11.9.11

Dois segundos de alegria


Não é preciso escolher uma roupa definitiva; basta que ela seja confortável o suficiente para ir até o estúdio, já que os figurinos estão previamente escolhidos. “Esteja na produtora às 8 da manhã”, informou lacônico o telefonema. Sua agente era uma pessoa prática e sem floreios. 
 
Sua mulher apronta sua bolsa e seus relatórios enquanto o observa colocar uma camiseta amarela e um jeans. “Tem alguma previsão de quando vai terminar?”, pergunta, já sabendo a resposta. “Não. A agência conseguiu quatro filmagens; uma delas poderá ser em locação. Então já viu”, diz calmamente o homem, olhando para a pilha de papéis que condensam sua dissertação. Sociologia, um sonho oposto aos desejos do pai, que o queria arquiteto. Ela solta um beijo no ar e se despede; o escritório a espera. Ele verifica seu próprio rosto, pega documentos, chaves e celular e sai em direção à estação do metrô.

Quarenta minutos. O estúdio de gravação fica em um prédio de linhas retas, “herança da escola Bauhaus, provavelmente”, pensa num esgar de sorriso. Sétimo andar. Oi, deixa eu ver as credenciais. Ok, camarim 3. Suas roupas são colocadas no armário 38 e lá ficarão por tempo indeterminado. Primeiro figurino: camisa de um time de futebol falso, bandeirola, copo. Cinco outros o acompanham na cena em um cenário simples: sofá, plantas artificiais, quadros. Ele ficará à esquerda, sentado. “Beleza? Quanto tempo”, cumprimenta um dos atores, que se senta no meio do sofá. “Desde o filme das fraldas...”. Rápidas falas, quando o diretor pede silêncio e orienta o que deve ser feito. 
 
“Ensaiando”. Ele se levanta, grunhe algo ininteligível em êxtase, e seu rosto passa a alegria de ver seu time fazendo um gol no time adversário. Abraços trocados, felicidade. “Corta”. Voltando às marcas iniciais. Pequenos ajustes de foco e algumas orientações sobre como ser feliz vendo um marmanjo chutando uma bola. Impassível, ele olha o vazio imaginando o tipo de sorriso que um apaixonado por futebol dá. “Gravando”. Ele muda a expressão, abre a boca em um “gooool” enquanto o olhar sorri por ele. “Corta”. Um gole de água antes da segunda tomada. Grava. O rosto agora vai para trás exprimindo quase um orgasmo. O abraço no parceiro de cena é mais efusivo. Corta. Take 3. Take 4. E fim. 
 
No único lugar onde ele pode fumar em paz (não que os haja muitos ultimamente), ele ainda se prepara para o próximo esquete. Uma das atrizes o acompanha e entre uma tragada e outra diz que pediu ao seu agente para tentar colocá-la na figuração de Malhação ou de alguma novela da Record. “Cara, você tem noção do quanto é difícil conseguir isso?”. “Tenho sim; quando eu consegui uma pontinha naquela novela das seis foi quase uma guerra! Pior foram as promessas... não, você vai conseguir outras coisas, até fazer parte do elenco de apoio”. “E aí, conseguiu o quê?”. “ A vaga no comercial de lasanha”. Pfff. “Pelo menos foi uma série...”.

Próximo figurino: terno,gravata, pasta de couro. “Pai de família, provavelmente, e sem falas”. Na cena, ele entra sorridente na copa, onde uma mulher e duas crianças dividem um pão com um novo requeijão saborizado. “Merda, odeio requeijão”, pensa enquanto procura mentalmente o sorriso adequado. Orientação da diretora. Ensaio. O paletó é colocado displicentemente no encosto da cadeira, e o sorriso é um tanto quanto confiante demais. Corta. Desta vez o paletó é colocado com um pouco mais de zelo na borda e um sorriso “bom dia”, aqueles que ele sempre admirou nos comerciais antigos de margarina, brota. Um beijo cúmplice na estranha, um afago e uns grunhidos amigáveis às crianças. Chegou a temida hora; comer o pão com requeijão. Corta, repete. Corta, repete em outro ângulo. E sempre com o olhar de quem adora. Corta. Mais uma. E outra. Outra. Corta, ficou ótimo. O gosto do requeijão enfim pôde encontrar a real cara de nojo dele. As crianças riram divertidas. “Deveria ter gravado isso” diverte-se a diretora.

“Locação na próxima!”, avisa o assistente. Como a próxima vai demorar um pouco e o local é num parque próximo, ele decide comer algo leve. Num quilão frequentado por motoristas de táxi, ele coloca em um prato alguns legumes e um bife acebolado. Enquanto come calmamente, observa os frequentadores, detendo seus olhos e ouvidos em um senhor, com seus 50 e tantos anos, barba espessa e grisalha, gabando-se com seus colegas de métier sobre sua recente conversão ao catolicismo. “Fui crente durante toda minha vida, mas foi Santo Expedito quem me mostrou o caminho!”. Ele sempre foi fascinado em estudar o gestual de certos profissionais, já que alguns destes gestos poderia ser usado em suas curtas atuações. “O que cê tá olhando, moleque? Não curto viado não! Vá encontrar Jesus!”, disse o velho motorista ao notar que ele o observava. Ato contínuo, ele desviou o olhar e terminou a refeição com um sorriso sarcástico.

Mais um cigarrinho antes da filmagem. Chiclete de menta para disfarçar o bafo. Agora o traje era esportivo: short de corrida, camiseta branca, tênis. “Um fumante fingindo ser da geração saúde, é mole?”, diverte-se ele com sua companheira de cena. “Vocês vão correr suavemente por pelo menos 30 metros, certo? Vocês gostam muito disso a linguagem corporal vai dizer TUDO!”, vaticina o obeso diretor. 
 
Ensaio. Os dois correm lado a lado. Um sorriso cúmplice e um mexer de boca simulando uma conversa. Corta. “Conversem algo de verdade. Digam algo com sentido. Não irá ao ar mas dará verdade pra cena”. Tá bom. Ele entreolha a companheira de cena, que já entende. Ação. Ele: “Dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial...”. Ela: “Cebola e picles num pão com gergelim”. Com a mesma cumplicidade anterior. Corta. Repete. Ele: “I'm not aware of too many things...”. Ela: “I know what I know if you know what I mean”. Mais cúmplices ainda, e com um sorriso cada vez mais real.


Dez tomadas e dez citações depois - “daqui a pouco a gente ia recitar Tenessee Williams aqui”, ela disse – fim das filmagens. “Tem mais alguma coisa?”, ele pergunta à sua agente. Ele suspira e questiona. “E o elenco de apoio da novela, alguma notícia?”. “Cara, tu sabe como é. O que tem de gente que quer trabalhar na tevê... muita concorrência! Tenta entrar em uma companhia teatral”. Ah, sim, o status do tablado antes de ser um mundano ator de tevê. Ainda bem que sempre haverá a sociologia.

Banho e de volta às próprias roupas. No metrô, as expressões uniformes de enfado e indiferença das pessoas o faz questionar se alguma daquelas propagandas realmente mostram reações de verdade. “Que bobagem, é essa fantasia que paga minhas contas”.

“Você chegou cedo hoje”, diz sua companheira. “A gravação do comercial de plano de saúde foi cancelada para outro dia. Pena, eu fico bem de jaleco”. Ela não esboça qualquer reação à piadinha sem graça e ele pergunta se há algo errado.
“Eu tô grávida”.

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