1.12.07

Makin' it!

Quem nasce em berço de madeira tem uma vida pragmática. Depois que se tem consciência de como é o mundo em que fomos inseridos (quem mandou sairmos do líquido amniótico com tanto afã, só para depois chorarmos de arrependimento logo após?), trabalhamos, bebemos, contamos moedas para comer arroz, trocar as cuecas (sou um ser humano do sexo masculino sem tendências para ser crossdresser, por isso não vou emular uma dualidade politicamente correta aqui) e tomar uam cachaça, dançamos na proverbial corda-bamba de quem foi classificado como sendo das classes D e E e dormimos exaustos ao fim da luz solar. Não sei como os meus pares fogem da realidade por alguns instantes catárticos. Eu tinha várias válvulas de escape, nenhuma psicotrópica. Ler tudo o que me aparecia - bulas de remédio incluídas - , escrever poemelhos em cadernos, imaginar amigos. E assistir a alguns programas de tevê.

O que mais me afastava de minha realidade era um sujeito que regava as futilidades com uma urgência de água em deserto e que me ensinou que no mundo também existiam pessoas que não se incomodam em pagar um mês de meu salário em um par de meias, desde que elas sejam de grife. No início da década de 1980, conheci Amaury Jr. e seu mundo estranho de nomes pretensamente chiques.

Foi lá que descobri o dólar como moeda e não apenas como personagem de filme. Nos áureos tempos, tudo o que ele falava - a palavra merchandising não fazia parte de meu vocabulário - era cotado em dólar. Os tais champanhes, opa, espumantes... desculpem-me, vitivinicultores da cidade de Champagne com nomes estranhos como Veuve Cliquot (eu, hein, uma bebida com nome de viúva!) e Mumm, os cigarros absolutamente fabulosos que ele fumava durante as entrevistas - que mané câncer de pulmão, o que importava era parecer elegante com aquele trem cilíndrico e fumacento entre os dedos - e as marcas tão chamativas e sempre em Inglês, as roupas que não serviam apenas para cobrir nossa nudez. Hugo Boss, Valentino, Zegna, Armani eram um estilo de vida, a materialização de Deus ligados por linhas e agulhas!

E as festas? Gente sobre as quais nunca ouvi dizer, mas que eram importantíssimas, sumidades de... do... da..., enfim, Amaury dava a impressão de ter sido gêmeo univitelino do entrevistado, que sempre soltava uma pérola da humanidade, a frase mais entrecortada por interrupções desde a invenção dos talk-shows brasileiros. Era maravilhoso ver toda aquela futilidade sendo dita com tanta veemência e verdade entre ternos e vestidos, bebidas e canapés.

Desde quando se chamava Flash nas tevês Gazeta, Bandeirantes e Record, acompanho a, digamos, evolução do programa. Do início tímido, onde ele mostrava festas do jet-set até hoje, onde ele mostra, hã, festas do jet-set com verniz de "eventos culturais", com lançamentos de livros seminais de auto-ajuda ou o trabalho de cão de um ghost writer para publicar uma interessantíssima biografia autorizada ou lançamentos de lojas modestas de marcas modestas de carros - Maserati, Lamborghini -, é divertido ver que gente com dinheiro só tem isso a mais que eu mesmo: dinheiro. Alguns, sejamos justos, têm conteúdo, mas eles se tornam chatos diante da diversão de ver, por exemplo, dicas de restaurantes charmosos quando eu viajar para Nova Iorque ou Dubai ou Berlim, ou que atitudes tomar em um jantar com o CEO de uma multinacional quando eu for convidado por aquela pessoa de hábitos simples (só tomar água Evian, por exemplo).

E pra tornar tudo ainda mais divertido, musicalmente o mundo parou na década de 1980. A começar pela vinheta oficiosa do programa, "Keep it comin' love", do KC and the Sunshine Band e terminando com o caça-ní..., quero dizer, CD lançado à guisa de trilha sonora. Por causa desse disco tenho que agradecer ainda mais o menino, por me fazer lembrar de algo que meu cérebro guardou sem muitos detalhes, exceto a música antes desconhecida.

1979. Estava eu num lugar chamado Cidade dos Menores de Campinas, há mais de seis meses quando os diretores decidiram que nos dariam de presente uma "excursão". Excitados, lotamos, eu e todos os meninos que estavam lá, dois ônibus e uma perua em direção ao resstaurante Frango Assado da rodovia dos Bandeirantes. Foi uma farra; comida até dizer chega, um saco enorme cheio de guloseimas e brinquedos e um cara em frente a um toca-discos - mais tarde saberia que aquele sujeito era um "DJ" - e uma mesa de som. Ele me chamou, colocou os fones de ouvido em mim, grandes e pretos, colocou um disco de vinil com a palavra Philips escrito e fui inundado pelo som como nunca antes. Ele me deixou ouvir a música inteira e depois retomou o controle dos fones. Bocó como sempre fui, nem me dei ao trabalho de perguntar que música era aquela e quem cantava.

Obrigado, Amaury. Agora a música tem nome, voz, dono e pode fazer parte de minhas vívidas memórias daquele período. Agora posos dizer a quem me critica quando digo que assisto seu programa com finalidades sociológicas que, além de saber nomes de grifes, descubro canções perdidas em meu obscuro baú de recordações. No more, no more fakin' it!


Escrita ao som de Anamar e Brad Sucks, além da música acima.

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