4.9.11

#5


Música sempre foi essencial em minha caminhada. Mesmo frustrado em minhas pretensões iniciais de cantar bem ou tocar algum instrumento – é preciso aliar vontade ao talento – nunca deixei de ter uma trilha sonora, real ou neural. Em meus delírios pueris e juvenis me via parte integrante de um imenso musical; enquanto muitos achavam absurda a ideia de ver marmanjos cantando para expressar alguma coisa em filmes, eu sorvia “Cantando na Chuva”, “Sete Noivas para Sete Irmãos” e “Mary Poppins” com voracidade quase religiosa.
Quando eu escolhia minhas músicas prediletas, valendo-me dos mesmos valores subjetivos dos críticos mas sem poder embasar minhas preferências usando a história ou o profundo conhecimento das técnicas envolvidas (hah), eu preferia as canções mais tristonhas, seja nas letras ou na linha melódica. Gostava, e gosto, do desamparo, da desesperança, da crueza e das lições implícitas nestas tristes canções.
Quando eu cantava a plenos pulmões “Meu mundo e nada mais” com meus cinco anos, eu não estava ferido e amargurado como a persona da letra; apenas achava bonito que alguém pudesse expressar tão bem sentimentos tão tristonhos. Mas foi ao conhecer Elton John que vi que a dor e a amargura poderiam ser munições perfeitas para a música pop. Vou falar especificamente de uma.
Em 1973, uma novela fazia muito sucesso: “Carinhoso”, escrita por Lauro César Muniz. Uma das músicas da trilha sonora internacional fez um estrondoso sucesso, “Skyline Pigeon”; ela é uma daquelas canções que fazem parte do inconsciente coletivo dos brasileiros, como outras que fizeram parte de trilhas sonoras de folhetins na década de 1970 (nem me faça começar). Foi através da música que conheci o senhor Reginald Kenneth Dwight, cujo nom de plume tornou-se sinônimo de música pop e rock de qualidade.
Nesta época, só alguns privilegiados tinham aparelhos de som que mereciam o nome; eu tinha uma Sonata que me tio havia me dado junto com alguns compactos simples. Um destes privilegiados era o filho da patroa de minha mãe à época; num sábado eu fui com minha mãe até a casa desta mulher (enorme e linda, com apetrechos que eu só tomaria real conhecimento do que eram na década de 1990) para ajudá-la a trazer algumas roupas que ela havia ganhado. Enquanto ela dispunha vestidos, calças e camisetas em sacolas, eu permaneci quieto, olhando tudo com um misto de fascínio e curiosidade. Os odores daquela casa eram muito diferentes dos que eu estava acostumado a sentir, e muito de minha percepção futura de “casa de rico” vem desta memória olfativa.
De repente o filho da patroa passa pela porta do quarto onde estávamos eu e a mãe com um disco nas mãos. Era uma cópia americana de “Goodbye Yellow Brick Road”, como ele fez questão de frisar. Ele entrou em seu próprio quarto e colocou para rodar. Além da faixa-título, uma música em particular me chamou a atenção. Mal sabia minha própria língua, mas a canção não-nomeada era linda. A voz cristalina de Elton John, o piano, aquele jeito de cabaré, e o que mais me chocou: a tristeza e pungência com que ele cantava o refrão. Fomos embora sem saber que música era aquela; afinal, o filho da empregada não podia dirigir a palavra a um dos membros de tão rica família (quando soube, décadas mais tarde, que eles eram, e são, apenas uma família de classe média, me penitenciei por ser tão subserviente às convenções implícitas naquela época). Ela nunca foi exatamente um hit aqui no Brasil, assim como a faixa-título e , talvez, “Benny and the Jets”. Por isso a canção tornou-se uma espécie de fantasma que assombrava minha memória de tempos em tempos.
No começo de 2011, estava eu tentando ouvir rádio (coisa que se torna cada dia mais difícil graças à qualidade de certas rádios pop), girando o dial aleatoriamente quando ouvi a tal canção misteriosa de Elton John. Foi como se eu visse a pessoa amada pela primeira vez: minha pele pipocou de arrepio, minha boca ficou seca, os olhos lacrimejaram, o coração bateu descompassado – e não estou exagerando. E a tristeza do refrão continuava intacta; pude ouvir a gaivota no final da canção, dando um ar mais desesperançado ao conjunto.
Agora tenho a música em meu pen drive. Ela se chama “Sweet Painted Lady”, primeira faixa do lado A do disco 2. E meus instintos estavam certos: a letra é de uma certa forma uma ode à tristeza de uma vida sem muitas expectativas, e que pode ser resumida no refrão: “Sweet painted lady/ Seems it's always been the same/ Getting paid for being laid/ Guess that's the name of the game, ooooohh”.
Sem querer, o filho da patroa quis me cooptar ao lado comodista da Força. Não conseguiu. Mas eu gosto de saber que ele existe para inspirar tão belas canções.

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