21.12.06

O beijo

Meu caminho habitual cheira a pastel e algodão das toalhas no varal; tem cores primárias pintadas nos muros e pinceladas vivas em detalhes texturizados. Meu caminho faz parte da rotina que me acompanha das cinco da manhã às dez da noite. Rotina iluminada parcialmente pela luz da lua, pelas luzes de vapor de sódio e finalmente pela aurora para depois o ciclo ser refeito ao contrário. Meia década e pouca coisa fugiu do roteiro escrito sabe-se lá por quem no qual atuo. É uma segurança que me abraçou e que aceitei como parte de meus dias modorrentos.

Anteontem, contudo, alguns sons destoaram da normalidade. Seis da manhã, os pardais piavam excitados e as folhas das árvores onde eles estavam farfalhavam como sempre. Um ronco de motor diesel prenunciava o ônibus circular com poucos passageiros sonolentos. Súbito... tec, tec, tec. Um instrumento de madeira tateava a calçada impaciente enquanto pés arrastavam a sola de uma papete carcomida. O dono dos pés tem voz grave, como que saída do fosso de almas e disse, clara e fortemente:
- Me dá um beijo, porra!

A frase, fora do contexto habitual, fez meu pescoço direcionar minha cabeça ao som. Vi um homem, na casa dos 60 anos, talvez um pouco mais. Cabelos grisalhos emplastrados para trás, olhos pretos reluzentes, quase livros. Não, bibliotecas. Rosto arredondado, barba completamente branca e uma cicatriz sobre a sobrancelha esquerda, provavelmente proveniente de um caco qualquer, haja vista a irregularidade da marca. As marcas do tempo combinavam com seu jeito rude e sábio. Toda essa observação rápida não impediu o choque ao ouvir a ordem, repetida em tom mais alto e deveras áspero:
- Me dá logo esse beijo, porra!

Caminhando estava quando ouvi, caminhando continuei ao decidir que fingiria que não era comigo. Olhei célere para o horizonte de cumeeiras e apressei meu passo na direção de minha normalidade. Meus ouvidos, contudo, captavam cada sílaba dita com firmeza por aquele velho estranho, nos dois sentidos da palavra.
- Como é, esse beijo sai ou não sai?


A volta para casa teve os mesmos ingredientes dos outros dias, acrescida do medo. Medo de me deparar com aquele sujeito e seu pedido. Vigiei minha rotina: os carros, os passos apressados, as sacolas de compras, o cheiro de cerveja. Um suspiro de alívio profundo ao ver que tudo era como antes. Meu cérebro se acalmou e determinou a efemeridade da loucura daquele homem. Tudo voltaria à modorra aconchegante.

Ontem. Meus passos eram guiados pela música que não saía de minha cabeça desde alguns dias. A coreografia de meus passos ritmados lembrava a cena inicial de “Os embalos de Sábado à noite”, mas com trilha sonora diferente. Esbocei um sorriso, sorriso que logo foi apagado com borracha. A borracha do tec, tec, tec de uma bengala. Ela não era mais impaciente, era vigorosa. TEC. TEC. TEC. Não quis acreditar nem me virar e nem foi preciso: a voz anunciou o que eu não queria ver:
- Me dá um beijo, porra!

Impossível. Ele era apenas um velho maluco que não deveria estar ali por dois dias consecutivos! Ele deveria ter sido defenestrado da realidade ao pedir um beijo a outro estranho durante o dia anterior! O pânico quase me paralisou enquanto ele vociferava, não com insanidade, mas com o rigor de um coronel:
- Vamos, não tenho o dia todo e nem você, caralho! Me dá logo esse beijo!
Sorte minha que meus acessos de pânico são raros e meu corpo, mostrando que é mais inteligente do que eu, me pôs para longe do dono da voz. Passos quase corridos, enquanto o coração batia no compasso da bengala. Tec, tec, tec. Não senti os odores, não vi as cores, não ouvi a música recorrente. Tudo era abafado pela voz. A voz do caos que insistia em não respeitar minha rotina tão cautelosamente mantida entre muros de ignorância piedosa:
- Volta aqui e me dá logo esse beijo!


Hoje, três e meia da manhã. Meus olhos verificam as frestas iluminadas pela lua e se acostumam com as silhuetas dos móveis na escuridão. Minha cama toca a sinfonia de rangidos que eu raramente ouvia graças ao meu sono sempre tranqüilo. Não, definitivamente não é agradável a vida de um insone. E tudo culpa daquele velho.

Por que, dentre tantas pessoas, ele me escolheu? O que ele deseja ao ordenar que outro homem lhe dê um beijo? E por que ninguém mandou prendê-lo durante o dia? Será que ele faz isso apenas comigo? Minha nossa, muitas perguntas, inúmeras paranóias e uma noite desperto. Maldito velho, que com meia dúzia de frases pôs abaixo uma vida pacífica!

Tinha que mudar minha rota, isso mesmo. Escolher outro caminho para ir ao trabalho e assim evitar a terrível possibilidade do encontro. Deixe-me ver... posso tomar o caminho da esquerda, descer duas quadras e depois de uns 500 metros voltar à rota original. Isso tomaria uns dez minutos a mais mas... espere um momento!

