23.9.09

Vinte e três

Da luta que foi ter meu Atari à luta que é sobreviver com a merreca que a prefeitura me paga, se foram 23 anos. No início desse tempo eu estava descobrindo o que era rock, por que diabos eu tinha que saber quem era Mem de Sá e o que eram capitanias hereditárias. Eu era apenas um sujeito interiorano alienado, querendo o supracitado videogame e um par de tênis "de marca", qualquer uma que não fosse Motoca, Montreal, Kichute ou Conga.

Nesses 23 anos, eu tive uma terapia de choque musical. Das duplas sertanejas que ouvia e dos cantores populares com quem fazia coro debaixo do chuveiro (Minha interpretação de "Eu vou tirar você desse lugar" merece destaque), passei para a chamada Black Music que ouvia na maior novidade desde a caneta Pilot, a rádio FM, mais especificamente a Bandeirantes - antes de reduzir seu nome e seus neurônios. Ou o chamado "rock", que nada mais era que a versão pop das guitarras. Pra se ter ideia, eu conheci os Beatles não com seus hinos iê-iê-iê ou suas psicodelias, mas com os delírios bregas "Ob-la-di, ob-la-da" e "Lady Madonna". E debaixo do chuveiro comecei a treinar embromation com a versão de Sting para "Eu vou tirar...", chamada "Roxanne".

Foi durante essas duas décadas que deixei a vida medíocre que minha família apresentou a mim tomar conta por pura inação. Tive chance de cursar o SENAI, quando isso ainda era algo abonador. Meu tio não me apoiou e não tive vontade de lutar com meus próprios recusros. Quando as dificuldades em continuar estudando se tornaram muros, ao invés de escalá-los preferi dizer que era muito difícil transpô-los. Mas nem tudo foi tão ruim: conheci Shakeaspeare, pelo menos algumas frases. Li Drummond, mas não me peça pra recitar. Aprendi a ser só sem que isso me deixasse amargo. Desenvolvi um bom nível de tolerância às adversidades, porém por muito tempo não soube lutar contra elas, pelo menos não com as armas certas.

Quando enfim tive discernimento, já era tarde. Não cursei faculdade nenhuma, passei de emprego em emprego sem galgar postos mais altos. Meus sonhos de consumo eram maiores que minhas aspirações pessoais, a morte para quem almeja ter mais que um futuro promissor. Agora sei que gosto de música com levada rocker, guitarras funk, piano jazzy e vocais diáfanos (caraca, pareço um daqueles críticos da Bizz!). Desenvolvi um senso de humor inoportuno e sem graça. Descobri que gosto de sorvete de pistache e isso dá um trabalho do cão, pois a maioria gosta ou de morango ou de chocolate, ou uma mistura dos dois. Aprendi algumas palavras em inglês, outras em espanhol e muitas na minha própria língua. Tornei público meus preconceitos e aceitei cada um deles como os filhos que jamais terei.

23 anos depois, volto a ver a vida sob um retrospecto um pouco mais claro. Cínico, nada inteligente, um bocado arguto em alguns momentos. Com o espaço de praxe para os arrependimentos e as brechas para novos acertos e erros. Poderia ser um desrespeitado professor de Português, por exemplo. Um frustrado jornalista. Um feliz dicionarista. Uma celebridade efêmera de algum programa mundo-cão.

Sou apenas um blogueiro ocasional, que por enquanto também é funcionário público, com nada além de um canudo do ensino médio conseguido em uma eliminação de matérias após uma frustrante temporada em um EJA (Educação para Jovens e Adultos), que tinha versões falastronas, bêbadas, sexistas, conformistas e incapazes de querer algo mais que "uma boa nota" de mim mesmo. Tenho um arremedo de família, pouco respeito dos meus pares, alguns carnês não pagos e uma alegria insana e não justificada toda vez que me levanto cedo para ir ao trabalho.

Respiro meus desejos e espero os próximos 23 anos, já velho demais para exigir algo mais do que um Atari e um par de chinelos.

(Só escrevi isso porque toda vez que leio uma postagem do Rafael Galvão, me sinto o maior troço de merda do Universo. Meus sinceros respeitos por você ser tão brilhante em suas opiniões, principalmente às que divergem das minhas, e por ser o que eu poderia ter sido se eu não fosse tão... eu.)