2.10.11

Gula




Durante meu primeiro emprego, meus dias de folga – já sem as obrigações escolares, pois meu tio e o que restou de meus parentes preferem que alguém tenha dinheiro a conhecimento – eram preenchidos com duas atividades básicas: a ida à biblioteca e a leitura dos livros que eu pegava na biblioteca. Nunca fui de baladas e nem sou exigente quanto ao que me acompanha enquanto leio; bastam uma fumegante xícara de café e bolinhos de trigo. Ok, você deve estar perguntando o que diabos é esse bolinho de trigo. Titio Sid dá a receita. Acompanhe.
 
Em uma tigela, coloque cerca de 300 gramas de farinha de trigo. Acrescente uma pitada de sal e coloque água na mistura, batendo vigorosamente até que a farinha salgada transforme-se em uma pasta com consistência entre a massa de bolo e a panqueca. Reserve. Em uma frigideira, coloque óleo de soja ou qualquer tipo de gordura disponível – os fanáticos por comida saudável vão sofrer uma apoplexia quando ler, mas minha casa tinha um depósito quase industrial de gordura de torresmo, cortesia de minha vó e depois de meu tio – e deixe aquecer. Quando a gordura estiver quente, pegue uma colher, retire uma porção da massa anteriormente batida e deposite sobre o óleo. Repita a operação até que toda a massa esteja frita. O tempo de fritura vai depender do seu gosto; se quiser os bolinhos crocantes, como os meus preferidos, uns cinco minutos por batelada. Rápido, prático, calórico, nada saudável e a salvação da lavoura em tempos bicudos.

Geralmente eu não dava trabalho nenhum a ninguém; eu mesmo preparava meu café e meus bolinhos, em uma época em que eu ficava constantemente sozinho em casa. Infelizmente, meu pai, meu tio e meus irmãos descobriram as delícias de produzir picuinhas em voz alta e com som em alto volume, minando meus espaços calmos e os reduzindo às horas que eles não estavam. Para que estes poucos instantes não fossem embora durante a fritura dos bolinhos, tive a ideia de comprar algumas frutas, já que me sobravam alguns cruzeiros (depois cruzados e cruzados novos) após as obrigações. Numa segunda-feira após o expediente, fui ao mercado e comprei maçãs, laranjas e bananas, numa quantidade grande o suficiente para que eu pudesse ler meus livros beliscando algo por pelo menos quatro dias.

No dia seguinte, chego em casa, tomo meu banho e pego meu livro (“O Caso dos Dez Negrinhos”, Agatha Christie, me lembro bem). Vou à geladeira para pegar uma maçã e... só tem uma! Vou à bacia que servia de fruteira e as bananas e laranjas tinham acabado. Puto, mas ainda civilizado, pergunto candidamente: “já acabaram as frutas?”. “É, o pessoal comeu”, respondeu meu tio. Não consegui terminar a leitura, tamanha a raiva.

Sábado. Meu tio e meu pai perguntam se eu ainda tinha dinheiro para comprar “mistura”. Disse que não e avisei que iria dar uma volta. Como sempre, deram de ombros – sempre tive a impressão que eles continuariam a dar de ombros mesmo se eu dissesse “vou ao centro ficar pelado e esfaquear todos os vira-latas que encontrar” - e fui para Indaiatuba. Mais especificamente, para o maior supermercado da cidade naquela época.

A caminhada não durou mais do que vinte minutos. Ao entrar no supermercado, peguei uma cestinha, inalei o caldo indistinto formado pelo aroma vindo das seções de hortifruti, açougue, higiene e limpeza e padaria e andei como se pisando na borda do precipício. Calma e calculadamente. As gôndolas desfraldavam os produtos numa ordem simétrica, marca com marca, pacotes retangulares, quadrados, circulares. Foi a primeira e única vez em que entrei em um estabelecimento comercial sem saber o que eu queria previamente. A compra deve ter durado inacreditáveis 45 minutos.

Saindo com a sacola plástica na mão, visualizei meu trajeto mentalmente e decidi onde pararia: à sombra de uma pata-de-vaca perto do Indaiatuba Clube. Um lugar ermo, onde, ao contrário de hoje, viva alma ousava passar (ok, é um exagero, mas digamos que a densidade populacional de Indaiatuba não era tão grande assim). Sentei meu traseiro gordo em um paralelepípedo estrategicamente colocado embaixo da árvore e comecei a destrinchar o conteúdo da sacola.

Primeiro, o iogurte. Seis bandejas, quatro delas sabor morango. Foi como desnudar a pessoa amada: o invólucro de cada potinho foi meticulosamente retirado e eu sorvi os seis com gana. Literalmente, lambi os beiços. Terminei e coloquei os seis potes empilhados ao meu lado, no chão. Depois, mais iogurte, desta vez líquido. Aquelas garrafas de 1 litro. “Agite antes de beber”, ordenava o rótulo. A embalagem parecia uma coqueteleira em minhas mãos felizes. Um minuto depois, retiro calmamente a tampa e bebo. Como água. Ininterruptamente. Tudo o que eu pude dizer no final foi “coco”. 
 
Próximo item: um pedaço de cerca de 350 gramas de queijo mussarela. Quase dois centímetros de espessura, e um cheiro que eu jamais vou me esquecer; não por evocar sabores, mas por ser o troféu de uma conquista gastronômica. “ Esse eu não preciso dividir com ninguém. E nem comer uma ou duas fatiazinhas”, pensei. Não houve esforço ao mastigar e quando cada pedaço alojou-se em minha boca, eu o chupava como bala, como que prolongando o sabor e a sensação.

O salgadinho veio quase que imediatamente após. Cebolitos. Ele foi o responsável pelo maior dilema dentro do supermercado: Cebolitos, Baconzitos ou Stiksy? Nunca me arrependi desta decisão, e hoje o salgadinho faz parte dos sabores de minha memória afetiva. Mas o melhor, ao menos para mim, reservei para o final.

Quando foi lançado, o bolinho Ana Maria era o que o povo aqui de casa chamava de coisa de rico. Quando isso era dito eu meio que automaticamente aceitava, como se nossa “pobreza” fosse motivo de alguma espécie anacrônica de orgulho. O problema é que eu senti o cheiro do bolinho. Baunilha. Tentei emular o sabor da baunilha nos doces que eu comprava no bar ou até mesmo esquecer que o bolinho existia. Afinal, eu nunca compraria e comeria aquele troço.

Na sacola a meu lado, três pacotes com seis bolinhos Ana Maria. Todos de chocolate com recheio de baunilha. Fui cruel comigo mesmo naquele momento. Abri um pacote, enfiei o nariz e me intoxiquei com odor. A saliva matou minha língua afogada. Peguei um bolinho e fiz o que alguns homens fazem com charutos: cheirei toda a extensão da Ana Maria antes de abocanhar. 
 
Foi a última vez em que comer foi quase uma experiência mística, religiosa. Digo isso porque nunca mais chorei ao comer algo.

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