz gaúcho me mostrou em seu computador portátil (em Português, laptop) sobre a nave Apollo 13, no desfile de comidas onerosas nas paradas para descanso, no filme natalino que exibiram no busão (um tal de “Natal em Família”, produção da Disney), em como Michael Caine era muito mais charmoso que Mark Wahlberg na versão original do filme “The Italian Job” – exibido no ônibus também –, embora Charlize Theron seja absurdamente linda, no medo de altura que tenho e no fascínio que o abismo me causa (andar em rodovias que cortam a serra é belo e aterrorizante)...

Tudo se esvai quando Janio e Álvaro me localizam, sorriem e me dão um caloroso abraço de boas vindas. É uma injeção de adrenalina e endorfina. E de sentimentos indecifráveis.