Por que eu teria que mudar minha rotina? Aquele era MEU trajeto, MINHA rotina. Não vou sair mais cedo de casa por causa de um velho vindo sei lá de onde, querendo mostrar a todos que é gay e tem orgulho disso, ou seja lá o que ele queira provar. Deus, a falta de sono estava me deixando ridículo! Talvez ele nem esteja mais no meio do caminho, e se estiver é só dar-lhe um senhor esporro e continuar minha vida. Isso mesmo, um banho e novas roupas. Hoje isso terá um fim e poderei, enfim, retomar a calma de meus dias.

Seis horas. Meus olhos injetados não notam os tons vermelhos do horizonte, minhas narinas lembram dos pastéis mas não me transmitem as agradáveis sensações sob a língua. Me envolvo num silêncio que sequer os pardais ousam questionar. Meus passos são firmes e o café sem açúcar e extremamente preto me deixa alerta. Mas não o vejo. Ele não está ao alcance de minha visão. Nenhum vislumbre, nenhuma voz. Nada.

Eu, sempre contido, solto uma risada de escárnio. Um cachorro late, assustado. Uma senhora que cruzava meu caminho solta um olhar de reprovação. Enfim o conhecido. Enfim a volta dos dias modorrentos. Agora me permito escutar os sons. Piu, piu, piu. Au, au, au. Crunch. Splash. Tec, tec, tec...

Tec, tec, tec?

De novo, não. Não esse som destoante. Muito bem, só ouvi a bengala e não estou vendo o autor do barulho, por isso posso conti...
- Me dá um beijo, porra!
Raiva. Há muito eu não a sentia mas jamais esqueço como ela é. Ela retorceu meu estômago, fez meu sangue aquecer e escreveu rapidamente uma lauda de xingamentos em meu córtex. Virei meu corpo na direção do dono da frase e vi a barba, os olhos faiscantes, a bengala e uma elegância no traje incompatível com a grossura da retórica: a calça bem cortada, o terno (caramba, será que esse infeliz tinha grana para comprar um Ermenegildo Zegna?). Meu passo rápido que usei para fugir no dia anterior foi desafiador na direção do velho. Meus olhos davam a impressão de querer pular e esganá-lo e meu dedo em riste apontou para o nariz. Meu sermão só poderia começar com a famosa frase:
- Escuta aqui...
Ele não escutou. Simplesmente tirou meu dedo da frente de seu rosto, agarrou meu ombro esquerdo e vociferou:
- Não, seu merda, escuta você! Eu quero que você me beije, caralho!
Tão rápido quanto seu movimento ao retirar meu dedo da frente dele foi o movimento seguinte: sua mão no ombro alcançou minha nuca e forçou a aproximação de meu rosto ao dele. A surpresa não me permitiu ser veloz e ao notar isso, ele aproximou seus lábios dos meus e enfiou toda a língua dele em minha boca.

De olhos abertos vi, aterrorizado, o velho sorvendo minha saliva em transe, olhos fechados, pela primeira vez com doçura na face carcomida pelo tempo. Ouvi o pam! seco da bengala largada na calçada e senti suas mãos em minhas costas, na massagem sensual de quem beija. Eu deveria tentar escapar, demonstrar o asco teoricamente natural numa situação bizarra como essa e meus braços queriam se ver livres de meu tronco, deixando minhas mãos bailando desengonçadas.

Só que o calor da raiva foi substituído pelo calor daquela língua áspera e dos toques corretos em meu corpo antes retesado. Não é natural, não é certo... mas é bom. Um beijo, o beijo que ele tanto queria e foi roubado com argúcia e executado com mestria. Deus, esse velho beija divinamente bem! Minhas mãos desistiram da coreografia e se alojaram na parte de trás do terno. Não era certo, não era natural... mas todos esses medos esvaíram-se no beijo mais sincero que recebi em décadas. Nem meus beijos trocados com Rosana eram assim. Nada do que fiz até hoje, nessa vida certa e sem emoções, era assim. Nossa união no meio da rua, numa manhã de sexta, poderia não ser aceita. Mas era boa a sensação.

Longos instantes depois nos separamos. Seu rosto retomou o ar taciturno, o meu queria definir o que expressar. Súbito, plaft! Sinto uma dor no lado direito do rosto, graças a um tapa bem dado. Tão bem dado quanto o beijo. Não vi o movimento do braço e só senti o tabefe na dor. Não sabia o que dizer ou sentir, minha estupefação era palpável enquanto ouvia sua voz áspera:
- Seu viadinho de merda!
Ato contínuo, ele apanhou a bengala depositada no chão, sem tirar os olhos de mim. Ao pegá-la, virou-se abruptamente e caminhou para longe de mim. Tec. Tec. Tec. Não havia mais nervosismo ou impaciência no ritmo das batidas. Havia apenas a estátua de sal que eu havia me tornado atrás dele, sem um mísero sentimento útil numa casca despreparada para o inesperado.

Tec. Ele pára, se detém por alguns instantes e vira parcialmente a cabeça, com um sorriso satisfeito. Olho entorpecido, esperando mais um impropério. Ele ergue os olhos, me fita candidamente e diz:
- Você beija bem.

2 comentários:

Felipe disse...

Muito legal!
Não conhecia esse seu lado contista.
Adoro esses contos nonsense, e nesse você se saiu muito bem.
Até!

Anônimo disse...

Eu estava realmente com saudades de seus maravilhosos contos!
Sidtry, Sidtrip, era você,não??

Parabéns e só gostaria de dizer que seus contos mudaram minha vida

Obrigado
ray