4.9.11

A inútil trajetória da comida


Sábado, 8h.
Feno, ração, um pouco de capim fresco. Vitinha, como foi apelidada por um funcionário do frigorífico, rumina calmamente e seus olhos pretos mantém-se fechados como se saboreando o repasto que foi depositado no estéril cocho onde ela e mais vacas se alimentam. Muitos apreciam a quase simétrica disposição de suas pintas pretas em seu corpo branco, além de sua calma zen que inspirou muitos trabalhadores a serem vegetarianos.
Mal sabia Vitinha que aquela seria sua última refeição.

Sábado, 10h30min.
Paula volta com a caminhonete vazia. Cheia, pelo menos até a ida ao banco, só a pequena sacola com o resultado da venda dos pés de alface. Mais do que satisfeita com a negociação, ela olha o pai e os irmão já preparando o terreno agora vazio onde outrora se encontravam as vicejantes hortaliças. “Vão plantar mais alface?”, ela pergunta .
“Não, filha. Talvez um pouco de rúcula agora”.

Sábado, 12h43min.
Os eixos passam trêmulos pela balança na rodovia. Tudo certo, hora de aumentar um pouco a velocidade pra chegar logo ao destino. Cícero puxa pela memória uma época que parece tão distante, onde ele colhia os grãos de feijão e arroz debaixo do sol inclemente e os levava na “cacunda”, como dizia sua mãe. Hoje, ao dirigir o caminhão repleto de sacos destes grãos, ele fala sozinho enquanto ouve Fernando e Sorocaba no rádio.
“Essa molecada não tem ideia do que é trabalho!”.

Segunda, 9h37.
Leitor óptico de código de barras na mão, Lucinda vai dando coordenadas que aos ouvidos dos motoristas e carregadores parecem descoordenadas. “Não tem noção de logística mesmo”, pensa entredentes e com uma certa empáfia a encarregada de recebimento de materiais. A carne vai pra câmara frigorífica. Vitinha está entre elas. Legumes e verduras? Ali. “Puxa, vou levar uns pés desta alface pra casa, tá bonita!”, admira-se Lucinda. “O arroz e o feijão já pode deixar por aqui mesmo. Dia de pagamento”.
Cícero, ao longe, engole um café retirado da pequena garrafa, distraído.

Segunda, 18h48min.
“Droga, perder a novela das seis pra fazer compras, ninguém merece...”, resmunga Douglas enquanto pega um carrinho. No açougue, coxão duro e bife de patinho. “Ô chefe, tá uma facada o preço da carne, hein?”. “E olha que nem passou na minha chaira, patrão!”, diverte-se o açougueiro, já moendo a carne da próxima freguesa. O arroz tá perto das embalagens de óleo. “Droga, a alface tá meio murcha. Vai assim mesmo, quem manda ela não vir mais cedo?”. Ele mentaliza o cardápio e já sabe o que vai pedir para Norma fazer.
“CPF na nota, senhor?”.

Quarta, 10h18min.
Douglas sempre se diverte com o que lê escrito no banheiro do trabalho. E não adianta os chefes chamarem a atenção; frustrações mal resolvidas entre subordinados e subordinantes não criam a coragem da palavra dita. “Pior que eu reconheço a letra desta aqui sobre o Artur!”, ri sozinho. Fim das atividades escatológicas. Papel, descarga. “Minhas tripas são um reloginho”, orgulha-se, enquanto lava as mãos.
O alimento vai transformar-se em energia motora e sensorial. Pois bosta ele já é.


Entre o sábado e a quarta, a mangueira próxima ao supermercado deixou cair algumas folhas, viu algumas pétalas darem adeus e não teve trabalho algum para captar a luz solar que que penetrou nos estômatos e transformou-se em alimento. Como subproduto, ela expele oxigênio e galhos e folhas secas transformarão em húmus, que alimentarão as próximas vacas e e os próximos pés de alface, arroz e feijão.

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